Causas da impunidade

Brasil não combate lavagem de dinheiro, diz Gafi

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15 de fevereiro de 2010, 11h38

A Folha de S.Paulo noticia, nesta segunda-feira (15/2), que o Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), criado no âmbito do G7 para combater a lavagem de dinheiro que viabiliza o terrorismo e o crime organizado, vê impunidade no Brasil. Segundo a notícia, o órgão internacional atribui essa impunidade a duas causas: o excesso de recursos para direito de defesa previstos em lei e a inexperiência dos tribunais superiores. Praticamente a mesma explicação dada pelo Ministério Público — para quem o Supremo Tribunal Federal e os tribunais superiores seriam complacentes com a criminalidade de colarinho branco.

O relatório do Gafi, que na notícia não tem a autoria indicada, não examina a qualidade da investigação nem da acusação brasileiras. Enquanto o Ministério Público e autoridades policiais se queixam da dificuldade em obter provas para demonstrar, efetivamente, a lavagem de dinheiro, o STF e os tribunais superiores têm rebatido o uso de suposições para buscar a condenação de acusados. Em casos recentes, houve não só acusações refutadas por se basearem em provas ilícitas — como cartas anônimas sem respaldo em fatos ou grampos ilícitos, igualmente sem conteúdo criminoso — como a prática de editar provas.

Registra-se até mesmo o caso de relatórios policiais refeitos, meses depois, para adaptar a acusação à denúncia. A incidência e reincidência de forçar acusações com artifícios do gênero acabou por aproximar advogados criminalistas e boa parte dos tribunais que se têm irritado com a tática de driblar o processo para obter condenações a todo custo.

Para o secretário de Reforma do Judiciário, Rogerio Favreto, o governo está empenhando na redução da impunidade em relação à lavagem de dinheiro. A questão é que se trata de um tema denso e há uma demora para sentir os efeitos das ações. A principal delas é o Projeto de Lei 3443/2008, de autoria do deputado Antônio Carlos Valadares (PSB/SE), em tramitação na Câmara, que visa “tornar mais eficiente a persecução penal dos crimes de lavagem de dinheiro”. O texto trata de responsabilidade da pessoa jurídica, do crime de terrorismo e, principalmente, sobre o mecanismo do destino dos bens apreendidos. “Hoje isso é um pesadelo porque o estado não tem estrutura para manter nem dar destino a esse bens”, afirma. O projeto prevê o “perdimento antecipado”, que transforma os bens em ativos financeiros. “Assim, não há risco de deterioração. E ao final do processo, se há condenação, vai para o estado ou se há absolvição, é devolvido ao destino”. Segundo o secretário, o projeto foi indicado como pacto republicano e é um do eixo de combate à lavagem. Segundo a página da Câmara, o projeto está suspenso pela Comissão de Constituição e Justiça.

Além do projeto, Favreto lembra de outras iniciativas do Executivo para colaborar com o avanço desse tipo de processo, como o investimento em laboratórios de lavagem de dinheiro feito pelo Programa Nacional de Segurança Publica com Cidadania (Pronasci). “O Ministério Público precisa ter ferramentas de investigação. Muitos processos são anulados porque dependem de provas mais contundentes”, afirma.

Para o juiz Sergio Moro, o problema da impunidade no Brasil não é relativo apenas a lavagem de dinheiro, já que a raiz do problema é a morosidade da Justiça. “Isso é que faz os casos se eternizarem perante a Justiça, gerando um déficit de efetividade”. Em relação a legislação, ele afirma que a impunidade se agrava no processo criminal, por conta da prescrição. Como o processo é lento, muitos se livram da condenação e é papel do Congresso e dos tribunais superiores mudar esta realidade. “Na França e nos Estados Unidos, por exemplo, na sentença de primeiro grau, quando há condenação, o acusado já responde preso pelo resto do processo. Aqui é preciso ter a última decisão. É bonito no discurso, mas leva a ineficiência do processo”, afirma. Moro ressaltou que a divulgação do relatório foi prematura, já que é uma análise ainda em andamento.


O diretor da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul (Ajufesp), Ricardo Nascimento, concorda parcialmente com o relatório. Ele acredita que o Brasil está nos primeiros passos. “O ponto de equilíbrio está distante. Precisamos ter um aprimoramento do trabalho do Judiciário. Os tribunais têm sido pontuais em analisar pedidos de Habeas Corpus, mas não no processo como um todo”, afirma.

Nascimento dá como exemplo o caso do governador preso José Roberto Arruda. O STJ e o STF decidiram que ele deveria ser preso e mantido na prisão, porém a análise do caso por completo, como a Ação Penal levará anos. “Os processos deste tipo se concentram hoje na primeira instância e são poucas as condenações”. Para Nascimento, não só o Judiciário, mas todos os órgãos, como também a Polícia, ainda estão aprendendo a caminhar. Por outro lado, ele acredita que é possível condenar criminosos respeitando o ordenamento jurídico brasileiro. “Quero ver o que esse relatório fala da Suiça”, questiona.

Leia a reportagem da Folha de S. Paulo:

Brasil não pune lavagem de dinheiro, aponta entidade

O Brasil não consegue combater e punir um tipo de crime que une traficantes de drogas, corruptos e criminosos de colarinho branco — a lavagem de dinheiro. Faltam leis, disposição das autoridades para sequestrar bens comprados com dinheiro ilícito e preparo dos tribunais superiores para tratar o tema com a complexidade que ele requer.

A avaliação é do principal órgão internacional que sugere e monitora políticas contra a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo, o Gafi (Grupo de Ação Financeira), em relatório de 302 páginas obtido pela Folha.

Especialistas do Gafi visitaram o Brasil entre 26 de outubro e 7 de novembro do ano passado e apontam num documento preliminar que a maioria dos crimes de lavagem acaba sem punição. A versão é preliminar porque o documento será debatido com autoridades brasileiras antes do texto final.

A lavagem ocorre quando recursos obtidos ilegalmente ingressam no mercado com aparência legal. Pode ser o dinheiro de um traficante que se converte em postos de gasolina ou o caixa dois do empresário que é usado para a comprar imóveis, joias ou obras de arte. "A lei brasileira de lavagem de dinheiro não é suficiente para cobrir todas as categorias de infrações previstas, não inclui a responsabilidade penal das empresas, e não é efetivamente implementada em grande parte por causa de graves problemas estruturais do sistema judicial", diz trecho do relatório.

O documento sugere que o governo, com maioria no Congresso, trabalhe para aprovar um projeto de 2008 que passou no Senado, mas está parado na Câmara. Das 20 recomendações que a entidade fez, só 7 foram implantadas, diz o texto. O Ministério da Justiça informa que a maioria das sugestões está contemplada no projeto.

Impunidade
O documento lista as duas razões que os técnicos do Gafi consideram principais para a impunidade dos crimes de lavagem: o excesso de recursos que um processo permite e a falta de experiência dos tribunais superiores.

"Há elementos estruturais no sistema jurídico e institucional da Justiça criminal que prejudicam a capacidade das autoridades de perseguir e obter condenações definitivas para os crimes de lavagem e financiamento de terrorismo", diz o texto. "O Brasil possui um complexo sistema de recursos judiciais, de regras de prescrição e uma aplicação extremamente liberal dos direitos do réu."

Um dado citado no relatório resume a tendência dos processos sem fim no Brasil. Em 2008, as varas judiciais especializadas em crime financeiro registraram 1.311 processos, dos quais somente dez tiveram uma sentença definitiva.

Outro problema, segundo o relatório, "é a falta de experiência dos tribunais superiores no tratamento de casos de lavagem de dinheiro, que tendem a ser mais complexos do que casos envolvendo outros delitos".

Duas das maiores investigações de lavagem no Brasil, sobre o banco Opportunitty e a empreiteira Camargo Corrêa, foram paralisadas por decisões do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e do STF (Supremo Tribunal Federal). Os dois fatores "tornam muito difíceis para os promotores conseguirem a condenação final para crimes como o de lavagem".


A Justiça brasileira também não consegue implantar a punição mais efetiva contra a lavagem: o sequestro dos bens comprados com recursos ilícitos. Em 2006, diz o documento, só 15% dos processos lançaram mão da apreensão de bens. No ano seguinte, o índice foi de 5%. Quando há a apreensão, o Estado não tem capacidade de cuidar dos bens e eles acabam se deteriorando, informa o texto.

Faltam ainda estatísticas sobre os bens apreendidos e processos de lavagem de dinheiro, segundo os técnicos do Gafi.

O órgão sugere mudanças na forma como a legislação trata o sigilo bancário. Diferentemente do que ocorre nos EUA e na Europa, aqui a quebra só pode ser feita com ordem judicial. O Gafi diz que o país deveria flexibilizar o sigilo, de tal forma que policiais, procuradores e promotores pudessem consultar dados básicos -como o cadastro de um cliente- sem precisar pedir para um juiz.

Segundo a avaliação, as autoridades tratam com descaso a possibilidade de o Brasil ser usado como base financeira por terroristas. Cita como exemplo o fato de o país não ter criado lei para punir o financiamento ao terrorismo nove anos após os ataques da Al Qaeda nos EUA.

Procuradores atestam crítica de entidade
Os problemas apontados pelos organismos internacionais são confirmados por membros do Ministério Público.

Uma das falhas apontadas no relatório é a lei brasileira e a falta de empenho das autoridades em modificá-la. Por exemplo, ao contrário das recomendações internacionais, no Brasil as empresas não podem ser punidas por lavagem de dinheiro.

Na Operação Satiagraha, que investiga supostos crimes financeiros do banqueiro Daniel Dantas, o grupo Opportunity foi excluído da lista de réus.

Na ação movida contra o deputado federal Paulo Maluf (PP-SP), o Ministério Público não pôde responsabilizar os bancos que fizeram vista grossa a movimentações ilegais no exterior. Maluf nega ter recursos fora do Brasil. "A responsabilização penal da pessoa jurídica é uma tendência mundial. Isso seria importante no Brasil porque empresas são usadas como instrumentos de lavagem", afirma o procurador da República Rodrigo de Grandis.

Outra crítica dos órgãos internacionais é o fato de, no Brasil, uma condenação de primeira instância, mesmo mantida por um tribunal superior, não ser suficiente para a execução da pena. O réu tem direito a recorrer em liberdade. "A comunidade internacional se espanta muito com essa flexibilidade do sistema penal brasileiro. Em qualquer lugar do mundo, bastaria a confirmação da sentença por um tribunal superior", diz a procuradora regional da República Janice Ascari.

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