Ativismo judicial

Juiz combatente é parte de movimento reacionário

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18 de janeiro de 2010, 15h35

O direito a ser julgado por um juiz imparcial é desdobramento natural do devido processo legal e constitui uma das garantias de maior relevância em nosso ordenamento jurídico. Em verdade, a imparcialidade do juiz está ligada à própria ideia de jurisdição; o direito de acesso à Justiça pressupõe, portanto, a existência de um juiz imparcial (CF, art. 5º, XXXV).

A imparcialidade pode ser considerada tanto sob o aspecto subjetivo, que diz respeito à falta de pré-juízos do magistrado em relação ao caso concreto, como sob o aspecto objetivo, relacionado à existência de garantias suficientes a afastar qualquer dúvida a respeito da sua equidistância das partes, como bem ensina Aury Lopes Jr. (Introdução Crítica ao Processo Penal, 3ª ed., pg. 87).

A concretização dessa importantíssima garantia fundamental foi intensa­mente discutida nos trabalhos realizados pela Comissão encarregada da elaboração do projeto do novo Código de Processo Penal. Veja-se, a propósito, a entrevista concedida por um dos integrantes da Comissão, professor Jacinto Coutinho, ao jornal O Estado de São Paulo, no último 15 de janeiro.

O projeto, aprovado pelo Senado em votação simbólica no final de 2009, busca redefinir as funções dos protagonistas do processo, atribuindo às partes o ônus e a responsabilidade de produzir as provas, e ao juiz do processo a função (dever-poder) de garantir a legalidade da instância e a legitimidade das decisões.

Essa preocupação passa pela definição da natureza do Processo Penal brasileiro, pela adoção do sistema acusatório, onde o juiz se vê afastado da gestão da prova; em oposição, pois, ao sistema inquisitório, em que ele detém, com primazia, a gestão da prova.

É importante destacar que o STF já havia manifestado igual preocupação em alguns julgados, sendo que, no julgamento da ADI 1.570, a Suprema Corte, por maioria, tratou de definir nosso sistema como de índole acusatória, a partir da interpretação das regras e princípios inscritos no Texto Constitucional de 1988.

Mas, “gris, caro amigo, é toda teoria, e verde a áurea árvore da vida”, adverte Mefistófeles a Fausto.

A garantia efetiva da imparcialidade do juiz não passa apenas pela mudança no Direito positivo. Ela depende de profundas alterações das práticas e da consciência judiciária nacional.

Dentre os vários temas que merecem uma reflexão maior, destaca-se o “ativismo” judicial. Aliás, uma específica modalidade de “ativismo” judicial que se revela no fato de alguns magistrados de primeiro grau assumirem a posição de protago­nistas do processo. Participam diretamente da produção das provas que serão utilizadas no processo, ainda na fase de investigação; oferecem acordos de delação premiada aos acusados ou a seus advogados; deduzem verdadeiros arrazoados perante instâncias superiores, às vezes em processos onde sequer figuram como autoridade coatora; discutem publicamente casos sob sua jurisdição; criticam abertamente decisões de tribunais de apelação ou cortes superiores que impliquem reforma das suas próprias decisões.

Desse modo, o juiz revela um terrível engajamento na acusação, dividindo, quando não assumindo, o papel reservado para o Ministério Público, titular da acusação oficial. Nesses casos, a garantia da imparcialidade do juiz se vê séria e irreversivelmente atingida, tanto no que diz respeito ao seu aspecto subjetivo como no que tange ao seu aspecto objetivo.

O processo, ao invés de representar uma garantia para o acusado e para a sociedade, torna-se uma pantomima, pois os personagens nada mais fazem do que cumprir formalmente um papel previamente escrito. O acusado já está condenado. Parafraseando Mia Couto, o processo é somente para ele, acusado, lembrar-se de que já está condenado.

O editorial de O Estado de São Paulo de 18 de janeiro discorre sobre as decisões liminares recentemente proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de habeas-corpus, que determinaram a suspensão de processos em curso perante a 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo. O texto é corajoso e tece duras críticas aos magistrados que resolveram abraçar esse ativismo judicial, fugindo, assim, ao lugar comum da imprensa brasileira, que desavisadamente costuma aplaudir esse tipo de postura: “O crescente número de pedidos de suspeição protocolados nos tribunais superiores contra De Sanctis é resultante de um processo de politização das primeiras instâncias do Judiciário que começou na última década, quando alguns juízes passaram a praticar o que nos meios jurídicos é chamado de ‘ativismo judicial’. Esses juízes tendem a interpretar a Constituição conforme suas inclinações ideológicas, desprezando a segurança jurídica e justificando a iniciativa em nome do combate do ‘bem contra o mal’ e dos ‘pobres contra os ricos’".

Em uma das decisões citadas pelo Estadão, o ministro Arnaldo Esteves Lima entendeu prudente suspender o curso da ação penal movida contra os sócios do Grupo Opportunity, considerando plausíveis as dúvidas levantadas pela Defesa a respeito da imparcialidade do magistrado que presidiu o processo.

O que parece difícil ou impossível fazer compreender é que o País precisa avançar também no âmbito da aplicação da Justiça. O “ativismo” judicial que se tem verificado — particularmente em algumas Varas Federais especiali­zadas no julgamento (combate) de (a) crimes contra o sistema financeiro — é um movimento reacionário, preocupado antes com resultados do que com a validade e a legitimidade das decisões.

E num Estado que se autoproclama de Direito e democrático, a legitimidade das decisões é o valor fundamental a ser perseguido. As decisões legítimas, podem apostar, são muito mais difíceis de ser reformadas.

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