Garantia constitucional

Só sentença irrecorrível barra direitos políticos

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17 de dezembro de 2010, 13h30

A Constituição garante que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória. A afirmação foi feita, na quinta-feira (16/12), pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello. Ele considerou que a suspensão dos direitos políticos, inclusive o de participar das eleições, somente é possível, entre outras hipóteses, em virtude de “condenação criminal transitada em julgado”, como afirma a Constituição, e não em decorrência de condenação recorrível, como determina a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010).

O ministro analisou a Ação Cautelar ajuizada pelo ex-deputado federal Natan Donadon (PMDB-RO), com o objetivo de suspender os efeitos de decisão do Tribunal de Justiça de Rondônia. O político foi condenado em primeira instância por peculato e formação de quadrilha a uma pena de cinco anos e seis meses de reclusão, além de multa. Recorreu ao TJ-RO, mas sua apelação foi rejeitada. Por conta da condenação, que é recorrível, o Tribunal Regional Eleitoral do estado negou seu registro para disputar a reeleição, com base na Lei da Ficha Limpa.

Para o ministro, a medida do TRE-RO tratou o candidato como culpado antes do trânsito em julgado da condenação criminal. “Há (…) um momento claramente definido no texto constitucional, a partir do qual se descaracteriza a presunção de inocência, vale dizer, aquele instante em que sobrevém o trânsito em julgado da condenação criminal. Antes desse momento (…), o Estado não pode tratar os indiciados ou réus como se culpados fossem”.

Celso de Mello se referiu ao inciso III do artigo 15 da Constituição, que estende a garantia fundamental da presunção de inocência aos direitos políticos, que abrangem o direito de votar e o direito de ser votado: “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”.

Ele destacou que a presunção de inocência não diminui à medida em que se sucedem os graus de jurisdição, ou seja, mesmo com a condenação penal por um tribunal de segunda instância, caso de Donadon, o sentenciado ainda tem o direito fundamental resguardado.

Aplicação da presunção da inocência
O decano do STF lembrou que a aplicabilidade da garantia fundamental da presunção da inocência não é restrita aos campos do Direito Penal e Processual Penal. Em julgamento do Recurso Especial 482.006, o ministro Ricardo Lewandowski já tinha assinalado que a presunção constitucional de inocência também vale em domínio extrapenal, pois essa garantia alcança qualquer medida restritiva de direitos, independentemente de seu conteúdo ou do bloco que compõe, se de direitos civis ou de direitos políticos.

A importância do inciso III do artigo 15 da Constituição, segundo Celso de Mello, se dá também na medida em que protege o indivíduo de atos exagerados do Poder Público. “O que se mostra relevante, a propósito do efeito irradiante da presunção de inocência, que a torna aplicável a processos de natureza não-criminal, é a preocupação, externada por órgãos investidos de jurisdição constitucional, com a preservação da integridade de um princípio que não pode ser transgredido por atos estatais que veiculem, prematuramente, medidas gravosas à esfera jurídica das pessoas, que são, desde logo, indevidamente tratadas, pelo Poder Público, como se culpadas fossem, porque presumida, por arbitrária antecipação fundada em juízo de mera suspeita, a culpabilidade de quem figura, em processo penal ou civil, como simples réu!”.

Dessa forma, a suspensão dos direitos políticos, da procedência definitiva da sentença que julga a ação civil de improbidade administrativa ou a representação em processo de apuração de abuso do poder econômico, previstos na Lei 8.429/92, artigo 20, “caput”, está condicionada à observância do trânsito em julgado do respectivo ato sentencial.

O ministro destacou que, como o dispositivo que trata da matéria no modelo constitucional vigente não depende de qualquer complementação legislativa, ele torna imediata, com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, a privação temporária dos direitos políticos, inclusive a supressão da própria elegibilidade, assim barrando o acesso de condenados ao mandato eletivo.

Constituição de 1969
Celso de Mello lembrou da Lei Complementar 5/70, editada para regulamentar o artigo 151 da Constituição de 1969, sobre a suspensão dos direitos políticos “por motivo de condenação criminal”. Segundo o ministro, a LC 5/70 previa, dentre as várias hipóteses de inelegibilidade, a perda da capacidade eleitoral passiva em decorrência da mera instauração de processo judicial contra qualquer candidato que houvesse incidido em suposta prática de infrações penais.

"São inelegíveis para qualquer cargo eletivo os que tenham sido condenados ou respondam a processo judicial, instaurado por denúncia do Ministério Público recebida pela autoridade judiciária competente, por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública e a administração pública, o patrimônio ou pelo delito previsto no artigo 22 desta Lei Complementar, enquanto não absolvidos ou penalmente reabilitados”, dizia o dispositivo.

Bastava então simples recebimento de uma denúncia para gerar situação de inelegibilidade. Porém, a cláusula legal gerou amplo debate em torno de sua constitucionalidade. Segundo Celso de Mello, o Tribunal Superior Eleitoral pronunciou-se várias vezes sobre a matéria, reconhecendo, num momento inicial, a validade constitucional da regra legal, até apresentação do entendimento do ministro Xavier de Albuquerque que, em um dos julgamentos, considerou o artigo 1º, inciso I, letra ‘n’, da LC 5/70 inconstitucional.

Para o ministro, a mera existência de procedimentos estatais em curso, como inquéritos policiais e processos penais em andamento, não pode gerar consequências incompatíveis com a presunção de inocência, uma vez que ela só se desfaz com o reconhecimento definitivo, em ato irrecorrível, da culpabilidade de alguém. “O fato relevante, em tal matéria, é um só: episódios processuais ainda não definidos, porque deles ausente sentença judicial transitada em julgado, não podem repercutir, de modo irreversível, sobre o estado de inocência que a própria Constituição garante e proclama em favor de qualquer pessoa”, destacou o ministro.

Ficha Limpa
A defesa de Donadon também alegou que a Lei da Ficha Limpa, que passou a valer neste ano, viola os princípios da anualidade, da irretroatividade, do ato jurídico perfeito e do devido processo legal, já que a lei questionada, segundo o político, não pode alcançar fatos anteriores à sua própria edição.

Nesse ponto, Celso de Mello deu razão ao ex-candidato, afirmando que a Ficha Limpa transgride o princípio da anterioridade eleitoral inscrito no artigo 16 da Constituição. Ele se referiu também aos seus votos nos julgamentos dos Recursos Extraordinários de Joaquim Roriz e Jader Barbalho, nos quais entendeu ineficaz, sem possibilidade de válida e imediata aplicação às eleições de 2010, a Lei da Ficha Limpa.

O caso
De acordo com informações do STF, Natan Donadon possui dois processos tramitando no Supremo relativos à aplicação da Lei da Ficha Limpa nas eleições deste ano. O primeiro deles é o Recurso Extraordinário 633.707, encaminhado à Corte pela presidência do Tribunal Superior Eleitoral, no qual o ex-deputado tenta reverter decisão do próprio TSE.

Donadon foi considerado inelegível pelo TRE-RO por prática de improbidade administrativa, que importou em enriquecimento ilícito, e considerou uma segunda hipótese de inelegibilidade para o político, com a condenação do TJ-RO pela prática de crimes de peculato e quadrilha.

Com relação à primeira causa de inelegibilidade, o TSE a afastou ao analisar apelação de Donadon contra a condenação por improbidade. Ele obteve no Superior Tribunal de Justiça uma cautelar suspendendo os efeitos dessa condenação, o que invalidou a inelegibilidade. Porém, permaneceu a segunda condenação do ex-parlamentar pelos crimes de peculato e quadrilha, considerada pelo TSE para fins de impossibilidade da candidatura com base na Lei da Ficha Limpa.

A defesa de Donadon contestou a decisão da Justiça Eleitoral no RE. Pediu o deferimento de seu registro de candidatura. Para acelerar o pedido e tentar uma liminar para garantir a diplomação e a posse no cargo de deputado federal, os advogados do político entraram com a Ação Cautelar no STF. Celso de Mello concedeu a liminar para garantir a diplomação de Natan Donadon.

“Observo que o ora requerente teve o registro de sua candidatura negado pelo só fato de existir, contra ele, condenação penal emanada de órgão colegiado do Poder Judiciário, embora ainda não transitada em julgado, porque impugnada, como efetivamente o foi, em sede recursal extraordinária (RE 633.707/RO). O acórdão em questão (…) não se ajustaria, segundo entendo, ao que dispõe (…) o inciso III do artigo 15 da Constituição”, considerou o ministro.

Clique aqui para ler a decisão do ministro Celso de Mello.

AC 2.763

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