Regras especiais

Empresário não pode descartar risco de trespasse

Autor

  • Fábio Tokars

    é advogado mestre e doutor em Direito e autor dos livros Primeiros Estudos de Direito Empresarial Estabelecimento Empresarial e Sociedades Limitadas.

20 de dezembro de 2010, 18h30

Quando um empresário cria uma unidade produtiva (seja ela uma loja, uma planta industrial, um centro de logística ou outra forma qualquer) surge, sob a ótica do direito, um estabelecimento empresarial. Este estabelecimento é um objeto de direito, uma universidade formada por elementos materiais e imateriais, e pode ser objeto de transferência. Como esta transferência está sujeita a regras especiais, a ela se dá o nome de trespasse.

No Brasil, as regras que cuidam do trespasse podem ser encontradas no Código Civil, a partir do artigo 1.144. E estas normas são o oposto do que deveriam ser. Enquanto em todo o mundo a operação de trespasse é facilitada e estimulada (ela é vista como um mecanismo de preservação da empresa, na medida em que é opção muito mais vantajosa do que o simples encerramento da unidade empresarial), em nosso país o contrato é visto unicamente como meio de cometimento de fraudes. E, debaixo desta visão, construiu-se um conjunto de normas que elevam os riscos e os custos assumidos pelo comprador a um ponto tal que um empresário consciente destas regras muito dificilmente comprará um estabelecimento.

Destas normas, destacam-se os artigos 1.145 e 1.146. Este prevê que o adquirente assume a responsabilidade pelo pagamento das dívidas contabilizadas pelo vendedor. Aquele autoriza ao juiz a declarar a ineficácia da transferência sempre que se presumir a ocorrência de algum prejuízo a credor do vendedor (mesmo que este credor desconhecido do comprador, por não constar da contabilidade). E de nada adianta alegar, ou mesmo demonstrar, a boa-fé do adquirente. Para o legislador brasileiro, quem compra um estabelecimento está auxiliando o vendedor a enganar a seus credores, e ponto final.

Já tivemos a oportunidade de escrever antes, nesta mesma coluna, a respeito da impropriedade lógica destas normas. Hoje, sua invocação era necessária apenas para contextualizar outro problema: a possibilidade de alguém imaginar a extensão deste regime jurídico a outras operações que não se enquadrem como um trespasse de estabelecimento.

A situação que mais chama a atenção é a de empresas em que o principal valor é a marca estampada em seus produtos. Quando uma empresa fabrica um bem de consumo em sua planta industrial, e agrega valor a seu produto por meio da aplicação de sua marca, não há dificuldade em perceber que uma transferência não-societária desta unidade empresarial será qualificada como um trespasse de estabelecimento.

Mas há casos em que a marca é comercialmente explorada sem que a fabricação dos bens de consumo seja feita pelo empresário que a criou. Aliás, há situações em que um empresário atua contratando outros empresários para fabricar seus produtos, apenas gerindo a aplicação de sua marca e a distribuição para o mercado. Um exemplo: a Galanz é uma empresa chinesa que fabrica 40% dos fornos de microondas comercializados no mundo, mas pouco estampa sua marca nos fornos que saem de sua linha de produção. Empresas localizadas ao redor do mundo contratam com a Galanz o fornecimento destes e de outros bens, já com a marca local estampada. Alguém poderia montar uma estrutura empresarial em que a empresa chinesa fosse contratada para produzir 100% dos bens oferecidos ao mercado, gerindo apenas este contrato de fornecimento, a aplicação da marca, a agregação de valor à marca por meio de estratégias de marketing e a distribuição dos produtos ao mercado. De um escritório, com alguns funcionários administrativos, pode-se criar o que o mercado vê como uma grande fábrica de fornos de microondas.

É natural que, ao longo do tempo, esta marca adquira um belo valor de mercado, e que haja uma oferta de compra por outro empresário. Mas este empresário interessado na aquisição não tem interesse na estrutura administrativa e na rede de contratos criada. Ele quer a marca. E, negociado o preço, ele adquire a marca.

Esta operação poderia ser considerada um trespasse de estabelecimento? Se aplicarmos os fundamentos jurídicos que regulam a matéria, a resposta seria negativa. Um estabelecimento é essencialmente uma universalidade, que não se confunde com qualquer de seus elementos. Ou seja: não há estabelecimento constituído por apenas um elemento (no caso, somente pela marca). E, diante desta percepção, o regime jurídico seria o da cessão de marca, sem que se possa cogitar a aplicação das regras do Código Civil (em especial dos arts. 1.145 e 1.146).

Mas, como no Brasil nada é tão simples, os empresários envolvidos em operações assemelhadas à descrita não podem deixar de considerar o risco de aplicação do regime do trespasse. E a única razão para isso é um histórico de decisões, algumas dos tribunais superiores, equiparando a transferência de direito de uso de linhas telefônicas (naquele tempo em que elas valiam, e não valiam pouco) a um trespasse de estabelecimento. Fundamento jurídico para esta equiparação não havia. Mas as decisões estão aí, e podem ser ressuscitadas por aqueles que acreditam na fantasia de que o mercado é construído de golpe em golpe.

Autores

  • Brave

    é advogado associado ao escritório Marins Bertoldi, professor de Direito Empresarial na PUC-PR, no curso de Mestrado em Direito do Unicuritiba e na Escola da Magistratura do Estado do Paraná, mestre e doutor em Direito.

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