Orçamento e ficção

Governo tenta intimida juízes com extratos contábeis

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15 de fevereiro de 2010, 4h24

Uma estratégia desleal e até odiosa que o governo federal tem usado quando estão sob julgamento, pelo Judiciário, questões que possam ter reflexos nas suas contas e no seu orçamento, é a de assustar e até intimidar muitos magistrados com extratos e simulações contábeis dando conta de que, se a decisão for contrária aos interesses do fisco, poderá haver o que espertamente chamam de “rombos milionários” no orçamento.

Foi assim no julgamento da questão do chamado Crédito-Prêmio do IPI, da exclusão do ICMS da base de cálculo da Cofins, da incidência da Cofins sobre as receitas das sociedades civis prestadoras de serviços, além de muitos outros exemplos.

A estratégia é desleal porque tira da questão o seu foco real, que é essencialmente jurídico. A partir de determinado momento não se fala mais na aplicação correta dos princípios de Direito e de Justiça, mas nos tais “rombos orçamentários”, o que cria um ambiente de terror nos tribunais e sobretudo nos juízes de primeiro grau. Esquece-se que o orçamento público é mera ficção, uma simples estimativa, e que se tal estimativa estiver baseada em projeções que afrontem o Direito, cabe ao Judiciário coibi-las. Esquece-se também que o governo não pode projetar suas despesas com base em ficções antijurídicas, pelo mesmo princípio de que não pode o particular projetar as suas despesas com base em sonegações.

A isenção da Cofins sobre as sociedades civis prestadoras de serviços foi instituída por Lei Complementar à Constituição Federal e depois revogada por medida provisória transformada em lei ordinária. Qualquer estudante de Direito sabe que isso é juridicamente inválido, que não passa de uma manobra governamental para aumentar a sua arrecadação. Há uma hierarquia entre essas duas espécies de leis, segundo consta de qualquer manual de introdução ao estudo do Direito, porque o quorum legislativo de cada uma é diferente. É compreensível que o atual Congresso, cooptado e subserviente, derrame as suas bênçãos sobre um ato desses. Mas o Poder Judiciário não pode se curvar a essas astúcias, que vilipendiam o Direito.

A arrecadação pública indevida, contrária à lei, contrária à Constituição e aos princípios de Direito, é a própria sonegação invertida. É um confisco, uma usurpação. O produto da arrecadação assim feita integra um orçamento imoral, e essa imoralidade contamina as despesas projetadas com base nele.

Esses recursos não são arrecadados, mas confiscados, porque ilegais. Não integram legitimamente o orçamento público, pois não passam de recursos dos particulares que estão indevidamente nas mãos do fisco.

Em muitos casos submetidos ao Judiciário os memoriais são substituídos por extratos contábeis com letras e números garrafais. As teses jurídicas são substituídas por números fictos, assustadores, que por vezes levam honrados magistrados à genuflexão.

O Supremo Tribunal Federal, surpreendentemente, deu um exemplo positivo há poucos dias, ao julgar inconstitucional a cobrança do Funrural sobre a comercialização de produtos rurais. Mas a notícia espalhada ad terrorem pelo governo federal e publicada em toda a imprensa repetiu a execrável tese do “rombo bilionário”, que desta vez não comoveu os juízes da Suprema Corte.

É um bom sinal, que deve servir de norte para os magistrados federais, muitos deles preocupados, antes da tese jurídica, com as simulações contábeis que os assustam com as ameaças de rombos orçamentários.

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