Lacre da cerveja

Juiz rejeita denúncia contra empresários e advogado

Autor

18 de fevereiro de 2010, 16h51

A guerra travada por conta do lacre protetor nas latas das cervejas Itaipava e Crystal foi parar na esfera penal. O juiz Roberto Câmara Lacé Brandão, da 31ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, rejeitou denúncia em que o Ministério Público acusava os diretores da Cervejaria Petrópolis, que fabrica as cervejas, o advogado da empresa e um publicitário por propaganda enganosa devido ao lacre.

“A presente investigação foi instaurada a pedido de um sindicato que representa interesses de concorrentes da empresa administrada pelos dois primeiros réus”, escreveu o juiz na decisão. Ele disse que não há registro de reclamações de consumidores sobre a qualidade ou os efeitos dos produtos da cervejaria nem do selo protetor. “O Ministério Público, neste feito, abraça os argumentos do Sindicerv como se fossem isentos de interesses outros (em especial econômico) e, com base neles, forma sua convicção acusatória, em que pese a fragilidade dos elementos informativos colecionados no inquérito”, escreveu o juiz.

O juiz disse que até mesmo o relatório final da autoridade policial afirmou não ter tido êxito nas investigações, já que havia laudos conflitantes, apresentados pelas partes interessadas, e outros que não apresentaram conclusões. “Os elementos informativos que instruem o presente feito não fornecem indícios mínimos acerca da existência de crime contra as relações de consumo, na modalidade de propaganda enganosa. A inicial deve ser rejeitada por ausência de justa causa.”

A perícia usada para fundamentar as acusações pelo MP, disse o juiz, “configura peça técnica unilateral de parte nitidamente interessada”. Segundo Brandão, não há nada no inquérito que indique a existência de dolo dos réus.

Guerra empresarial
A briga das empresas fabricantes de cerveja na esfera empresarial não ficou de fora da decisão de Brandão. O Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja e da Associação das Indústrias de Refrigerantes, formado por cinco grandes associados (Ambev, Cerva, Cervejaria Cintra, Cervejarias Kaiser do Brasil e Indústria Nacional de Bebidas), chegou a ser proibido de veicular campanha contra o lacre nas latinhas de cerveja.

O anúncio publicitário tratava da higiene das latas de cerveja e foi feito em tom de campanha educativa. Os desembargadores do TJ paulista entenderam que a propaganda poderia induzir o consumidor a não comprar a marca Itaipava, que usa o selo protetor, e prejudicar o produto da Cervejaria Petrópolis.

Leia a decisão

Vistos etc.

A denúncia de fls. 02/02i foi recebida, nos termos da decisão de fls. 479. Os quatro acusados foram pessoalmente citados, consoante certidões de fls. 795 e 800v. A defesa do 1º réu, Walter Faria, apresentou resposta às fls. 534/548, acostando aos autos os documentos de fls. 549/603 (também foram colecionados, pela defesa do 1º réu, os elementos de fls. 610/625).

A defesa do 2º réu, Cleber da Silva Faria, apresentou reposta às fls. 627/644, acostando aos autos o documento de fls. 645. A defesa do 3º réu, Jaime Luis Tronco, apresentou resposta às fls. 646/668, acostando aos autos os documentos de fls. 669/755. A defesa do 4º réu, Marcello de Souza Sant’Anna, apresentou resposta às fls. 758/784, acostando aos autos o documento de fls. 785.

Ouvido, o Ministério Público se manifestou às fls. 803v, ´aguardando despacho saneador´.

É o breve relato.

Decido.

1 – Walter Faria (1º réu), Cleber da Silva Faria (2º réu) e Jaime Luis Tronco (3º réu), apontados, respectivamente, como Presidente, Diretor Comercial e Representante Legal da empresa Cervejaria Petrópolis S/A., bem como Marcello de Souza Sant’Anna (4º réu), este último na qualidade de Sócio-Diretor da empresa Multi Solution Publicidade e Comunicação Ltda., foram denunciados como incursos nas penas do art. 7º, VII, da Lei nº 8.137/90, pois, de acordo com as imputações lançadas na inicial acusatória, sabedores da ineficácia do denominado ´selo protetor´ (lacre de alumínio fixado na parte superior das latas de cerveja das marcas Itaipava e Crystal), os réus teriam promovido e difundido falsa informação do produto comercializado, induzindo, mediante propaganda enganosa, o consumo das cervejas Itaipava e Crystal, atribuindo aos produtos qualidade falsa.

Em bom resumo, o Ministério Público afirma, em sua inicial, que os elementos informativos do inquérito ´ATESTAM QUE O CHAMADO ´SELO DE PROTEÇÃO´ NÃO FORNECE GARANTIAS DE SEGURANÇA AO CONSUMIDOR COMO ALEGADO NAS PROPAGANDAS, uma vez que nas condições usuais (transporte, armazenagem e/ou resfriamento), o selo não mantém sua integridade, o que, por via indireta, permite uma maior contaminação e retenção de sujidades no seu bocal´. Mesmo sabedores dessas circunstâncias, os réus, ´em franca deflagração de práticas lesivas e abusivas decorrente de estratégia de mercado agressiva e inconseqüente´, preferiram, de forma reiterada, no período entre 2003 e a data da denúncia (08/07/09), veicular campanha publicitária ´falsa e lesiva´, induzindo ´milhares de consumidores a erro´ (fls. 02/02i – grifos da peça original citada).

Em suas respostas (fls. 534/548, 627/644, 646/668 e 758/784), as defesas dos quatro acusados sustentam, em síntese: (1) a atipicidade da conduta, por ausência de dolo (a defesa do 3º réu enfatiza, inclusive, que Jaime Luis Tronco não exerce qualquer poder de gestão, sendo única e exclusivamente ´o advogado da empresa´ Cervejaria Petrópolis); (2) ausência de justa causa, diante de carência de elementos informativos colecionados no inquérito (enfatizando, nesse ponto; a existência de termo de ajustamento de conduta, firmado com o Ministério Público, situação que ensejaria ´causa extralegal de exclusão de ilicitude´; o relatório sem êxito apresentado pela autoridade policial às fls. 420/433), acarretando a inépcia da inicial; (3) atipicidade material pela ausência de lesão ao bem jurídico protegido, com base nos princípios da lesividade e intervenção mínima; almejando, por tais razões, a rejeição da denúncia.

Total razão assiste as defesas dos demandados.

Os elementos informativos que instruem o presente feito não fornecem indícios mínimos acerca da existência de crime contra as relações de consumo, na modalidade de propaganda enganosa. A inicial deve ser rejeitada por ausência de justa causa.

Conforme destacado na decisão de fls. 15/16 do Anexo I (apenso relativo a argüição de suspeição oposta pela Cervejaria Petrópolis S/A. em face do i. Promotor de Justiça Titular da 17ª PIP), o relatório final da autoridade policial (fls. 420/423) informava a ausência de êxito na investigação, destacando a existência de laudos conflitantes (apresentados pelas partes interessadas) em conjugação com os laudos inconclusivos obtidos na inquisa.

Conseqüentemente, as peças técnicas utilizadas pelo Ministério Público para firmar seu convencimento já encontravam, na fase inquisitorial, oposição de laudo pericial (fls. 96/105) elaborado pelo Instituto de Ciências Biomédicas do Departamento de Microbiologia da USP (Universidade de São Paulo).

Os pesquisadores da USP, em estudo realizado nos idos de 2002 (fevereiro), concluíram que os lacres (cuja eficácia vem sendo contestada pelo parquet nesta ação penal) seriam efetivos, impedindo ´a proliferação fúngica e bacteriana, acompanhando-se o tempo de incubação e estudo após 25 dias´ (fls. 96/105).

Os exames realizados no curso da investigação que deu gênesis ao presente feito (laudos de exame em material efetivados pelo ICCE), por seu turno, concluem no mesmo sentido, seja, de que nas amostras verificadas ´não foi evidenciado o crescimento de microorganismos´ (fls. 182/183, 190/191 e 201/202 – grifos do original).

Na decisão de fls. 604/605 (trasladada para os autos da medida cautelar inominada em apenso – fls. 61/62 daqueles autos), em que foi concedido efeito suspensivo ao apelo interposto pelo 1º réu (atacando a decisão que impõe aos denunciados a obrigação negativa de se abster de promover propaganda relativa ao selo protetor – fls. 09/10 dos autos da cautelar em apenso), já restara destacado que, na fase inquisitorial, ´NENHUM LESADO FOI OUVIDO, OU MESMO IDENTIFICADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO´, sendo que a investigação foi instaurada diante dos reclamos do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv).

Logo, a perícia utilizada pelo parquet para fundamentar suas imputações configura peça técnica unilateral de parte nitidamente interessada. Nada, absolutamente nada no inquérito indicia a existência de dolo de qualquer dos demandados.

Sem qualquer indício seguro nesse sentido (de que qualquer dos acusados soubesse, previamente, da suposta ineficácia do selo protetor antes da divulgação do material publicitário), não há justa causa para as imputações formuladas na inicial. Seria preciso supor que o laudo da USP (fls. 96/105) teria sido elaborado de forma fraudulenta, para visualizar qualquer indício de participação dolosa dos gestores da Cervejaria Petrópolis na alegada propaganda enganosa (crime contra as relações de consumo).

Como dito acima, a prova técnica elaborada a pedido da autoridade policial (fls. 182/183, 190/191 e 201/202) não fornece elementos informativos que dêem suporte à qualquer suposição de fraude na elaboração do parecer técnico firmado por peritos da USP (fls. 96/105).

A questão fica mais evidente ainda, quando examinada a alegada participação do advogado (3º réu) e do publicitário (responsável pela campanha junto à mídia – 4º réu) no evento aqui investigado. O réu Jaime Luis Tronco, gerente jurídico da Cervejaria Petrópolis (fls. 716/718), seria mero funcionário da empresa fabricante do produto (cuja eficácia é aqui questionada), advogado da empresa (fls. 719), não havendo no inquérito nada que possa permitir a suposição de participação dolosa em eventual fraude no laudo da USP. Idem, com relação ao publicitário (4º réu), a princípio mero prestador de serviço.

Ou seja, diante do laudo de fls. 96/105, qualquer gestor estaria habilitado a contratar a propaganda exibida. Ainda que o resultado da perícia elaborada pela USP pudesse ser eventualmente contestado, os elementos do inquérito não forneciam indícios de atuação dolosa de quaisquer dos denunciados.

A inicial, portanto, é inépta por ausência de justa causa – impõe-se a rejeição da denúncia. Afinal, a figura típica imputada aos demandados apenas admite a modalidade dolosa. Merece destaque, outrossim, o fato de que a matéria aqui em debate vem sendo alvo de acirrada disputa judicial (tanto no Estado de São Paulo, quanto no Estado do Rio de Janeiro) na esfera cível.

A presente investigação foi instaurada a pedido de um sindicato que representa interesses de concorrentes da empresa administrada pelos dois primeiros réus (ver fls. 08/14 do feito principal). Seja, não há um registro sequer de reclamos de consumidores, no que tange à qualidade, ou aos efeitos, dos produtos da Cervejaria Petrópolis (cerveja) e do selo protetor (embalagem) impugnado.

Pior, os documentos acostados aos autos pelas defesas revelam que o Sindicerv vem sendo compelido judicialmente a se abster de promover propaganda contra o selo protetor (objeto de análise na presente ação penal).

O histórico dessa disputa está perfeitamente documentado pela defesa do 3º demandado. A matéria publicitária encomendada e exibida pelo Sindicerv (fls. 670/679) acarretou as decisões de fls. 680/687, 688/690, 691/696 e 698/699.

No Estado de São Paulo, a questão também foi levada ao Poder Judiciário, resultando nas decisões de fls. 700/703, 704/707 e 708/714. Todas essas decisões são favoráveis aos interesses dos demandados.

O v. acórdão de fls. 708/714 (com cópia às fls. 54/60 dos autos da cautelar em apenso) revela que, em recente julgamento (acórdão proferido em 12/02/09), a C. Quarta Câmara de Direito Privado do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo rechaçou pretensão recursal do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv), no qual se pretendia afastar restrição publicitária (obrigação de não fazer imposta judicialmente, em liminar concedida à Cervejaria Petrópolis S/A) de divulgação de anúncio no qual o Sindicato recorrente afirmava a ineficácia do selo de alumínio inserido em latas de cerveja.

Em decisão unânime, a Corte Paulista considerou que os laudos elaborados unilateralmente seriam insuficientes para ensejar prova segura acerca do alegado pelo agravante e que seria ´impertinência de sindicato imiscuir-se em questão que afeta a concorrência acirrada entre fabricantes de bebida´ (grifos do Juízo).

Há, portanto, decisões judiciais que vedam a divulgação da propaganda elaborada pelo Sindicerv (atacando a eficácia do selo protetor utilizado nos produtos da Cervejaria Petrópolis).

O Ministério Público, neste feito, abraça os argumentos do Sindicerv como se fossem isentos de interesses outros (em especial econômico) e, com base neles, forma sua convicção acusatória, em que pese a fragilidade dos elementos informativos colecionados no inquérito. – Resultado: obtém uma liminar proibindo os gestores da Cervejaria Petrópolis de divulgarem o diferencial de seu produto (selo protetor na embalagem).

Com isso, a matéria ganha destaque na mídia (ver fls. 715). Ou seja, mesmo proibido por decisão judicial, o Sindicerv consegue, via obliqua, promover propaganda contra o selo protetor da empresa dos dois primeiros demandados.

Ressalta-se, aqui, no que tange à notícia de fls. 715, que a AMBEV não formalizou, em momento algum, qualquer pedido de habilitação como assistente de acusação. Indaga-se: o Sindicerv estaria, de fato, advogando interesses da AMBEV?

No contexto de todo esse litígio (patrimonial/empresarial), pessoas são acusadas de crime. Como visto acima, os elementos informativos que instruem o inquérito não fornecem indícios suficientes para visualização do elemento subjetivo do tipo imputado aos réus.

Não há qualquer elemento de prova, ainda que indiciária, que confirme, ou aponte, a participação dolosa de quaisquer dos réus no crime contra as relações de consumo ventilado na inicial acusatória.

A ausência de justa causa resta evidente! O processo penal já configura, por si só, um constrangimento. Instaurada da forma que foi, sem amparo em qualquer elemento informativo idôneo, a ação penal aqui analisada se revela descabida e o constrangimento resultante do processo deve ser tido como ilegal e afastado de pronto, ensejando inclusive (em sede de HC) o trancamento do feito. Isso tudo sem considerar a alegada existência de um termo de ajustamento de conduta (supostamente firmado com o Ministério Público), pacto que, segundo as defesas, admitiria expressamente a utilização do selo protetor aqui impugnado.

Diante desses fundamentos, acolho os reclamos defensivos, REVOGO a decisão de fls. 479, e, com fulcro no inciso III do art. 395 do Código de Processo Penal (consoante redação que foi dada pela Lei nº 11.719/08), REJEITO A INICIAL ACUSATÓRIA, por absoluta falta de justa causa para o exercício da ação penal. Int.

2 – Diante do teor da decisão supra, revejo o posicionamento de fls. 09/10 da cautelar incidental em apenso, uma vez que a análise acima revela claramente – clareza meridiana – a ausência do requisito do fumus boni iuris para o deferimento da medida.

INDEFIRO, pois, o pedido cautelar formulado pelo parquet que visava impor aos denunciados proibição de veicular qualquer tipo de propaganda publicitária fazendo menção ao selo protetor das cervejas Itaipava e Crystal, marcas fabricadas pela Cervejaria Petrópolis S/A. A existência da cautelar incidental não tem mais sentido, uma vez que a ação principal (ação penal promovida contra os réus) não foi admitida (rejeição da denúncia aqui efetivada).

Assim sendo, transitada em julgado a presente decisão, dê-se baixa e arquive-se ambos os feitos. Int. Cópia desta decisão deverá ser trasladada para os autos da cautelar.

3 – Sem custas, face a natureza da presente decisão. Decorrido o prazo recursal, dê-se baixa e arquive-se.

Proceda a Serventia as diligências e comunicações necessárias. Certifique-se.

Publique-se. Registre-se. Intime-se.

Rio de Janeiro, 05 de fevereiro de 2010.

Roberto Câmara Lacé Brandão

Juiz Titular

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!