Folha x Comparato

Caso permite reflexão sobre liberdade e democracia

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31 de dezembro de 2010, 19h33

A polêmica entre a Folha de S.Paulo e o advogado Fábio Konder Comparato e seu desdobramento judicial proporcionaram uma extraordinária oportunidade de reflexão sobre liberdade, democracia e a importância do Judiciário para a garantia de ambas.

O caso teve início com o editorial “Limites a Chávez”, de 17 de fevereiro de 2009, que adjetivou a mais recente ditadura do Brasil de “ditabranda”. O termo causou indignação de leitores e a Folha divulgou manifestações que recebeu. Uma delas foi de Fábio Comparato, jurista festejado como um dos arautos da democracia, publicada no Painel de Leitores. Comparato, endossando manifestação publicada pela Folha, afirmou que "… o autor do vergonhoso editorial de 17 de fevereiro, bem como o diretor que o aprovou, deveriam ser condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro, cuja dignidade foi descaradamente enxovalhada….”.

O jornal, por sua vez, em nota da redação, disse que respeitava a opinião dos leitores, mas destacou o nome de Comparato porque, figura pública, nunca expressara repúdio a ditaduras de esquerda, como a vigente em Cuba. Considerava, portanto, cínica e mentirosa sua indignação.

Comparato ajuizou ação de indenização alegando que o jornal, se não gostou do que ele disse, deveria ter recorrido à Justiça e não respondido ao ataque. Ou seja, segundo o eminente jurista, ele poderia ter criticado o jornal, mas o jornal não poderia ter criticado o jurista.

Coube à juíza da 21ª Vara Cível de São Paulo, Alessandra Laskowski, a responsabilidade pela decisão do caso. Sentenciou com equilíbrio exemplar, num desses casos que vêm a público revelar a importância do Judiciário para a proteção e manutenção da liberdade e da democracia.

Ao negar o pedido de Comparato aquela magistrada fundamentou sua decisão dizendo que, apesar da carga pejorativa dos termos "cínico", "mentiroso" e "democrata de fachada", atribuídos a Comparato na troca de farpas que se seguiu ao editorial, a agressão inicial foi do próprio Comparato, que se excedeu ao expressar sua discordância: “… não respeitou a liberdade de pensamento, (…) não se limitou a expressar sua opinião sobre a ditadura, mas também apresentou sugestão de humilhação ao réu."

Na apelação interposta contra a decisão, o desembargador Paulo Alcides Amaral Salles, relator do processo, entendeu que a resposta da Folha foi proporcional à reação de Fábio Comparato.

Entendemos, também, que o jornal foi infeliz com o uso do termo “ditabranda” para se referir a um regime autoritário, arbitrário, violento e corrupto. Mas entendemos, também, que quando alguém se dispõe a cobrar de terceiros determinadas condutas deve ter um mínimo de coerência, sob pena de sofrer as conseqüências da hipocrisia.

A surpresa e a crítica da Folha, que já publicou inúmeros artigos de Comparato, manifestaram a indignação que qualquer democrata tem contra o discurso daqueles que criticam as violações a direitos no Brasil, mas se omitem quanto a regimes ditatoriais e até os aplaudem, como o cubano. Não poucos artistas, intelectuais e acadêmicos vivem essa farsa: censura, prisão arbitrária por crime de pensamento e tortura, no Brasil, não pode; em Cuba, pode; morte por apedrejamento, no Oriente, não pode; mas por carga elétrica, gás, forca e outras formas, no Ocidente, pode. A diferença é o método. Falta difundir o brasileiro: humilhar, torturar e matar sob o comando de policiais corruptos, em vias públicas, matagais, dependências de órgãos públicos, delegacias e penitenciárias. Isso pode. Se não pudesse, os que se indignam com deslizes como o da Folha deveriam acionar o Estado. Louve-se, nesse ponto, o Judiciário, que, por decisões corajosas de alguns magistrados (não compreendidos por avestruzes), manda libertar presos que estão jogados em celas que não atendem a um décimo das condições mínimas de qualquer requisito legal.

Onde está a coerência desses juristas, que, festejados pela OAB, jogam verbosidades contra a mídia e o Poder Público, mas silenciam diante das irregularidades de sua própria instituição? A única coerência é a da conveniência. A OAB se arvora no direito de cobrar moralidade nas eleições partidárias, mas mantém intacta sua própria farsa eleitoral, que transformou a entidade num feudo. Prova disso é o imoral e impune abuso de poder econômico e corrupção que vicejam em suas eleições e tornam praticamente impossível a disputa democrática, como bem denunciou o então Conselheiro Federal Luiz Carlos Lopes Madeira, no Plenário do Conselho Federal, em Brasília. Madeira advertiu que não basta à Ordem defender a Democracia de sua porta para fora, se não a exercita porta a dentro. Então, qual a autoridade moral que pode ter alguém ou alguma instituição para fazer críticas a terceiros se eles mesmos se beneficiam de vícios semelhantes ou piores do que os mesmos que condenam alhures? Isso é hipocrisia mesmo.

E contra o Conselho Nacional de Justiça, que tem violado princípios elementares do devido processo legal, que pune magistrados do primeiro grau e deixa impunes as corregedorias que, por presunção, os deveria ter punido, o que têm dito ou feito esses juristas e suas instituições, além de discursos para inglês ver?

Por fim, é inevitável comparar esse caso com o de Fernando Sarney. Comparato teve respeitado seu direito de recorrer à Justiça, sem sofrer a acusação de pretender, com sua conduta, censurar a imprensa. Respeito que não houve para com Fernando Sarney, quando este, para preservar o sigilo que deveria revestir uma ação judicial a que respondia, recorreu ao Judiciário. Sofreu, por isso, uma campanha nacional, acusado, então, de pretender censurar a imprensa, quando estava, apenas, exercitando um direito, como fez Comparato, ao entender que a Folha não deveria publicar o que publicou. Ou seja, Fábio Comparato pode. Fernando Sarney não pode.

Quanta incoerência! Que democracia!

A decisão de Alessandra Laskowski e o voto do desembargador Paulo Alcides Amaral Salles são uma boa leitura para refletir-se sobre falsos ícones e seus discursos de conveniência. Decisões como essas resgatam a credibilidade do Judiciário e realçam sua importância para a defesa da liberdade e da democracia.

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