Tema da discórdia

A polêmica sobre liberdade provisória para o tráfico de drogas

Autor

  • Flávio Martins Alves Nunes Júnior

    é professor de Direito Constitucional e Direito Processual Penal da Rede de Ensino Telepresencial LFG (Luiz Flávio Gomes). Foi também coordenador do curso de Direito do Centro Unisal de Lorena nos biênios 2005-2006 2007-2008 e no ano de 2009.

4 de fevereiro de 2010, 6h47

Um dos temas mais polêmicos do Direito Processual dos últimos anos é a possibilidade (ou não) de concessão da liberdade provisória em crimes hediondos e equiparados (dos quais se destaca o tráfico de drogas).

Primeiramente, a Constituição Federal, no seu artigo 5º, ao prever o maior rigor destinado aos crimes hediondos, vedou a esses crimes uma série de “benefícios”, dentre os quais fiança, graça e anistia. Diz o texto constitucional:

Artigo 5º, XLIII— a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evita-los, se omitirem”.

A lei de crimes hediondos (Lei 8.072/90) foi além da vedação constitucional. Assim, além de vedar a fiança, a graça e a anistia, vedou também a liberdade provisória e a progressão de regimes.

Quanto à vedação à progressão de regimes, o tema sempre foi tormentoso, pairando dúvidas sobre a constitucionalidade da lei infraconstitucional. Em 2006, o STF declarou ser inconstitucional tal vedação, por ferir o princípio constitucional da individualização da pena. Tal decisão foi proferida no ano de 2006, no HC 82959, rel. Min. Mauro Aurélio. Consta da ementa da referida decisão:

A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. (…) Conflita com a garantia da individualização da pena – artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal – a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90.

Depois dessa decisão (que gerou polêmica quanto à amplitude de seus efeitos – alguns achando que os eram inter partes e a maioria achando que era erga omnes), a Lei de crimes hediondos foi alterada (pela lei 11.464/07), possibilitando a progressão de regimes para esses crimes (2/5 se for primário e 3/5 se for reincidente). Diz o artigo 2º, parágrafo 2º, da Lei de crimes hediondos, com a novel redação:

“A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente”

Essa lei teve efeito ex nunc, ou seja, aplicando-se apenas aos crimes praticados depois de sua entrada em vigor. Isso porque os crimes praticados antes da sua vigência devem seguir à regra prevista no artigo 112 da LEP, conforme preconizado pela recente Súmula Vinculante 16:

“Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º, da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização do exame criminológico”

Essa mesma lei (lei 11.464/07) retirou expressamente a vedação da liberdade provisória para crimes hediondos. Não obstante, a Lei de drogas (lei 11.343/06) continuava vedando expressamente a liberdade provisória para o crime de tráfico (artigo 44, caput). Diante desse cenário, surgem duas dúvidas: a) crimes hediondos têm direito à liberdade provisória?; b) tráfico de drogas tem direito à liberdade provisória, apesar da vedação da lei de drogas?

No ano de 2009, várias decisões foram proferidas pelo STF, sobretudo pela 1ª Turma, no sentido de que era vedada a liberdade provisória para crimes hediondos, principalmente para o tráfico de drogas. Hábeas Corpus relatados pelos Ministros Ricardo Lewandowski, Carmen Lúcia e Ellen Gracie (essa da 2ª Turma) se utilizavam de argumentos semelhantes, mas não pouco controvertidos.

O argumento principal era o seguinte: se a Constituição Federal considera tais crimes inafiançáveis, ao vedar a fiança, implicitamente está vedando qualquer tipo de liberdade provisória. Vejamos algumas decisões nesse sentido:

1. A proibição de liberdade provisória, nos casos de crimes hediondos e equiparados, decorre da própria inafiançabilidade imposta pela Constituição da República à legislação ordinária (Constituição da República, art. 5º, inc. XLIII): Precedentes. O artigo 2º, inc. II, da Lei 8.072/90 atendeu o comando constitucional, ao considerar inafiançáveis os crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos. Inconstitucional seria a legislação ordinária que dispusesse diversamente, tendo como afiançáveis delitos que a Constituição da República determina sejam inafiançáveis.

Desnecessidade de se reconhecer a inconstitucionalidade da Lei 11.464/07, que, ao retirar a expressão ‘e liberdade provisória’ do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.072/90, limitou-se a uma alteração textual: a proibição da liberdade provisória decorre da vedação da fiança, não da expressão suprimida, a qual, segundo a jurisprudência deste Supremo Tribunal, constituía redundância. Mera alteração textual, sem modificação da norma proibitiva de concessão da liberdade provisória aos crimes hediondos e equiparados, que continua vedada aos presos em flagrante por quaisquer daqueles delitos. 2. A Lei n. 11.464/07 não poderia alcançar o delito de tráfico de drogas, cuja disciplina já constava de lei especial (Lei n. 11.343/06, art. 44, caput), aplicável ao caso vertente. 3. Irrelevância da existência, ou não, de fundamentação cautelar para a prisão em flagrante por crimes hediondos ou equiparados: Precedentes. 4. Ordem denegada (HC 98548 / SC, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Julgamento: 24/11/2009, Primeira Turma)

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    é professor de Direito Constitucional e Direito Processual Penal da Rede de Ensino Telepresencial LFG (Luiz Flávio Gomes). Foi também coordenador do curso de Direito do Centro Unisal de Lorena, nos biênios 2005-2006, 2007-2008 e no ano de 2009.

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