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Lei da Anistia é um ataque aos direitos humanos

Autor

  • Marcelo Zelic

    é vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais (São Paulo) e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Coordenador do Projeto Armazém Memória.

13 de fevereiro de 2010, 7h00

“O Parecer desconhece os anseios do nosso povo, demostrando, até mesmo, por emendas, que desprezou, de parlamentares da própria Arena.
Seu substitutivo, entretanto, encontra na clemência um mapismo à sua grande contribuição, a fraude dos poderosos teve acolhida, enquanto os presos políticos em greve de fome continuam como reféns. Excluir da anistia pessoas por terem sido condenadas é desconhecer a sua natureza e a sua finalidade”.
            
Declaração de voto do MDB sobre o parecer aprovado sobre a Lei de Anistia

“Ficou exclusivamente a proposta oficial”
Senador Teotônio Vilela

O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, afirma que a Lei da Anistia "foi resultado de um longo debate nacional", ressaltando a participação da OAB, para tentar justificar uma interpretação jurídica distorcida e manipuladora sobre a abrangência da Lei 6683, de 28 de agosto 1979, que vem sendo repetida desde a sua promulgação e visa deixar impunes os crimes de lesa-humanidade praticados durante a última ditadura militar no Brasil, ocorrida entre 1964-1985, tais como: sequestros de opositores, torturas, estupro de prisioneiras, assassinatos e desaparecimentos forçados. Todos bem tipificados nos acordos internacionais que o Brasil acolheu em seu ordenamento jurídico há várias décadas.

A proposta de lei foi enviada pelo general-presidente Figueiredo a um Congresso Nacional de maioria da Arena, partido do governo, graças à eleição indireta de senadores (os chamados biônicos, casuísmo instituído no Pacote de Abril de 1977, após notável crescimento eleitoral do MDB, partido da oposição); para se ter uma ideia do tamanho da ingerência da ditadura na autonomia do legislativo, em 1979, os senadores biônicos constituíam 32% do Senado Federal .

A Lei de Anistia foi aprovada com 50,61% dos votos, ou seja, 206  votos da ARENA contra  201 do MDB; devemos olhar o que representa não só a aprovação da legislação, mas também seu resultado: a diferença de somente 5 votos, ou seja, com uma diferença de 1,23% a favor do governo, reflete o grande desacordo expresso nos votos da oposição contra a aprovação dessa lei que, com uma abrangência parcial, negaria a anistia a inúmeros presos políticos, por tipo de pena, e garantiria a segurança jurídica para os agentes públicos e civis que praticaram crimes comuns de lesa-humanidade naquele período.

O fato de ter tramitado e sido votada no Congresso Nacional não garante o status de democrática, consensual e apaziguadora, apregoado nos dias de hoje para justificar a impunidade dos torturadores, como argumenta a Procuradoria Geral da República, considerando os agentes públicos torturadores beneficiários da Lei 6683/79, pois na legislação da época, o artigo 57 da Constituição Federal, desfigurada pelas emendas militares, atribuía ao presidente da república "a iniciativa de leis que concedessem anistia relativa a crimes políticos, ouvido o Conselho de Segurança Nacional," sendo o Congresso Nacional peça figurativa neste assunto. O Senador Pedro Simon esclarece bem esta questão em seu discurso de encerramento dos trabalhos na Comissão Mista:

“Na verdade, a minha consciência não se satisfaz com em chegar e dizer: não, porque a Bancada do MDB lutou e defendeu e a bancada da Arena, maciçamente, votou contra. Isso seria muito simplório porque na verdade eu saio daqui tão diminuído quanto a bancada da Arena (Não apoiado!). Porque acho que houve a diminuição do Congresso em não aproveitar, em não votar, em não aprimorar, em não aceitar, em não discutir, em não debater, porque as emendas que foram aprovadas foram aquelas que o Sr. Relator trouxe quando apresentou o seu relatório. Emendas, que nós todos sabemos, foi após a reunião com o Ministro da Justiça. Daqui, do debate, não saiu de nada”.

Sem os biônicos, o resultado seria outro; a Lei 6683/79 é resultado da imposição e controle do executivo sobre o legislativo, que buscou, aprovando esta lei, dar uma resposta parcial e restrita às “inquietações sociais” da época e, através do termo crimes conexos, cuja definição não é clara, ao se referir a estes crimes como "de qualquer natureza", deixou impunes os torturadores e excluiu centenas de militantes de organizações de esquerda que resistiram contra o regime militar, evidenciando o caráter de auto-anistia contido nesta lei, dado o contexto de sua aprovação.

A Lei de Anistia foi votada e aprovada no Congresso Nacional, com seus membros eleitos e não eleitos pelo povo, através de parecer emitido por uma Comissão Parlamentar Mista, cuja composição era de 59% dos membros do partido do governo, que garantiu a maioria dos votos e portanto o controle do texto, à Arena. Esse trâmite legal é a justificativa que a Procuradoria-Geral da República usa hoje para perpetuar a impunidade de crimes de lesa-humanidade no país. Mas qual foi o fruto do suposto “debate parlamentar”? O que realmente haveria de “acordado” no texto final, que contemplasse a posição da sociedade civil organizada nos Comitês Brasileiros Pela Anistia, assumida pelo MDB da época?

No prefácio à anistia registrado nos Anais da Comissão Mista do Congresso Nacional, as palavras do Senador Teotônio Vilela, presidente da Comissão Mista da Lei de Anistia, testemunha e ator deste momento de nossa história, não deixam dúvidas quanto ao “diálogo social” realizado e o “acordo” estabelecido, afirmando que no parecer aprovado “ficou exclusivamente a proposta oficial”.

O procurador-geral da república, Roberto Gurgel, ao apontar a necessidade de abrir os arquivos referentes ao período da ditadura militar, para que o país conheça a sua história, busca minimizar o parecer  equivocado que emitiu em relação à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF 153, em que a OAB e a Associação Juízes para a Democracia solicitam uma definição sobre a abrangência da Lei de Anistia, no que tange à impunidade dos torturadores e a punição dos crimes de lesa-humanidade praticados no Brasil.

Se houvesse consultado os arquivos do Senado Federal referentes à comissão criada para debater o assunto em 1979, saberia que o argumento de que houve um grande acordo social realizado através da Lei da Anistia não se sustenta com a apuração do que de fato ocorreu na Comissão Mista, no Congresso Nacional, no Gabinete do Ministro da Justiça e no país, naquele ano.

A proposta inicial, enviada pelo general-presidente, prevaleceu no texto final com alterações pífias da oposição, pois das 8 reuniões realizadas pela Comissão Mista da Lei de Anistia para compor o tão propalado acordo social para reestabelecer a paz em nossa sociedade, a primeira foi de instalação; na 2ª reunião, o MDB apresentou proposta de convocar entidades representativas da sociedade como OAB, ABI, CNBB e outras, para exporem suas posições sobre o tema, porém não houve quórum para ser votada; na 3ª reunião, a proposta foi derrotada por 13 votos da ARENA contra 7 do MDB e nenhuma entidade civil pôde se manifestar diretamente na Comissão; na 4ª reunião, a Arena não apareceu em bloco; a proposta do senador Itamar Franco, de convocar o Ministro da Justiça foi adiada por falta de quórum e a reunião foi encerrada, tal qual a 5ª reunião, onde a Arena repetiu a atuação anterior e, sem quórum, a reunião foi encerrada sem decidir nada e o ministro da Justiça nunca foi convocado.

Na 6ª reunião, realizada em 15 de setembro de 1979, todos os membros da comissão se fizeram presentes para votar o parecer. Dada a posição do relator da Arena, em acolher parcialmente poucas emendas do MDB, o senador Itamar Franco pede vistas do parecer e a sessão é suspensa por 12 horas e nova reunião para discussão do parecer é marcada.

O texto de lei apresentado pelo executivo recebeu 306 emendas para serem discutidas na construção de um acordo. O MDB apresentou  210 emendas (69%), das quais somente 42 foram aprovadas pela relatoria, totalizando 20% do que foi pleiteado, com a ressalva de que, com exceção da emenda 292, todas foram acolhidas somente em parte pelo relator da Arena; sendo que na maioria delas a parte acolhida foi a alteração da data que definiu o período de tempo a ser anistiado, somado ao veto presidencial posteriormente imposto, este índice reduz-se para menos da metade.

Efetivamente, das 210 emendas que o MDB propôs para fazer um acordo nacional sobre a questão da Anistia, quase nada foi efetivado e o texto apresentado pelo general-presidente foi muito pouco modificado em seu conteúdo. Isso explica a afirmação de Teotônio Vilela em seu prefácio à anistia nos anais dos trabalhos desenvolvidos pela Comissão Mista.

Desconsiderando toda discussão realizada pela manhã do dia 16 de setembro de 1979, na 7ª reunião, o parecer vai a voto do jeito que foi apresentado pelo relator da Arena anteriormente, conforme acordado nos gabinetes do executivo. Em sessão aberta no final da tarde, a última reunião da comissão é o registro histórico da farsa que agora tentam usar para garantir a impunidade dos torturadores do regime militar. Todo o “diálogo” se deu através do voto da maioria, da Arena, derrubando tudo que não constava do parecer apresentado pelo relator e acordado com o ministro da Justiça e o general-presidente.

Nas palavras do Senador Pedro Simon em seu discurso de encerramento dos trabalhos da Comissão Mista da Anistia, fica registrado o significado dessas alterações no texto da lei de Anistia: 

“verdade, este Poder, nesta noite, deu uma demonstração de humilhação perante a Nação (não apoiado!) não se afirmou no sentido de mostrar que tinha condições de aperfeiçoar o projeto, desde o momento em que o partido oficial não teve nem o direito de permitir algumas emendas, os homens do Governo poderem aperfeiçoar para dizer que têm uma autonomia relativa, numa democracia relativa. Pelo contrário, toda a Na~~ao sabe e a Imprensa noticiou que o Relator, que os líderes da Arena, no Gabinete do Ministro da Justiça, estudaram emenda por emenda e decidiram lá o que seria votado aqui. Não tiveram nem um mínimo gesto de grandeza com esse partido oficial para apenas dizer que a emenda “A”, a emenda “B”, a emenda “D”, a emenda “E”, a emenda “F”, vocês vão aprovar. No sentido de que, pelo menos, tivesse um mínimo de condições para se dizer que algo este Congresso fez para aprimorar o projeto.

O parecer do relator Deputado Ermani Satyro foi rejeitado integralmente através de declaração de voto dos membros do MDB, denunciando que “a farsa dos poderosos teve acolhida”. As emendas do MDB e Arena acolhidas pelo relator, modificaram quase nada, ou seja, no artigo 1º foi alterada a data e incluídos crimes eleitorais a serem anistiados, no parágrafo 4º do artigo 6º e no artigo 10º foi suprimida uma vírgula e o caput do artigo 8º teve outra redação, mantido o conteúdo e significado anterior.

Este foi o "processo do diálogo" do governo Figueiredo expresso na Lei 6683/79, excluída a participação da sociedade civil e controlado o Congresso Nacional, através de parlamentares biônicos. O resultado da proposta feita durante o regime de exceção, pelo executivo desse regime, legislou em causa própria, daí ser considerada pela ótica da Justiça de transição, como uma lei de autoanistia.

Assim, o Ministério Público Federal dizer que houve acordo em torno desta lei e que este acordo não pode ser mexido, e com esse parecer orientar o STF a desconsiderar ADPF 153, é um ataque aos avanços dos direitos humanos em nosso país, ao chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao ordenamento jurídico atual e ao direito à memória e à verdade. 

Sem Justiça, com os crimes de lesa-humanidade reconhecidos somente para a história, perde a sociedade brasileira, a quem são negados, em seu presente e às futuras gerações, os benefícios da Justiça de transição; pois reparar os atingidos e conhecer a verdade não farão os efeitos necessários para o fortalecimento da democracia brasileira, sem que simultaneamente haja a responsabilização dos crimes de lesa-humanidade praticados e a mudança do conceito, estruturas e forma de atuação das forças de segurança do país.

Deste modo, o parecer do procurador-geral da república é um sinal verde à impunidade de crimes de tortura e outras violações aos direitos humanos no país, é a garantia para que fatos como os vividos durante a ditadura militar se repitam, como por exemplo, os vividos durante o governo Yeda Crusyus, no Rio Grande do Sul, onde, conforme relatório do Conselho Nacional de Defesa do Direito da Pessoa Humana, produzido em 2009, a perseguição sistemática aos opositores de seu governo tem causado prisões, processos, torturas e assassinatos por parte de sua polícia, e todos estes crimes seguem tal qual os de 1964-1985, impunes e acobertados por aqueles que deveriam puní-los.

O que vemos hoje é a continuação da farsa denunciada pelo MDB em 1979. Sem dúvida, as cortes internacionais serão acionadas para que se faça, enfim, justiça aos crimes de lesa-humanidade praticados pelos agentes públicos da ditadura militar, que continuam impunes, beneficiados pela lei de auto-anistia que vigora em nosso país. Com certeza, seria uma honra muito maior que o próprio país tomasse a responsabilidade de escrever sua história. O STF ainda tem a chance de fazê-lo.

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    é vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais (São Paulo) e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Coordenador do Projeto Armazém Memória.

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