Prescrição antecipada

Prescrição antecipada da pena evita perda de tempo

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1 de fevereiro de 2010, 15h15

O Ano Judiciário 2009 ficará marcado pelas louváveis iniciativas do Conselho Nacional de Justiça e dos presidentes dos tribunais do país de recomendarem a priorização no julgamento de todos os processos judiciais distribuídos — em primeiro, segundo grau e nos tribunais superiores — até 31/12/2005, de modo a descongestionar as pautas.

As metas nacionais de nivelamento (MNN), validadas no 2º Encontro Nacional do Judiciário, em Belo Horizonte, e alcançadas, parcialmente, abrirão espaço para conferir-se eficácia à garantia constitucional. “A todos, no âmbito judicial e administrativo”, da “razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”, incluída pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004.[1]

Evidentemente, não se imagina que, a fim de dar cumprimento às metas, se tenham procedido a julgamentos de cambulhada, abandonando o cuidado e a boa técnica pelas estatísticas. Isto, decerto, não aconteceu.

Mas as preocupações, externadas pelo CNJ, nos fazem retomar a reflexão sobre o instituto da prescrição da pena, em perspectiva — ou antecipada, presumida, virtual —, pois obstar a deflagração de processos inúteis se torna tão relevante quanto priorizar o julgamento de feitos distribuídos, há muito, ainda sem solução.

A prescrição, em perspectiva, representa um trabalho de antevisão da pena, com segurança e prudência, que pode ser feito pelas partes e, até mesmo, de ofício, pelo juiz.

Na leitura do ex-integrante do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, José Antônio Paganella Boschi: “Além do magistrado, também o promotor e o defensor estão capacitados a avaliar o caso que tem diante de si e a formular prognósticos razoavelmente seguros sobre o desfecho do eventual processo, haja vista que todos conhecem e dominam os critérios legais relacionados com a produção e valoração das provas e a individualização das penas. Se é do juiz, também é do Ministério Público, igualmente, o dever de preservar o status dignitatis do indiciado, evitando sujeitá-lo a processo desprovido de qualquer sentido ou finalidade”.[2]

Maurício Antônio Ribeiro Lopes, por sua vez, trata como “uma quimera aos olhos do Judiciário” considerar a pena máxima cominada para regular a prescrição, quando, desde logo, já se positiva que a sanção extrema, em hipótese alguma, será alcançada.[3]

Os tribunais superiores, porém, são os maiores desestimuladores da aplicação da prescrição, em perspectiva, ao argumento recorrente de que carece de amparo jurídico, em nosso sistema processual penal, a denominada prescrição antecipada da pena.

Infindáveis os provimentos de recursos especiais, interpostos pelo Ministério Público, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, nos quais foram reformadas decisões de cortes estaduais e regionais que reconheceram a incidência da prescrição, em perspectiva.

A alegada falta de previsão legal, contudo, não se presta a vedar a aplicação do instituto. Vários são os fundamentos que validam a incidência pontual da prescrição antecipada da pena: interesse de agir; instrumentalidade do processo; economia material; preservação do prestígio da Justiça; dignidade da pessoa humana; da razoabilidade e da duração do processo, como destacado por Igor Teles Fonseca de Macedo, no livro “Prescrição Virtual”.]

O Juiz Tourinho Neto, integrante do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com brilhantismo, enfrentou a problemática quanto à suposta falta de base legal, apregoando, em alto e bom som, que “é chegada a hora (…) do novo triunfar”:

“(…) A doutrina e a jurisprudência divergem, predominando, no entanto, a orientação que não aceita a prescrição antecipada. É chegada a hora, todavia, do novo triunfar. 2. A prescrição antecipada evita um processo inútil, um trabalho para nada, chegar-se a um provimento jurisdicional de que nada vale, que de nada servirá. Desse modo, há de reconhecer-se ausência do interesse de agir. 3. Não há lacunas no Direito, a menos que se tenha o Direito como lei, ou seja, o Direito puramente objetivo. Desse modo, não há falta de amparo legal para aplicação da prescrição antecipada. 4. A doutrina da plenitude lógica do direito não pode subsistir em face da velocidade com que a ciência do direito se movimenta, de sua força criadora, acompanhando o progresso e as mudanças das relações sociais. Seguir a lei ‘à risca’, quando destoantes das regras contidas nas próprias relações sociais, seria mutilar a realidade e ofender a dignidade mesma do espírito humano, porfiosamente empenhado nas penetrações sutis e nos arrojos de adaptação consciente" (Pontes de Miranda)”.[5]

A quadra, por que passa o Judiciário, não poderia ser mais propícia para o “novo triunfar”.

Nesse contexto, significativo avanço já se divisa com as conclusões dimanadas do I FONACRIM — Fórum Nacional dos Juízes Federais —, realizado em abril de 2009. No enunciado n. 15, a assembleia dos Juízes Federais consolidou o entendimento de que “a falta de interesse em razão da prescrição pela pena em perspectiva pode ser reconhecida quando manifesta e admitida com prudente valoração de segurança acerca da pena máxima admissível e da extrapolação do tempo para sua ocorrência”.[6]

Constata-se que o movimento de racionalização das pautas partiu de baixo para cima, isto é, do primeiro grau de jurisdição para os tribunais, reconhecendo os juízes, aqueles que labutam no cotidiano forense, a possibilidade de decretar a extinção da punibilidade, pela prescrição antecipada da pena, “quando de logo se sabe, induvidosamente, que a sentença a ser proferida, se der pela condenação, não terá nenhuma eficácia. Hipótese em que, cessando o interesse de agir, de forma intercorrente, o processo revela-se tal como um ‘natimorto’".[7]

Diante do aceno dos juízes, cumpre ao CNJ difundir o enunciado para que os tribunais, mormente o STJ e o STF, também como meta, “com prudente valoração de segurança”, de forma realista, apliquem a prescrição, em perspectiva, que não se cuida de um exercício de futurologia. Mas “de análise e cálculo prévio do julgador atento, que não tem dúvidas, no momento do exame dos autos, sobre a ineficiência do processo, já fulminado por causa extintiva de punibilidade”, conforme assinalado pelo Desembargador Roque Miguel, membro do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.[8]

Fixar balizas objetivas, como o transcurso de lapso temporal, sem marco interruptivo, superior ao dobro da pena mínima cominada ao delito, em demanda envolvendo réu primário, pode ser um caminho. Mas aguardar resultar, em lei, o anteprojeto, coordenado pelo ministro Hamilton Carvalhido, de reforma do Código de Processo Penal, em que, no artigo 37, na seção VII, “Do arquivamento”, faculta ao Ministério Público pedir o arquivamento do inquérito policial, “com fundamento na provável superveniência de prescrição que torne inviável a aplicação da lei penal no caso concreto, tendo em vista as circunstâncias objetivas e subjetivas que orientarão a fixação da pena”, não parece necessário. Quer pela distância natural da efetiva mudança legislativa, quer pela própria prescindibilidade de normatização para aplicar-se o instituto, à luz, por exemplo, do artigo 395, incisos II e III, do CPP, com redação introduzida pela Lei 11.719, de 2008.

Um último artigo doutrinário, pela pertinência temática, merece registro. Em “Prescrição Pela Pena Presumida”, René Ariel Dotti tratou do congestionamento das pautas forenses e das soluções para o problema, exaltando as decisões judiciais “que admitem uma nova hipótese de prescrição, não mais pela pena concretizada, mas pela sanção que, em tese, seria aplicável”. Eis um trecho do excelente trabalho elaborado pelo ilustre jurista paranaense:

"(…) O reconhecimento antecipado da prescrição, longe de ser mera tese doutrinária, é um dado da realidade. Integrantes do Ministério Público têm preferido requerer o reconhecimento antecipado da prescrição a ofertar a denúncia. Juízes de primeira instância, agindo por provocação ou de ofício, têm reconhecido essa espécie de prescrição, no curso da ação penal ou até mesmo antes do recebimento da peça acusatória. Alguns Tribunais do País, no julgamento de recursos ou habeas corpus, vêm admitindo essa modalidade prescricional. (…) Há necessidade dos agentes estatais — Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário — cumprirem os mandamentos do devido processo legal, dignidade da pessoa humana e caráter instrumental do processo. (…) A declaração da razoável duração do processo não é meramente teórica. Ela tem substância material quando o enunciado do princípio se completa com a referência aos ‘meios que garantam a celeridade de sua tramitação’ —CF, artigo 5º, LXXVIII. É elementar que entre tais meios pode-se incluir a solução judicial da prescrição pela pena presumida. Mas enquanto essa emergente causa extintiva da punibilidade não ingressar no sistema positivo, o movimento liderado por escritores lúcidos e decisões sensatas constitui uma reação adequada aos excessos danosos que se cometem em nome e através da Justiça Criminal. (…) O Estado, que exige dos cidadãos o cumprimento da lei sob ameaça da pena, não pode transgredir a Constituição e as normas do devido processo, mantendo-o aberto, não mais como um meio para a realização da Justiça, porém como um instrumento de opressão desproporcional à gravidade do mal do delito".[9]

A suprir a aventada carência de suporte legal, invocada pelos tribunais superiores, eclodem provimentos jurisdicionais, nas instâncias ordinárias, “que se projetam para muito além das folhas do processo que os documenta. Há decisões judiciais que, pela sua clarividência, se convertem em preceitos normativos quando o sistema legal é revisto e atualizado”, consoante muito bem advertiu o mestre René Dotti.

Ao CNJ, presidido pela autoridade máxima do Supremo Tribunal Federal, será oportuno navegar nas águas do I FONACRIM e estimular os tribunais, inclusive, repita-se, o próprio STF, “em face do caráter finalístico do processo e da utilidade do seu resultado”, a exercitar a antevisão da pena, evitando, assim, o estabelecimento de relações processuais “natimortas”,[10] tudo a possibilitar, de fato, um Ano Judiciário 2010 com pautas verdadeiramente descongestionadas.


[1] art. 5º, inciso LXXVIII.

[2] “Ação Penal”, 3ª ed., RJ, AIDE Editora, 2002, p. 139, grifou-se.

[3] “O reconhecimento antecipado da prescrição. O interesse de agir no Processo Penal e o Ministério Público”, Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 3, jul./set./1993, os. 142/143.

[4]“Prescrição Virtual”, ed. Podivm, 2007.

[5] APCRIM nº 1999.35.00.011674-4/GO, 3ª Turma, TRF/1ª Região, DJ de 8/9/2006, p. 23.

[6]Enunciado nº 15 do I FONACRIM.

[7] RCCR nº 2003.33.00.030632-6/BA, 3ª Turma, TRF/1ª Região, Rel. Juiz Federal Saulo Casali, DJ de 13/7/2007, grifou-se.

[8] RCCR nº 70003617362, 8ª Câmara Criminal, TJ/RS, Relator Des. Roque Miguel, julgado em 6/2/2002.

[9] “A Prescrição Pela Pena Presumida”, Revista Forense, vol. 385, grifou-se.

[10] TRF/4ª Região, APCRIM nº 1999.04.01.054399-1/RS, 2ª Turma, Rel. Juiz João Pedro Gebran Neto, DJ de 17/1/2001, p. 278.

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