Dança das cadeiras

A triste realidade do Tribunal de Justiça da Bahia

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9 de janeiro de 2010, 8h59

Recentemente, o Tribunal de Justiça da Bahia elegeu uma nova mesa diretora para o biênio 2010/2011. A desembargadora Telma Britto, atual corregedora-geral, foi eleita em segundo turno com 18 votos de seus pares. Sua concorrente foi a desembargadora Lícia Laranjeira, que não fazia parte da atual mesa e obteve 11 votos, totalizando 29 votantes.

A primeira vice-presidente será a desembargadora Maria José Sales Pereira, atual Corregedora das Comarcas do Interior; a segunda vice-presidente será a desembargadora Lealdina Torreão, atual primeira vice-presidente; o Corregedor Geral da Justiça será o desembargador Jerônimo dos Santos, atual segundo vice-presidente e a desembargadora Lícia Laranjeira, derrotada na disputa pela presidência, será a Corregedora das Comarcas do Interior.

No final da história, depois de encerrada a música, a atual presidente, desembargadora Sílvia Zarif, não participou da disputa e ficou sem assento e a desembargadora Lícia Laranjeira tomou o assento da Corregedoria das Comarcas do interior. As demais cadeiras foram tomadas pelos mesmos que já estavam sentados na gestão atual, trocando apenas de lugar. Além de parecer aquela brincadeira para ver quem senta primeiro quando se interrompe a música, uma eleição nestes moldes faz também lembrar um conclave para a sucessão papal na Capela Sistina, testemunhado apenas pelos belíssimos afrescos de Michelangelo.

A fumaça branca que precede o tradicional “Annuntio vobis gaudium magnum: habemus papam”, agora é substituída por um breve comunicado aos pobres mortais no “site” oficial: “temos presidente.”

Aliás, para uma eleição definida por um colégio de 33 votantes — a composição atual do TJ-BA — não se pode esperar muitas novidades. Além disso, conforme a norma regimental, apenas os mais antigos podem ser eleitos. Não há lugar para surpresas nesta eleição. Se existem cinco cadeiras vagas, cinco serão os concorrentes. Por coincidência, os mais antigos. Assim, tal qual na Capela Sistina, existem os que votam e os poucos que podem ser votados. São os Cardeais da Igreja de Roma. No mais, no caso específico do TJ-BA, como sempre aconteceu, a magistratura de primeiro grau acompanhou através da imprensa as articulações em torno de candidaturas, ficou sabendo da existência do “grupo” deste ou daquela Desembargadora, não participou das discussões sobre as propostas dos candidatos e, entra ano e sai ano, recolhe-se à sua insignificância e ao cumprimento de metas a qualquer custo.

Sendo assim, o (a) eleito é consequência de articulações de uma cúpula e com esses poucos, portanto, deve decidir e determinar o que deve ser feito por muitos, os da base, os que “carregam o piano”, os que estão nas Comarcas mais longínquas na labuta diária da judicatura e os primeiros na linha de frente da prestação jurisdicional. Não existe cumplicidade alguma, portanto, entre a cúpula eleita por poucos e a magistratura de primeiro grau, o que torna, muitas vezes, verdadeira a recíproca, ou seja, também não existe cumplicidade entre a base e a cúpula, pois divergentes os interesses e as expectativas. É como se um grande fosso separasse a cúpula do Tribunal da magistratura de primeiro grau.

É um processo em que a democracia, em pleno século XXI, passa ao largo. Ora, nenhum Regimento, nenhuma decisão de Tribunal Superior e nenhuma Lei podem justificar um processo eleitoral dessa natureza. Não existe mais lugar na sociedade para imposições e decisões tomadas pelo alto. Aliás, nem mesmo nas relações familiares se aceita mais imposições.

Com efeito, no século XXI, a mulher trabalha fora, vota e participa plenamente da vida social. Acabou-se o tempo da subserviência ao marido. Da mesma forma, os filhos questionam, participam e se rebelam contra todas as formas de mando de seus genitores. Ao Tribunal de Justiça da Bahia, portanto, faltou coragem e disposição para mudar, em favor da democracia, a forma de escolher sua mesa diretora.

Sendo assim, para a magistratura de primeiro grau, como consequência, reina um verdadeiro “salve-se quem puder” ou “farinha pouco, meu pirão primeiro”, pois se sentem descompromissados com a proposta dos eleitos e sem referencial para sua própria atuação e ações cotidianas. É incompreensível que alguém, de outro lado, eleito por este formato fora de moda, possa exigir “gestão democrática”, “planejamento estratégico” e outras novidades “empresariais” se não apresenta uma prática democrática como exemplo a ser seguido. Tudo o que dirá neste sentido, consequentemente, soará como falso e não repercutirá a ponto de contribuir para a construção de um poder verdadeiramente democrático e voltado à realização da Justiça.

Evidentemente que esta situação não é de responsabilidade deste ou daquele desembargador em particular, dos eleitos ou dos derrotados, mas consequência de uma estrutura secular, extremamente formalista, atrasada, paquidérmica e fora de sintonia com a contemporaneidade. O mundo tornou-se rápido, dinâmico, pequeno e, ao mesmo tempo, extremamente complexo. O Poder Judiciário, de sua vez, como se adormecido em um longo e secular sono, continua com seus rituais quase medievais e em desarmonia com o mundo contemporâneo.

Não bastasse isso, o Poder Judiciário da Bahia ainda tem suas particularidades que colaboram na manutenção e fortalecimento dessa contradição. Como exemplo, tome-se a composição do Tribunal de Justiça.

Pois bem, a Bahia é o 4º Estado em população, ficando atrás de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro e à frente do Rio Grande do Sul e Paraná. Porém, apesar da previsão legal de 53 desembargadores, o Tribunal da Bahia conta atualmente com 33 desembargadores, ou seja, 62% do previsto em Lei. Enquanto isso, o Tribunal de Justiça de São Paulo conta com 355 desembargadores, Minas Gerais conta com 120 desembargadores, Rio de Janeiro conta com 180 desembargadores, Rio Grande do Sul conta com 140 Desembargadores e Paraná com 120 desembargadores.

Em resumo:

1) Informação oficial do IBGE para o ano de 2007

Esses números dispensam comentários e nos causa um forte desânimo. De um lado, essa absurda desproporcionalidade implica, sem dúvidas, na morosidade dos julgamentos dos recursos e na dificuldade de inovações e criatividade nos julgamentos, seguindo-se, quase sempre, os "precedentes" da própria corte. De outro lado, o número reduzido de Desembargadores termina transformando o Tribunal de Justiça da Bahia em local de acesso quase proibido por grande parte da magistratura de primeiro grau. Por fim, é o poder extremamente concentrado nas mãos de uns poucos e, sendo assim, mais fácil de ser mantido e controlado.

Para complicar ainda mais a situação, a Lei de Organização Judiciária da Bahia prevê um quadro de 1.063 juízes no primeiro grau, mas somos hoje apenas 563 juízes, ou seja, apenas 52% da previsão legal. Isto significa dizer que o judiciário baiano funciona, em primeiro grau, com praticamente metade dos juízes necessários e, no segundo grau, com apenas 62% do número de desembargadores previsto em lei, o que ainda não seria suficiente em relação à população do Estado e em comparação com outros Estados. Proporcionalmente, a Bahia deveria contar, no mínimo, com 150 desembargadores, mas conta atualmente com apenas 33 Desembargadores.

Como se ainda não fosse pouco, a estrutura do gabinete do Juiz da Bahia é ele e ele mesmo. Enquanto isso, no Rio de Janeiro, por exemplo, a estrutura do gabinete do juiz é composto de “Secretário do Juiz, um Auxiliar de Gabinete e dois Assistentes de Gabinete, podendo ter auxílio de estagiários de Direito.”

É esta, portanto, a triste realidade do Poder Judiciário da Bahia. Um Poder sem democracia interna, extremamente concentrado, sem transparência em sua gestão, pequeno demais para a população do Estado, sem a estrutura necessária à boa prestação do serviço e sem solução a curto prazo, pois trabalha no “limite prudencial” do repasse da verba do Executivo estadual.

Essa aparente fortaleza, porém, tem se quedado humildemente às ingerências do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Não se rebelou uma única vez, aceitou o CNJ tornar sem efeito decisões do próprio Tribunal Pleno, cortou direitos e vantagens de juízes e servidores a mando do CNJ e a presidente que ora encerra sua gestão, em determinado momento, chegou a afirmar, publicamente, que o CNJ não estava mais atendendo, sequer, suas ligações telefônicas.

A conclusão a que se chega, finalmente, é que o Poder Judiciário da Bahia só ainda funciona por conta da dedicação de seus servidores, apesar da falta de estrutura e reciclagem, e de alguns Desembargadores e Juízes (com D e J maiúsculos) abnegados e vocacionados. São magistrados que não veem a magistratura como um bom emprego ou como a possibilidade de ficar rico, mas como a atividade necessária e fundamental na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, fundada na cidadania e dignidade da pessoa humana, conforme determina a Constituição Federal de 1988.

 

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