Outro rumo

Mudança de perspectiva do Direito Penal será em 2010

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1 de janeiro de 2010, 6h00

Nenhum estudioso do Direito Penal tem dúvida de que o caminho para a concretização de um programa criminal democrático ainda é longo. A criminologia, analisando o contexto atual, tem alertado para o fato de vivermos numa crescente onda ideológica de controle dos riscos por meio de intervenções estatais repressivas.

A sociedade, mergulhada na síndrome do medo e das incertezas, e preocupada com o dia de amanhã, acredita num Direito Penal “médico” e “curativo”, capaz de salvar o futuro da humanidade com as promessas das normas proibitivas. O imaginário comum afasta-se, por conseguinte, daquilo que Winfried Hassemer chama de “direito penal nuclear” em sua obra Direito Penal Libertário.

Acompanhando essa realidade distorcida, e respaldando a filosofia do medo, os parlamentares cada vez mais inauguram projetos de lei criminalizadores. Para lidar com os riscos e proteger a sociedade, até a comercialização de jogos violentos entrou na roda viva da punição (Projeto de Lei 160/2006). Tudo em nome da “salvação” (sic) das nossas crianças e jovens, como se uma norma de natureza criminal fosse o meio adequado para tanto.

Por outro lado, continuam em voga regras sem sentido no mundo do direito. O maior exemplo, talvez, seja a norma que proíbe a “vadiagem” (art. 59 da Lei de Contravenções Penais), que recentemente foi resgatada em Assis, no interior do São Paulo, para prender aqueles que passam os dias nas ruas sem fazer nada.

Tais distorções, que são apenas duas no meio de muitas, só podem ser corrigidas a partir de uma “paralaxe” na visão da função do direito penal na sociedade. E isso necessariamente deve passar pela mudança contextual das disciplinas penais.

A transformação, conforme nos ensinou Salo de Carvalho em seu Antimanual de Criminologia, deve partir do hoje dominante “paradigma dramático”, que vê o direito penal como instrumento de transformação do “homem delinqüente” e de pacificação social, para um “paradigma trágico”, ou seja, pessimista com relação às promessas metafísicas dos tipos criminais, da ressocialização da pena, enfim, do (indemonstrável) caráter anestésico e curativo do Direito Penal.

Intervenções normativas na realidade devem respeitar a noção de que estamos inseridos num contexto de risco, e de que cada vez mais são necessárias medidas técnicas e organizacionais desvinculadas da seara criminal. A vinculação da Bondade ao Direito Penal deve ser transmudada para a vinculação de uma Tragédia, no sentido de que toda e qualquer manifestação de poder, por definição, alberga uma tendência prejudicial à liberdade e aos direitos fundamentais dos indivíduos.

Por evidência, a pré-compreensão de que o Direito Penal é muito mais um aparato utópico de apaziguamento de perigos do que uma fonte material de Bondade e pacificação social é uma condição de possibilidade não só para a elaboração de leis penais adequadas, mas sobretudo para a correta aplicação das normas que já estão vigentes.

Esse pré-entendimento, derivado da mudança de perspectiva, é, portanto, indispensável não só ao “enxugamento” legislativo a que se refere Luigi Ferrajoli em Direito e Razão, mas também à concretização judicial dos direitos e garantias fundamentais, evitando-se o surgimento de juízes-promotores, juízes-produtores-de-prova, enfim, juízes com a síndrome de Nicholas Marshall, muito bem retratados por Alexandre Morais da Rosa.

2010 talvez seja o ano oportuno para que legisladores e juízes reflitam sobre as críticas atuais da criminologia e a nova realidade do Direito Penal. Lutemos, nesse ano que se inaugura, para a concretização do verdadeiro Estado Democrático de Direito, e não de um Estado “Penal” descompromissado com os direitos fundamentais.

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