Sociedade de afeto

União homoafetiva não é apenas dividir economias

Autor

  • Maria Berenice Dias

    é advogada especializada em Direito Homoafetivo Famílias e Sucessões e vice-presidente nacional do IBDFam (Instituto Brasileiro de Direito de Família). Foi desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

24 de dezembro de 2010, 5h21

Don’t ask, don’t tell! Nada mais do que uma condenação à invisibilidade. Era a política que vigorava nos Estados Unidos e que acabou excluindo do exército 14 mil militares que assumiam sua identidade homossexual.

Revogada esta regra lá, parece que estão tentando impô-la aqui. Ao menos é o que transparece de duas recentes decisões do STJ que, de modo para lá de surpreendente, acabam de reconhecer uniões homoafetivas como meras sociedades de fato.[1] Visando cumprir “sua função uniformizadora”, a 3ª Turma cotejou decisões dos anos de 1998 e 2006, sem atentar a tudo o que já foi julgado depois destas datas, inclusive pela mesma Corte que, no ano de 2010, deferiu pensão por morte ao parceiro sobrevivente[2], bem como concedeu a adoção a um casal do mesmo sexo.[3] Assim, indigitados julgamentos podem destruir tudo o que a jurisprudência vem construindo ao longo de uma década, já tendo sido superado o número de 800 decisões.[4]

O mais chocante é que o relator, desembargador convocado Vasco Della Justina, é magistrado do Tribunal de Justiça gaúcho e integrava as Câmaras Especializadas que se notabilizaram como as pioneiras no país em reconhecer como união estável a relação homoafetiva.

No ano de 1999, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul fez migrar para as Varas de Família as ações envolvendo as uniões homossexuais.[5] Agora, tal é a orientação dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Espírito Santo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão e Santa Catarina.

Também foi da Justiça gaúcha a iniciativa de, no ano de 2000, admitir as uniões como entidade familiar. Em face da omissão legal, por analogia, foram reconhecidas como união estável. Este passou a ser o entendimento das Justiças de Minas Gerais, Goiás, Rio Grande do Norte, Ceará, Rondônia, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bahia, Maranhão, Santa Catarina, Alagoas e Pernambuco. Assim, além da homoparentalidade, são concedidos direitos sucessórios, assumindo o parceiro sobrevivente a inventariança, e desfrutando do direito real de habitação.

Outra não é a posição de todas as Regiões da Justiça Federal que, de forma reiterada, asseguram ao parceiro pensão por morte, Direito Previdenciário, inscrição em plano de saúde e visto de permanência, e concedem indenização por dano moral.

Desse modo, não há como deixar de qualificar as decisões como discriminatórias, além de contraditórias com a própria orientação do STJ, não guardando coerência sequer com as manifestações de ministros do STF que vêm se manifestando de modo diametralmente oposto à ora sufragada. Ao depois, o próprio STF[6] e o CNJ[7] autorizam que os servidores incluam seus companheiros nos planos de saúde e benefícios sociais.

Cabe lembrar que o próprio Superior Tribunal Eleitoral reconheceu a inelegibilidade da parceira homossexual, o que só pode ser sustentado se admitida a presença de um vínculo de natureza familiar.[8]

Mas esta não é a postura somente do Poder Judiciário. O Poder Executivo tem referendado, em sede administrativa, o que a Justiça vem deferindo há longa data. Assim, há possibilidade de inscrição do parceiro como dependente do Imposto de Renda,[9] inserção como dependente para efeitos previdenciários,[10] concessão de visto de permanência[11] e inclusão do parceiro em plano privado de assistência à saúde[12] e garantido o recebimento do seguro DPVAT.[13]

No entanto, talvez o que mais evidencie o retrocesso das indigitadas decisões é encobrirem indisfarçável preconceito. Ver uma sociedade de afeto como mera sociedade de fato revela nítida postura discriminatória, pois encobre o comprometimento afetivo que une os parceiros. Ou seja, os condena à invisibilidade. Basta atentar à definição legal de sociedade de fato para se aperceber do lamentável equívoco (Código Civil art. 981): Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados. Ora, não há como dizer que duas pessoas que se envolvem afetivamente e passam a viver juntas, partilhando vidas e embaralhando patrimônio, têm por finalidade exclusiva o exercício de atividade econômica para dividir resultados. E, se a relação é meramente obrigacional, não haveria como admitir que sócios adotem crianças, sejam admitidos como dependentes de planos de saúde ou façam jus a pensão previdenciária por morte.

Pelo jeito, a Justiça resolveu encobrir novamente os olhos com o véu do preconceito.


[1] STJ, Resp 704.803-RS e 633.713-RS, 3ª T., Rel. Min. Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJRS), j. 16.12.2010.

[2] STJ, Resp 1.026.981- RJ, 3ª T., Relª. Min. Nancy Andrighi, j. 04.02.2010.

[3] STJ, REsp 889.852-RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 27.04.2010.

[4] Decisões disponíveis no site: www.direitohomoafetivo.com.br

[5] TJRS, AI 599 075 496, 8ª C. Cív., Rel. Des. Breno Moreira Mussi, 17.06.1999.

[6] Ato Deliberativo 27 de 01.07.2009 do Supremo Tribunal Federal.

[7] Resolução 39/2007 de 14.08.2007 do Conselho Nacional de Justiça.

[8] TSE, REsp. Eleitoral 24.564, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 01.10.2004.

[9] Parecer 1503/2010 do Departamento de Normas e Procedimentos Judiciais do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

[10] Portaria 513/2010 de 10.12.2010 do Ministério da Previdência Social.

[11] Resolução Normativa 77/2008 de 29.01.2008 do Conselho Nacional de Imigração.

[12] Súmula Normativa 12/2010 de 04.05.2010 da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS.

[13] Circular 257/2004 de 21.06.2004 da Superintendência de Seguros Privados do Ministério da Fazenda.

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