Processos de areia

STJ paralisa Ação Penal contra a Camargo Corrêa

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14 de janeiro de 2010, 16h03

O Superior Tribunal de Justiça afastou das mãos do juiz Fausto de Sanctis mais um processo. Desta vez foi a Ação Penal contra executivos da construtora Camargo Corrêa, apelidada de Operação Castelo de Areia. Como nos casos anteriores, detectaram-se arbitrariedades, conclusões baseadas em suposições e provas ilícitas e elementos exotéricos como denúncias anônimas, ofícios e provas secretas. A decisão foi divulgada nesta quinta-feira (14/1).

O presidente do STJ, ministro Cesar Asfor Rocha, suspendeu provisoriamente — até que a 6ª Turma do tribunal examine o caso — "a Ação Penal e todas as iniciativas sancionatórias com base no Procedimento Criminal Diverso" instaurado a partir de delação anônima e secreta contra a empreiteira. A delação anônima, que é vedada pela Constituição para essa finalidade, foi usada por Sanctis “sem sequer uma mínima e prévia averiguação, a quebra de sigilo telefônico, ademais em decisão desfundamentada e genérica (alcançando todos os usuários de serviço de telefonia), tendo as escutas sido prorrogadas — também sem fundamentação — por período superior a 14 meses, já aí alcançando os pacientes”, segundo argumentou a defesa no pedido acatado por Asfor Rocha.

A decisão interrompe dois processos, dezenove inquéritos abertos pela Polícia Federal e as 32 representações encaminhadas pelo Ministério Público Federal a diversos órgãos solicitando informações e investigações.

No mesmo Habeas Corpus, Asfor Rocha criticou o Tribunal Regional Federal da 3ª Região por omitir-se e convalidar as práticas ilegais do juiz. A 2ª Turma do TRF-3 não só deixou de analisar os argumentos da defesa como aceitou “uma estranha e intempestiva comunicação secreta não apensada aos autos, constante de ofício reservado passado pelo juiz federal da 6ª Vara SJ/SP à relatora do feito mandamental no TRF, cuja existência só foi anunciada no instante do julgamento (e ainda assim só depois da sustentação oral formulada naquela ocasião), onde constaria a informação de que a deflagração referida estava alicerçada em denúncia anônima e apurações preliminares levadas a efeito pelo Departamento de Polícia Federal”.

Asfor Rocha esclarece que sua decisão, liminar, “não acarreta o trancamento da Ação Penal em apreço, não liberta pessoas detidas, não disponibiliza patrimônios constritor e não produz efeitos definitivos sobre o mérito da pretensão punitiva; porém, a sua continuidade e dos efeitos que derivam do mesmo PCD lavra contra os pacientes efeitos particularmente lesivos, por submetê-los a processo penal aparentemente eivado de insanáveis vícios, isso só já representando um constrangimento ilegal a que se deve pôr cobro de imediato, em atenção ao direito fundamental que tem toda pessoa de não sofrer ação punitiva sem a observância das suas garantias processuais”.

Para o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Sepúlveda Pertence, "a chamada opinião pública vibra com esse tipo de atitude (as decisões de De Sanctis), mas é preciso reagir contra os abusos". Para o ministro, "esse moço tem uma vocação policial muito grande". Na fase em que se encontra o processo, ensina Pertence, "a intervenção do juiz é a de garantir o cumprimento da lei e não a de investigar".

Quando no Supremo, Pertence encabeçou a adoção do entendimento de que o ordenamento jurídico brasileiro não comporta investigação secreta e nem permite ao juiz o papel de investigador. Caso isso ocorra, decidiu o STF, o processo todo deve ser anulado.

Para o criminalista Alberto Zacharias Toron, a decisão de Asfor Rocha é “absolutamente correta" e "repõe as coisas nos seus devidos lugares, já que resgata algo fundamental: a observância do devido processo legal" nos julgamentos. As técnicas adotadas por De Sanctis, diz o advogado, "são práticas que já deveriam ter sido sepultadas". Afora o mais, diz ele, "a decisão do STJ mostra que o Brasil não pode conviver com métodos que representam o estado de polícia que já deveriam ter sido banidos do nosso cotidiano forense e da vida do país".

Para o advogado Celso Vilardi, que assinou o pedido de Habeas Corpus com seu colega Luciano Quintanilha de Almeida, a decisão de Asfor Rocha é importante porque "recoloca a Constituição Federal e a lei no comando das decisões judiciais". Embora destaque o caráter instável da decisão, ainda pendente de confirmação, Vilardi destaca que os procedimento adotados contra seus clientes "são absolutamente ilegais e contrariam os precedentes do STJ e do STF". A suspensão do processo, aponta, "é absolutamente prudente porque além de proteger os pacientes protege a credibilidade da Justiça, já que não é dado ao agente público constranger ou punir alguém com base em elementos acusatórios nulos".

Para um ministro do STF que não quis se identificar, De Sanctis se qualifica como "um lídimo corifeu do direito penal do inimigo: aquela escola que vê o acusado, o réu, como inimigo e assim o trata". Juízes que praticam o magistério punitivo, continua, "veem a justiça como vingança, não praticam a isenção nem o distanciamento em seu ofício, mostram os traços claros de Torquemada".

Essa visão vingativa na atividade judicante, continua o ministro, já foi condenada e chamada de "direito penal simbólico" por pretender o exemplo por meio da severidade da punição e da inclemência. O aprofundamento dessa noção chamou-se "direito penal do inimigo". A chama justiceira transparece ao longo da história em diversos momentos sob a etiqueta do "direito penal de autor" em que as pessoas não são condenadas pelo que fizeram, mas pelo que são: ora por ser negro, ora por ser judeu, ora por ser comunista, ora por ser pobre e agora por ser rico.

O cenário persecutório vivido hoje no Brasil já foi enfrentado nos Estados Unidos, com comoção semelhante. Lá também verificou-se divisão na sociedade com a reação conservadora aos avanços da Suprema Corte.

"Não deixa de ser curioso ver jovens juízes abraçarem com tanta aflição o modelo inquisitorial e se arrojarem contra a visão liberal do processo penal, que é resultado de séculos de debates e avanços no pensamento civilizatório", afirma o ministro. Nesse plano, o juiz De Sanctis coloca-se como um fundamentalista do Direito Penal Simbólico. 

Para o julgador, é compreensível a fadiga com um modelo de impunidade calcado no abismo social da desigualdade, "mas não se pode corrigir a desigualdade e o desequilíbrio comprometendo os valores estratificados em torno de princípios básicos que protegem os direitos individuais do cidadão". Ou, em português claro: não se consegue corrigir injustiça contra um setor da população praticando injustiças contra outro.

Leia a íntegra da decisão

HABEAS CORPUS Nº 159.159 – SP (2010/0004039-3)

IMPETRANTE : CELSO SANCHEZ VILARDI E OUTRO
IMPETRADO : TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3A REGIÃO
PACIENTE : PIETRO FRANCESCO GIAVINA BIANCHI
PACIENTE : DÁRCIO BRUNATO
PACIENTE : FERNANDO DIAS GOMES
 
DECISÃO
 
Neste habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, os impetrantes alegam que os pacientes tiveram afrontadas as suas garantias processuais por ter sido deflagrada, contra eles, no âmbito da 6ª Vara Federal da SJ/SP, uma Ação Penal calcada em Procedimento Criminal Diverso-PCD, iniciado no âmbito do Departamento da Polícia Federal, instaurado com base em uma delação anônima e secreta, do que decorreu, sem sequer uma mínima averiguação prévia, a quebra de sigilo telefônico, ademais em decisão desfundamentada e genérica (alcançando todos os usuários do serviço de telefonia), tendo as escutas sido prorrogadas – também sem fundamentação – por período superior a 14 meses, já aí alcançando os pacientes.
 
Antes deste HC, de que ora se cogita, os pacientes ingressaram com idêntica medida no colendo TRF da 3ª Região, tendo a sua egrégia 2ª Turma, aqui apontada como autoridade coatora, se omitido de julgar as teses jurídicas por eles apresentadas àquela Corte, em que vindicaram a nulidade da Ação Penal referenciada, pelos vícios acima expostos.
 
Os impetrantes reclamam que ao egrégio TRF de origem não era cabível deixar de apreciar e julgar como entendesse de direito as alegações que os pacientes lhe submeteram, para o que teriam que levar em conta, obviamente, os argumentos deduzidos na postulação e a documentação constante do processo.
No entanto, assim não agiu tendo para tanto se valido, como consta nas razões de decidir, de uma estranha e intempestiva comunicação secreta não apensada aos autos, constante de ofício reservado passado pelo Juiz Federal da 6a. Vara da SJ/SP à Relatora do feito mandamental no TRF, cuja existência só foi anunciada no instante do julgamento (e ainda assim só depois da sustentação oral formulada naquela ocasião), onde constaria a informação de que a deflagração referida estava alicerçada em denúncia anônima e apurações preliminares levadas a efeito pelo Departamento de Polícia Federal.
 
Apontam, ainda, os impetrantes, em reforço da alegação de que essas investigações preliminares não se acham autuadas, o fato de o próprio Magistrado, no tal ofício secreto, ter solicitado que a informação repassada nesse mesmo expediente sigiloso não fosse juntada aos autos do pedido de Habeas Corpus.
 
Registro que o pedido de tutela mandamental neste HC é apenas para sustar o trâmite da Ação Penal 2009.61.81.006881-7, da 6ª Vara Federal da SJ/SP, e os demais feitos a ela relacionados, tendo em vista a ilicitude das provas coligidas, somente até o julgamento do mérito desta impetração, cujo núcleo é o reconhecimento da ilicitude das provas obtidas nas interceptações telefônicas constantes dos autos do PCD 2008.61.81.000237-1, da mesma Vara Federal, para ulterior aplicação do art. 157 do CPP e do seu § 1º.
 
Esses dispositivos do CPP proclamam que são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais, e também as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.
 
Passo a decidir.
 
01. Cabe-me apreciar neste HC tão só e apenas o pedido de medida liminar, cuja cognição é essencialmente limitada à verificação da presença simultânea da aparência de bom direito e da iminência de dano de monta a esse mesmo direito, de forma a impor a necessidade de concessão de tutela de eficácia imediata ou prontíssima, no interesse processual de colocar a salvo de desgaste a inteireza da relação jurídica subjetiva para a qual se postula a proteção judicial mandamental.
 
Em razão da sua precariedade, a tutela judicial liminar não tem a força de constituir ou desconstituir situação substantiva consolidada, senão somente a de preservá-la ou conservá-la ou ainda de acautelar ou evitar a ocorrência de prejuízo relevante ao direito da parte que a postula, quando esse direito se mostrar visível ao primeiro exame, vale dizer, se mostrar aparente, ainda que a conclusão quanto à sua existência e consistência seja provisória ou modificável.
 
02. Cumpre observar que o sistema jurídico do País e o seu ordenamento positivo não aceitam que o escrito anônimo possa, em linha de princípio e por si, isoladamente considerado, justificar a imediata instauração da persecutio criminis, porquanto a Constituição proscreve o anonimato (art. 5º, IV), daí resultando o inegável desvalor jurídico de qualquer ato oficial de qualquer agente estatal que repouse o seu fundamento sobre comunicação anônima, como o reconheceu o Pleno do STF no julgamento do INQ 1957, Rel. Min. Cézar Peluso (DJU de 11.11.2005), ainda que se admita que possa servir para instauração de averiguações preliminares, na forma do art. 5º, § 3º, do CPP, ao fim das quais se confirmará – ou não – a notícia dada por pessoa de identidade ignorada ou mediante escrito apócrifo..
 
Nesta Corte Superior a orientação dos julgamentos segue esse mesmo roteiro, destacando dentre muitos e por todos o que decidido no HC 74.581 (Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU 10.03.2008) e no HC 64.096 (Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJU 04.08.2008).
 
No exame da presente hipótese, tenho como fortes os indicativos de que a referida delação anônima serviu diretamente à instauração das medidas persecutórias no Juízo da 6ª Vara Federal da SJ/SP, conforme se pode claramente ler na solicitação do Juiz do feito, no ofício reservado que encaminhou à Relatora do HC no TRF da 3ª Região, no qual postula que a informação ali prestada não seja juntada aos autos do pleito mandamental.
 
Essa circunstância, que em outros contextos até poderia ser eventualmente irrelevante, sugere que as mencionadas investigações preliminares, se é que foram realmente encetadas, não tiveram os seus resultados postos nos autos ou foram subtraídos ao exame dos pacientes, o que não é abonado pelas normas legais que regem as atividades investigatórias pré-processuais.
 
03. Noutro viés, a teor do art. 93, IX, da Constituição, é de curial sabença que a fundamentação é requisito de validade de qualquer decisão judicial.
 
Ora, com muito maior razão há de se ver que terá de ser ainda mais fortemente fundamentada a decisão que excepciona, anula e afasta os sigilos assegurados na Carta Magna, que decorrem de conquistas civilizatórias, por isso mesmo que é diretriz uniforme da jurisprudência das Cortes e das lições da doutrina jurídica a sua exigência impostergável a não tolerar que o afastamento daquelas garantias se faça de modo banal ou simples, calcada apenas, por exemplo, na comodidade da coleta de indícios ou produção de provas. Assim é que se requer, como anotam os impetrantes, que a quebra do sigilo telefônico só se dê por decisão exaustivamente fundamentada e individualizada.
 
Examinando-se demoradamente a situação retratada neste HC, verifica-se que não passou à margem da acuidade do douto Procurador da República que era por demais genérico o primeiro pedido de quebra de sigilos telefônicos por isso mesmo que não o acolheu, devolvendo-o à Autoridade Policial, que, por seu turno, reiterou-o assentando que o seu pleito fora genérico de propósito, mas mesmo assim o MPF o aceitou, de idêntico modo procedendo o Juiz Federal da 6ª Vara da SJ/SP.
 
04. Desponta, noutro passo, o fato de que a quebra do sigilo telefônico deu-se por prazo superior a 14 meses, ainda que por períodos renovados, o que abala o decidido pela eg. 6ª Turma deste colendo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC n. 76.686 (Rel. Min. Nilson Naves, DJU 10/11/2008).
 
05. Não fico desatento, de mais a mais, nessa primeira análise, que a ordem para quebra do sigilo tinha uma abrangência tão ampla e irrestrita que poderia até invadir a reserva de intimidade de toda e qualquer pessoa que se utiliza dos sistemas de telecomunicações, como, aliás, observaram, assustadas, as empresas de telefonia (fls. 642/643).
 
06. Pelo tanto exposto, confesso-me convicto que o contexto dos autos evidencia que a Ação Penal em apreço se mostra fortemente impactada pelos argumentos jurídicos trazidos pelos impetrantes, fazendo surgir aquela aparência de bom direito, ou seja, a plausibilidade de o direito invocado vir a receber tutela de mérito positiva, como igualmente antevejo que a persistência da mesma Ação Penal causa aos pacientes dano jurídico de monta, decorrente da própria existência do processo em condições aparentemente injurídicas, vulnerando-lhes direito subjetivo que cumpre ser resguardado.
 
Por outro lado, a tutela judicial liminarmente postulada não acarreta o trancamento da Ação Penal em apreço, não liberta pessoas detidas, não disponibiliza patrimônios constritos e não produz efeitos definitivos sobre o mérito da pretensão punitiva; porém, a sua continuidade e assim como dos feitos que derivam do mesmo PCD lavra contra os pacientes efeitos particularmente lesivos, por submetê-los a processo penal aparentemente eivado de insanáveis vícios, isso só já representando um constrangimento ilegal a que se deve pôr cobro de imediato, em atenção ao direito fundamental que tem toda pessoa de não sofrer ação punitiva sem a observância das suas garantias processuais.
 
Nessas condições, considerando que se o referido PCD não for objeto de suspensão imediata, poderá lastrear ações penais outras, criando contra os pacientes situações plurais de constrangimento ilegal, defiro a suspensão provisória imediata do trâmite da mencionada Ação Penal e das iniciativas sancionatórias que têm por supedâneo os elementos colhidos no PCD 2008.61.81.000237-1, da 6ª Vara Federal da SJ/SP, até o julgamento de mérito deste HC pela Turma a que couber a sua distribuição, obviamente sem embargo de o seu Relator, que conduzirá o feito a partir do dia 1o de fevereiro do corrente ano, poder alterar os termos, o alcance ou o conteúdo desta decisão, o que faço com esteio do art. 83, § 1º, do Regimento Intento do STJ, que atribui ao Presidente, nos feriados e nas férias coletivas, decidir pedidos de liminar em mandado de segurança e habeas corpus.
 
Comunique-se com urgência o inteiro teor desta decisão ao egrégio TRF da 3ª Região e ao Juízo da 6ª Vara Federal da SJ/SP, para que lhe seja dado integral cumprimento; após, distribua-se este feito em forma regular para ser submetido ao seu Relator logo após o recesso da Corte.
 
Publique-se.
Intime-se.
Brasília, 14 de janeiro de 2010.
MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA
Presidente

 

Texto alterado às 6h40 de 15/1 para acréscimo e correção de informações.

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