Ameaças aos cofres

Ações e novas leis podem custar R$ 300 bilhões

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17 de dezembro de 2010, 9h58

Enquanto a equipe da presidente eleita Dilma Rousseff faz as contas para diminuir gastos públicos e segurar a inflação nos próximos quatro anos, um campo minado no Judiciário e no Legislativo pode comprometer os planos. Se perder a queda de braço nas ações judiciais e projetos de lei mais explosivos em andamento, o fisco sofrerá um impacto de R$ 300 bilhões, que os orçamentos da União, dos estados e dos municípios terão de arcar. Mesmo que nem todos os artefatos explodam, alguns já são suficientes para levar o Tesouro à enfermaria. 

O alerta vem de estudo feito por uma empresa privada que atua no ramo de relações institucionais e governamentais em Brasília. Segundo o coordenador jurídico da Patri Políticas Públicas, João Carlos Lima, a intenção não é dar munição ao fisco, mas conscientizar investidores de que o arsenal dos governos para intervir na economia pode ser reduzido. “Não trabalhamos para o poder público, só para a iniciativa privada”, diz o advogado.

De acordo com ele, o levantamento foi feito com base em informações do fisco, de institutos de pesquisa, divulgadas pela imprensa e dos próprios processos que correm na Justiça, e foram submetidos a confirmação da Advocacia-Geral da União. Ministros do Supremo que já tiveram acesso reconhecem: os números são impressionantes. Levando em conta que o rombo no erário foi um dos principais argumentos da Fazenda Nacional para derrubar, por exemplo, o crédito-prêmio do IPI às indústrias no ano passado, a apocalíptica profecia de uma hecatombe orçamentária pode voltar a circular. 

É o caso da disputa pela exclusão, da base de cálculo da Cofins, dos valores pagos a título de ICMS pelas empresas, guerra travada no STF há pelo menos 12 anos. Para os advogados, o ICMS embutido no preço dos produtos é repassado aos fiscos estaduais, e não pode fazer parte do faturamento que serve de base para a incidência do tributo federal.

A briga envolve, de uma só vez, R$ 76 bilhões a serem devolvidos pelo fisco aos contribuintes referentes ao que foi pago nos últimos cinco anos. A Ação Declaratória de Constitucionalidade 18, que tramita no Supremo Tribunal Federal desde 2007 sobre o assunto, inclui ainda uma suposta perda de R$ 12 bilhões anuais na arrecadação federal.

O ajuizamento da ação declaratória foi uma estratégia desesperada do fisco para tentar frear uma derrota iminente na corte, que já dera seis votos a favor dos contribuintes no julgamento de um Recurso Extraordinário. Como ações de controle concentrado — que é o caso da ADC — têm prioridade sobre recursos individuais, o RE 240.785, que tramitava desde 1998, foi paralisado e a votação recomeçou do zero.

Outra bomba-relógio nas mãos da Justiça, que pode significar uma perda de R$ 40 bilhões com a devolução de recolhimentos feitos entre 1999 e 2008, é a cobrança do PIS e da Cofins — incidentes sobre a venda de bens e serviços — em relação a operações financeiras. Os bancos afirmam que concessão de crédito não é mercadoria nem serviço, o que tiraria a maior parte das receitas da mira desses tributos. Já o fisco interpreta que o conceito de faturamento se estende também a receitas operacionais, o que incluiria o spread bancário e os prêmios pagos pelas instituições.

Até agora, apenas o relator do caso no Supremo, ministro Cezar Peluso, votou. Ele entendeu que as receitas operacionais dos bancos estão sim sob a incidência tributária. O Recurso Extraordinário 400.479, ajuizado em 2003, aguarda voto do ministro Marco Aurélio, que pediu vista do processo no ano passado.

Jeferson Heroico
Tabela - Preço das causas judiciais - Jeferson Heroico

Planos econômicos
Ainda sem uma estimativa confiável do provável estrago, as ações sobre restituições de expurgos inflacionários dos planos econômicos Bresser, Verão, e Collor I e II, ocorridos entre 1987 e 1991, são as que podem causar o maior desfalque. O cálculo do Banco Central e do Ministério da Fazenda chega a R$ 106 bilhões, que a princípio será pago pelos bancos caso sejam derrotados. Mas como as instituições obedeceram instruções do governo na época, a conta pode sobrar para o erário, o que acabaria tendo que ser decidido também pela Justiça. De acordo com a Federação Brasileira de Bancos, o valor é ainda maior, de R$ 120 bilhões. Para o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, no entanto, não ultrapassa R$ 29 bilhões.

Pelo menos cinco ações diferentes correm no Supremo sobre a matéria. Nenhuma delas ainda perto de ser julgada definitivamente. São elas: a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 165, ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro em 2009, sob relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, e os Recursos Extraordinários 591.797, 626.307 e 631.363, além do Agravo de Instrumento 754.745, todos de autoria de bancos.

O Supremo discute também a constitucionalidade do dispositivo da lei que regula o Imposto de Renda que impede os contribuintes de deduzir, do IR a ser pago, o que já foi recolhido como contribuição sobre o lucro. As interessadas são as empresas optantes pelo regime tributário do Lucro Real, que permite a dedução de despesas do cálculo do IR. O artigo 1º da Lei 9.316, de 1996, é o centro da discussão do Recurso Extraordinário 582.525, que já teve um voto a favor do fisco, dado pelo relator, ministro Joaquim Barbosa, e outro favorável aos contribuintes, dado pelo ministro Marco Aurélio. O recurso aguarda o ministro Cezar Peluso, que pediu vista em 2008. Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, a disputa envolve uma devolução de R$ 26,5 bilhões aos contribuintes, além de uma suposta perda anual de R$ 5,7 bilhões caso a União saia derrotada.

Recursos de companhias aéreas pedindo indenização da União por congelamento de preços podem significar mais um custo de R$ 10 bilhões ao governo. As empresas Varig, TAM, Rio Sul, Nordeste Linhas Aéreas e até a falida Vasp exigem compensação pelas perdas decorrentes do congelamento de tarifas de passagens decretado durante o governo Sarney, entre 1985 e 1990. O Supremo deve avaliar a questão no RE 571.969, da Varig, sob relatoria da ministra Cármen Lúcia, que ainda não votou. Indústrias do ramo sucroalcooleiro também reclamam reposições em ações judiciais devido ao congelamento.

De grande interesse de multinacionais é a Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.588, que trata da remessa de lucros por coligadas no Brasil a matrizes no exterior. Para combater dribles tributários, o fisco adiantou o momento do fato gerador do Imposto de Renda no caso de disponibilização dos valores às matrizes. É a data do balanço das controladas, e não a da real distribuição dos lucros, que é aceita para o cálculo do IR. O caso divide o Supremo, que tem três votos pela inconstitucionalidade da regra, prevista no artigo 74 da Medida Provisória 2.158, dois pela validade, e um atendendo parcialmente o pedido. O processo, que está na casa desde 2001, aguarda voto do ministro Carlos Britto, que pediu vista em 2007.

Impacto estadual
Reunidas, outras seis questões que dependem dos ministros do STF também atormentam as procuradorias. Para as estaduais, uma delas é a incidência do ICMS no caso de energia elétrica contratada por indústrias. Os fiscos insistem que o imposto deve ser cobrado sobre o valor contratado, mas as empresas entendem que o recolhimento só é devido sobre a energia efetivamente usada. Na mesa do STF está o RE 593.824, que teve repercussão geral reconhecida e foi distribuído ao ministro Ricardo Lewandowski em 2008.

ICMS sobre energia elétrica também é assunto de recurso de concessionárias de telecomunicações no Superior Tribunal de Justiça. Elas pedem que a corte declare que o ICMS pago na compra de energia elétrica gere crédito, uma vez que, de acordo com a leitura, seria o caso de insumo consumido em processo de industrialização. O passivo envolvendo a questão chega à casa dos bilhões de reais, já que os estados proibiram o uso dos créditos desde 2001. O Recurso Especial 842.270 já tem um voto a favor dos contribuintes, e aguarda voto-vista do ministro Hamilton Carvalhido.

O STF decidirá ainda se as fazendas estaduais devem devolver aos contribuintes a diferença do ICMS que é pago no regime da substituição tributária. Nesse sistema, os estados fixam um valor presumido para as vendas futuras do produto e cobram do primeiro produtor, de uma só vez, o ICMS que seria supostamente gerado nas fases posteriores da circulação até que o bem chegue ao consumidor. A devolução da diferença entre o valor presumido e o valor real é o que pleiteiam duas ADIs (2.675 e 2.777) e um Recurso Extraordinário 593.849. A corte tem cinco votos favoráveis aos contribuintes e outros cinco a favor do fisco. O ministro Carlos Britto é quem terá de desempatar.

Contas no Parlamento
No Legislativo, a equiparação dos salários dos policiais militares de todo o país ao piso existente no Distrito Federal pode ser o maior custo ao poder público. A Proposta de Emenda à Constituição 300, de 2008, aplica os reajustes também aos militares aposentados. A despesa total estimada é de R$ 43 bilhões para União, estados e municípios. Em 1º turno, o projeto passou na Câmara, e aguarda ser pautado para segunda votação.

Se aprovado, outro reajuste, este para servidores do Judiciário, previsto no Projeto de Lei 6.613/2009, pode aumentar o gasto público com pessoal em R$ 7 bilhões. Na maioria dos casos, o aumento é de 56%, mas pode chegar a 82% para funcionários de nível auxiliar, por exemplo. O PL ainda está sendo votado nas comissões da Câmara dos Deputados.

Outro projeto envolvendo o Judiciário prevê a criação de cargos de juiz do Trabalho e de varas no Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região, no Ceará. O PL 4.409/2008, que espera inclusão na pauta do Plenário da Câmara, custará R$ 3,5 bilhões.

Segundo a Comissão Mista que vota o assunto no Congresso, a previsão de receita da União para 2011 é de R$ 825 bilhões, já descontados os repasses aos fundos de participação. A proposta orçamentária, no entanto, prevê gastos de R$ 2 trilhões para o ano que vem, o que não inclui as possíveis derrotas na Justiça, nem mudanças legais em discussão. 

Jeferson Heroico
Tabela - Preço das medidas legislativas - Jeferson Heroico

Guardião do Estado
Embora julgamentos sobre temas tributários venham recebendo pressão do governo federal nos tribunais superiores, também são acompanhados de perto pelas empresas, o que inclui ajuda dos melhores tributaristas e pareceristas do país. E uma corte política, como o Supremo Tribunal Federal, não está livre dessas investidas, na opinião do professor da Escola da Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, Fernando Zilveti. “A corte constitucional é quem diz por último o que é certo ou não, e tem a função de zelar pelo Estado”, afirma. Para ele, mesmo que uma lei seja inconstitucional, o Supremo deve avaliar se a decisão vai causar desequilíbrio nas contas públicas.

Segundo Zilveti, o argumento de que impactos no orçamento têm sido usados indevidamente como fundamento das decisões do STF desqualifica as posições da corte. “No caso das teses da não incidência da Cofins sobre serviços regulamentados, e da continuidade do crédito-prêmio do IPI, as empresas entraram em uma barca furada. Agora, os escritórios precisam se justificar com a explicação de que a decisão foi política”, diz.

Em relação às ações que ainda correm no Supremo, o professor não descarta a hipótese de a corte, mesmo nos casos em que os contribuintes têm razão, modular os efeitos da decisão, para que o fisco não tenha que ressarcir valores astronômicos. “É preciso encontrar uma forma de as empresas levarem ações de inconstitucionalidade ao Supremo sem serem obrigadas a pagar o tributo indevido por anos.” Segundo ele, também é necessário avaliar se o custo com esses tributos também já foram repassados nos preços ao consumidor.

Já para o advogado Saul Tourinho Leal, do escritório Pinheiro Neto Advogados, o impacto causado por uma decisão judicial nas contas do Estado não é o único critério a ser avaliado pelos ministros. “O argumento do impacto orçamentário, na verdade, milita em favor dos contribuintes, porque demonstra como atos inconstitucionais geram graves violências contra quem ocupa o polo mais fraco da relação”, afirma. Segundo ele, também estão em jogo os direitos fundamentais de quem contribui. “Quando se declara uma lei inconstitucional, o que se está dizendo é que o Estado recolheu aqueles valores indevidamente. Os diretos têm custos, que devem ser suportados por todos.”

Clique aqui para ler o estudo.

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