Casos difíceis ou “hard cases” são aqueles que não encontram solução tranquila no ordenamento jurídico, em face da existência de conflitos existentes entre as diferentes normas constitucionais incidentes sobre a matéria.
Ronald Dworkin (na obra O império do direito, Ed. Martins Fontes) é um dos autores que melhor se ocupa da análise destes “casos difíceis”, propondo que as diferentes soluções sejam enfrentadas pelo operador jurídico. Para tanto criou a figura do juiz Hércules, que tem por dever solucionar a controvérsia a partir dos diversos princípios constitucionais incidentes, de modo a garantir a unidade e integridade do sistema jurídico.
Dois exemplos de casos difíceis, que este ano deverão ser objeto de acurado exame pelo Supremo Tribunal Federal: o direito prestacional à saúde e o sistema de cotas para ingressos nas instituições públicas de ensino superior.
A importância destes temas restou reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal ao submetê-los a audiências públicas. Por iniciativa do ministro Gilmar Mendes em abril e maio de 2009 ocorreram discussões públicas para tratar do direito a saúde. No tocante às cotas sociais e raciais, o ministro Ricardo Lewandowski, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 e no Recurso Extraordinário 597.285, designou os dias 3 e 5 de março próximo para oitiva da sociedade.
Relativamente ao direito à saúde, o colegiado do Supremo Tribunal Federal ainda não se posicionou, embora as audiências públicas já datem de quase um ano. Entretanto, o presidente da Corte, ministro Gilmar Ferreira Mendes, traçou orientações iniciais nas decisões proferidas nas Suspensões de Tutela Antecipada (STAs) 175, 178 e 244, reconhecendo o dever estatal à prestação de medicamentos “se a prestação de saúde pleiteada não estiver entre as políticas do SUS” sendo “imprescindível distinguir se a não prestação decorre de uma omissão legislativa ou administrativa, de uma decisão administrativa de não fornecê-la ou de uma vedação legal à sua dispensação”, observada a necessidade de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para o deferimento judicial da medida deve haver suficiente fundamentação e detalhado exame dos motivos que levaram o SUS a não fornecer a prestação desejada.
Quanto às cotas para ingresso nas universidades públicas, ainda não houve um posicionamento da Suprema Corte, embora haja grande divergência na jurisprudência dos demais Tribunais (ora validando a política de criação de cotas, ora invalidando-as, ora invalidando apenas as cotas raciais).
Em ambos os casos é importante que haja uma desapaixonada discussão dos diferentes pontos de vista, com o exame aprofundado dos princípios constitucionais contrapostos, tais como princípio da legalidade, separação dos Poderes, unidade da Constituição, concordância prática, dentre outros, que devem ser harmonizados com normas constitucionais como o direito à saúde, direito à vida e os objetivos fundamentais expressos na nossa Carta Política, dentre eles a erradicação da pobreza, dignidade da pessoa humana e a busca pela construção de uma sociedade justa e solidária.
Embora não se trate de tarefa simples, vejo nesses hard cases uma grande oportunidade para que a Suprema Corte não se limite a resolver apenas os conflitos normativos imediatos, mas principalmente traçar diretrizes para a solução de muitos outros conflitos aparentes entre as diversas normas constitucionais e dos direitos sociais.
Tanto o direito à saúde quanto as cotas fazem parte dos direitos fundamentais de segunda geração, também chamados de direitos prestacionais, segundo os quais o Estado tem o dever de atender materialmente aos indivíduos. Embora não se possa dar a mesma densidade para todos os direitos sociais (dispersos por toda a Carta Política), seria de bom alvitre que a solução para estes casos difíceis trouxesse luzes para a solução de outros conflitos que logo serão postos à discussão.
Isto porque a tensão entre direitos fundamentais sociais e princípios como a separação de poderes e reserva possível, entre outros, é permanente, o que está a justificar a delimitação da justiciabilidade dos direitos prestacionais e da atuação jurisdicional, de modo a haver uma diretriz segura a ser trilhada nas diversas demandas deste jaez.
Tomando-se o direito à saúde como mote, há que se analisar não apenas a dispensação de medicamentos excepcionais – tema tão em voga nos Tribunais –, mas também o direito prestacional à realização de procedimentos médicos, ou ainda, trazer luzes às escolhas trágicas que os profissionais, seja do Direito ou da medicina, por vezes tem que fazer: quem deve ser operado primeiro? O mais urgente? Aquele que está na fila? Aquele que o juiz determinou? Qual médico deve ser o cirurgião? Qual cidade? Qual hospital? A quem compete tais escolhas? Ao Juiz, à parte que necessita da prestação ou do sistema de saúde?
Indagações como estas repetem-se frente a outros direitos fundamentais prestacionais, como o direito à educação, à moradia e à segurança, para ficarmos apenas nos elencados no artigo 6º da Carta Política, embora sobre estes não resida a dramaticidade que o direito à vida traz ao tema. Há direito subjetivo (individual, difuso ou coletivo) a ser judicialmente reivindicado para se postular a construção de creches, de escolas ou de moradias populares? É possível compelir-se o administrador público para que promova a construção e aparelhamento de postos de saúde? Ou a construção de delegacias de polícia, penitenciárias ou promova o policiamento ostensivo em determinados locais?
É certo que todos estes direitos prestacionais representam anseios da sociedade como um todo, bem como é certo que nem todos podem ser imediatamente satisfeitos pelo Poder Público, ante a insuficiência de recursos.
Sendo a tensão entre as escolhas políticas, as possibilidades fáticas e os deveres estatais permanentes, não é recomendável que meras soluções casuísticas sejam dadas a problemas tão intrincados e recorrentes.
O desafio é hercúleo, utilizando a figura criada por Dworkin, mas a conformação entre o direito e a realidade exige respostas que possam atender não apenas casos específicos (como dar ou não dar medicamento para determinada pessoa), mas principalmente a construção de exegese que dê conta da concordância prática entre as colisões normativas existentes, iluminando o caminho para uma hermenêutica constitucional que sirva como paradigma para a concretização dos direitos sociais, resultando em maior segurança jurídica, harmonia, isonomia e Justiça.
* João Pedro Gebran Neto assume interinamente a coluna até o final de janeiro.