Cenário inquisitorial

Judiciário quer extorquir a palavra do acusado

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19 de janeiro de 2010, 9h30

Através do corpo, chegaremos à verdade. O corpo era um objeto que importava uma ação de força para ser possível extrair a verdade. Essa relação entre o corpo e a verdade e outras tantas que formam um “sistema disciplinar” estão presentes na obra de Michel Foucault e nos vários cursos abertos do Collège de France (especialmente os da década de 70). Partindo dessa máxima – “o corpo falará a verdade” – era necessário que o Poder Judiciário monopolizasse o acusado no momento do interrogatório. O juiz de Direito deveria ouvir e extrair a verdade por meio de um diálogo unilateral: encontrar a verdade que só não se mostra àqueles que não aplicam bem as técnicas sobre o corpo.

Do século XVIII ao XX, como ensina Foucault, vivemos sobre a égide da “normalização” e da “disciplina”. Em todas as áreas de convivência humana: família, escola, exército, hospital, cárcere e trabalho. Seria evidente a sobrevida do sistema inquisitivo no interior do Judiciário, ainda que se empregasse outra nomenclatura. As garantias políticas negativas (liberdades civis e outras) de nada valem, se a lógica da verdade centra-se sobre o corpo das pessoas. Estar presente, estar disponível, estar limitado, estar ordenado: são todas engrenagens do modelo disciplinar.

O interrogatório judicial segue essa arquitetura. Acusado contra juiz e promotor. Incluindo a disposição do pequeno teatro judicial, o mobiliário etc (especialidade do francês A. Garapon). No cenário, o banco dos réus reflete a solidão do corpo que se vê disponibilizado para a inquirição, para a busca da verdade. Nesse contexto, impossível qualquer interrupção de outros personagens, sob pena de fazer desaparecer a verdade. Compete apenas ao juiz relacionar-se com o réu que está ao seu alcance.

Toda a palavra omitida é um sinal de contrariedade, de inverídico, de manipulador. Condena-se o silêncio: o sistema judiciário quer extorquir a palavra do acusado, qualquer palavra, qualquer gesto. Assim vivemos durante séculos. Até o final do século XX, o interrogatório era ato privativo do juiz, não podendo interferir as partes, interpretado o silêncio em desfavor do réu. Portanto, alguma verdade teria que aparecer, seja pela fala, seja pelo silêncio. A verdade era tomada como realidade e não como construção. Por conseguinte, não encontrar a verdade é um fracasso. É preciso encontrar explicações. Não basta apenas aplicar a lei.

Na lenta caminhada rumo ao processo acusatório, foram incluídas duas pequenas mudanças na engrenagem do interrogatório: 1) o silêncio do acusado não será interpretado em seu desfavor e nem poderá ser objeto de análise judicial negativa, em nenhuma hipótese; 2) no interrogatório, as partes poderão fazer perguntas, assumindo um papel mais ativo no conflito processual. Foram mudanças meramente retóricas. Ainda que não declare na sentença, pode muito bem motivar-se no convencimento íntimo pela omissão, pela lacuna, pela resistência do réu. Não deve mencionar esse processo cognitivo na sentença. Basta isso. Juridicamente é suficiente.

A iniciativa probatória ainda está nas mãos do juiz. É ele quem vai à cata da verdade. E a verdade deverá aparecer, de um jeito ou de outro. O modelo acusatório preconizado pela Constituição de 1988 nunca foi implementado. Trata-se de um sistema inquisitivo travestido. Porque quando o aparelho Judiciário quer se convencer por meio de provas geridas pelo próprio juiz, é certo não haver paridade de armas, imparcialidade e adversários reais. Trata-se de uma busca pela verdade a todo o custo, ainda que os meios processuais estejam mais tolerantes e menos cruentos.

Que fazer? Para entabular uma lógica de garantia no processo penal mais um passo deve ser dado. E um passo que: a) reconheça ser a verdade processual relativa e limitada; b) aceite a construção da verdade pelas partes em conflito. Ora, se o interrogatório é meio de defesa; se o direito de silêncio está assegurado; se nenhum prejuízo terá o acusado que silenciar, surge a conclusão lógica: o juiz somente ouvirá o acusado, caso a defesa técnica assim o requerer. Não é ele mais que dispõe do corpo e manipula-o para sacar a verdade. Aí sim não haverá extorsão por meio da dominação disciplinar do corpo, da mente, da fala e dos gestos e nem por meio de rituais e cenários inquisitoriais. As partes são responsáveis por suas ações e omissões e a gestão da prova incumbe somente a elas. O juiz julga; encontra um meio-termo; constrói uma síntese. Deixa de agir e provar.

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