RETROSPECTIVA 2010

Ápice e óbice na política de defesa da concorrência

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25 de dezembro de 2010, 7h26

Este texto sobre a Defesa da Concorrência faz parte da Retrospectiva 2010, série de artigos sobre os principais fatos nas diferentes áreas do Direito e esferas da Justiça ocorridos no ano que termina.

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Desenvolvimento institucional é o que define o trajeto do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência — Cade, SDE e Seae. Desde a reformulação da defesa da concorrência no Brasil em 1994, as instituições que compõem o sistema encontram-se inseridas num processo de aprendizado e evolução, que teve neste ano um ápice e um óbice. Evidente assim que há questões retrospectivas — até o ápice — e prospectivas — agora com um óbice — a serem analisadas.

O ápice pode ser representado pelo reconhecimento internacional conquistado, inclusive com indicação do Cade ao prêmio de agência antitruste do ano nas Américas, ao lado de Canadá e EUA, pela conceituada publicação britânica Global Competition Review. O reconhecimento deve-se ao avanço, não só do Cade, mas das instituições de defesa da concorrência brasileiras, tanto na qualidade da análise dos casos quanto pelos arranjos institucionais realizados, que permitiram a ampliação da capacidade de atuação dessas instituições.

Neste ano, fusões e aquisições bem como condutas anticompetitivas com fortes impactos no mercado foram analisadas pelo Cade. Dentre as fusões e aquisições (os denominados atos de concentração) passaram pelo Cade, no setor bancário, a fusão Itaú-Unibanco (aprovada sem restrições) e aquisição da Nossa Caixa pelo Banco do Brasil, aprovada com a celebração de termo de compromisso de desempenho (TCD) para manutenção por quatro anos de serviços específicos de atendimento aos clientes em algumas cidades; no setor farmacêutico, o Conselho analisou a aquisição da Medley pela Sanofi-Aventis, celebrando TCD para alienação de algumas marcas de medicamentos; no setor de telecomunicações, aprovou também mediante celebração de TCD a aquisição da Brasil Telecom pela Oi e a compra de participação minoritária na TIM pela Telefônica, que controla a Vivo; por fim, dadas a preocupação com a concentração no setor de cimentos, o Cade reprovou a compra de ativos da Cimento Tupi pela Polimix Concreto.

No que diz respeito a condutas anticompetitivas, destaca-se a celebração de termo de compromisso de cessação (TCC) com a AmBev para que seja extinto o envase de cerveja em garrafas proprietárias de 630 ml, maior que a embalagem padrão de 600 ml, e com a Rede Globo e o Clube dos Treze, a respeito do direito de preferência nos contratos de transmissão de jogos do Campeonato Brasileiro; enquanto decisão condenatória, o julgamento do denominado cartel dos gases, com a imposição de multa bilionária que constitui a mais onerosa sanção já imposta, foi, sem dúvida, o julgamento de maior destaque na trajetória do Cade. Essa decisão concorre inclusive ao prêmio de “enforcement matter” do ano segundo a publicação Global Competition Review. Na condição de advogados que atuaram no processo, respeitamos, mas certamente discordamos da referida decisão e da consequente indicação.

A análise das principais decisões acima apontadas revela duas linhas bastante presentes na atuação da SDE e Cade: a ênfase no combate a cartéis, inclusive com o aumento de acordos de leniência, e nas penas aplicadas, procurando desencorajar a prática, e a preferência por resoluções negociadas (TCCs e TCDs), que sejam de imediato efetivas e não dependam de longos anos de debate no Poder Judiciário.

Reconhecendo os importantes avanços principalmente do Cade e da SDE, é necessário avaliar alguns aspectos que merecem reflexão visando propiciar o aprimoramento da legislação e órgãos antitruste no Brasil.

O primeiro deles refere-se à observância ao devido processo legal nas investigações conduzidas no âmbito administrativo. Isso porque tanto o Cade quanto a SDE, a despeito de suas inegáveis qualidades técnicas e isenção, em nosso entender, ainda precisam aperfeiçoar os procedimentos de instrução dos processos para que vícios formais que desafiam garantias constitucionais não se perpetuem. Diversas questões têm sido submetidas ao Poder Judiciário, a quem caberá balizar os parâmetros da atuação da administração pública nesses casos.

Embora reconheçamos os danos inegáveis à sociedade decorrentes dos cartéis, destacamos a necessidade de também se combater e punir práticas unilaterais que igualmente possam gerar efeitos negativos ao mercado e ao consumidor.

Com relação aos TCCs firmados, destaca-se a possibilidade de negociação de seus termos em caráter confidencial, eliminando-se a possibilidade de consulta pública da minuta do TCC, ferramenta antes utilizada pelo Cade que lhe permitia colher a opinião do mercado sobre o acordo proposto no que se refere principalmente à cessação dos efeitos anticompetitivos.

Quanto aos TCDs, independente do teor, acreditamos que o aumento dos mesmos como solução para importantes atos de concentração revelam a preferência pelo Conselho atual por soluções comportamentais e não estruturais, como ocorria no passado, principalmente pela falta de recursos do Cade para o acompanhamento posterior do cumprimento de tais acordos pelas empresas.

Desse panorama retrospectivo pode-se notar que as instituições de defesa da concorrência no Brasil trabalham hoje de modo mais harmonioso. A despeito dos diversos problemas ainda existentes com falta de estrutura, recursos e pessoal, Cade, SDE e Seae criaram arranjos institucionais criativos que têm mitigado os problemas e tornado a análise mais célere. Além disso, a aplicação da Lei 8.884/94 já tem extensa jurisprudência, o que contribui para mitigar as incertezas no ambiente de negócios.

Do ponto de vista organizativo, uma análise retrospectiva evidencia que o Cade neste ano teve sua composição substancialmente modificada. Em janeiro, teve início o mandato do conselheiro Ricardo Ruiz, substituindo o economista Paulo Furquim de Azevedo. Em novembro se encerraram os mandatos do ex-presidente Arthur Badin e do ex-conselheiro César Mattos. Ambas as vagas permanecem sem indicação e — agora numa análise prospectiva — certamente poderão influenciar o desempenho do Conselho no próximo ano. O mesmo pode ser dito quanto à SDE, que permanece sem a indicação de um novo secretário após a saída de Mariana Tavares.

No entanto, o desenvolvimento institucional observado, cujo ápice pode ser representado com a premiação do Cade como melhor agência antitruste das Américas, pode vir a encontrar um óbice na reforma legislativa que está sendo debatida. O Projeto de Lei 6 de 2009, da Câmara dos Deputados, prevê a promulgação de nova lei para disciplina da defesa da concorrência no Brasil, revogando a Lei 8.884/94. O projeto como inicialmente elaborado continha uma série de aspectos positivos, que poderiam contribuir para a evolução da defesa da concorrência. No entanto, uma série de emendas já foi realizada tanto na Câmara quanto no Senado que podem tornar a nova lei um retrocesso em diversos pontos.

Os esforços do Cade por essa ampla reforma legislativa — isso porque o Cade foi um dos principais defensores da reforma até aqui — contradiz toda a evolução institucional alcançada até aqui. Ou seja, o desenvolvimento institucional observado e constantemente aclamado dispensa a necessidade de ampla reforma. Afinal, as instituições se ajustaram, a jurisprudência se formou, os administrados passaram a calcular seus comportamentos tudo com base em mais de 15 anos de aplicação de um dispositivo legal, que se solidificou. A reforma legislativa, nesse contexto, pode significar um retrocesso, ao eliminar muito do percurso realizado até aqui.

Necessário reconhecer que há questões que só podem ser alteradas por lei. Afinal, não há arranjo ou entendimento jurisprudencial que possa perpassar expressa disposição legal. No entanto, são questões pontuais, que poderiam se resolver com mera reforma de dispositivos de lei específicos, sem que fosse rejeitada a evolução realizada até aqui no contexto da prática cotidiana do direito da concorrência.

Portanto, a análise prospectiva, como usual, aponta para um ambiente de mudanças, em que tanto a reforma legislativa quanto a própria composição das instituições pode levar a alterações consideráveis na política pública de defesa da concorrência brasileira. 2011 será um ano de atenção.

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