Comparato x Folha

Quem ofende deve estar preparado para ser ofendido

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16 de dezembro de 2010, 20h26

Se houve ofensa recíproca, não há justificativa para condenação de nenhuma das partes ao pagamento de indenização por dano moral. O entendimento é do desembargador Paulo Alcides Amaral Salles, da 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, que negou pedido de indenização do professor de Direito e advogado Fábio Konder Comparato contra o jornal Folha de S.Paulo.

Com a publicação do editorial "Limites a Chávez", que afirmou que a ditadura no Brasil foi uma "ditabranda", Comparato, indignado com o termo, e a Folha iniciaram uma troca de farpas na imprensa, por meio de cartas e artigos publicados no próprio jornal. O advogado recorreu à Justiça, alegando que usou linguagem meramente simbólica na carta enviada contra o editorial, no entanto, ao reagir às suas críticas, a Folha tentou enxovalhar sua imagem e prestígio. Para Comparato, o jornal deveria ter ajuizado ação própria, e não usar seu poder para influenciar a opinião pública contra pessoas que não dispõem de igual poder de reação.

Em decisão monocrática, o relator do caso no TJ-SP corroborou os fundamentos da decisão recorrida. Para o juíza da 21ª Vara Cível de São Paulo, Alessandra Laskowski, embora os adjetivos "cínico", "mentiroso" e "democrata de fachada", atribuídos a Comparato pela Folha, sejam pejorativos, foi o advogado que deu início às agressões pessoais, ao discordar do editorial, que não fez nenhuma referência pessoal a ele. "É evidente o excesso do autor ao expressar sua discordância com o conteúdo do editorial. O autor não respeitou a liberdade de pensamento, sendo que em sua carta resposta não se limitou a expressar sua opinião sobre a ditadura, mas também apresentou sugestão de humilhação ao réu."

Para a juíza, mesmo não sendo a opinião da Folha compactuada pela maioria dos jornalistas, historiadores e políticos, ela deve ser respeitada. Logo, Comparato, de acordo com Alessandra, pode discordar da opinião do jornal, mas não pode sugerir aplicação de pena vexatória, ainda que impossível de ser aplicada. "Dessa forma, por se tratar de retorsão imediata, não configura ato ilícito e não há dever de indenizar."

Reação proporcional
Em seu voto, o desembargador Paulo Alcides Amaral Salles foi adiante, ao explicar que a figura de linguagem simbólica utilizada por Comparato — "imposição de pena humilhante" — foi excessiva. Por isso, a reação da Folha, quando afirmou que a indignação do advogado era "cínica e mentirosa", foi legítima. Para o relator, a resposta do jornal foi proporcional à reação de Comparato.

"Ainda que se possa discordar, com veemência, da palavra ‘ditabranda’, utilizada pelo jornal para qualificar o regime ditatorial brasileiro instalado a partir do Golpe de 1964, caminhou o requerente fora dos ditames da razoabilidade, no ponto em que atribuiu à opinião do jornal a pecha de ‘vergonhoso’, propondo ainda que seu autor, ‘bem como o diretor que o aprovou, deveriam ser condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro’".

O relator citou jurisprudência dos Tribunais de Justiça do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, que apontam que não há dano moral se houver, no desentendimento entre as parte, ofensas mútuas e recíprocas, decorrentes dos acontecimentos que as envolveram. Nesse sentido, o desembargador considerou que o caso não trata de opressão de um grande veículo de comunicação sobre uma pessoa que não dispõe de igual poder de reação, como apelou Comparato. "Incorreto entender o requerente como parte frágil da disputa, visto que foi ele mesmo quem o iniciou e, como visto, no exercício abusivo do direito de crítica (artigo 187 do Código Civil) e de maneira a desrespeitar a liberdade de opinião do órgão de imprensa."

Isso porque é pública e notória a postura de Comparato em defesa dos direitos humanos e do regime democrático. "Aquele que assume postura combativa deve assumir, em função disso, os riscos inerentes a essa empreitada (independentemente dos elevados propósitos almejados)", destacou Salles.

O relator considerou ainda que a expressão "democrata de fachada" foi efetuada no contexto do debate entre as partes. "Tal crítica, frise-se, teve como foco unicamente a projeção política do requerente, o que não tem o condão de colocar em xeque sua dignidade."

Liberdade de imprensa
O desembargador citou voto do ministro do Supremo Tribunal Federal Ayres Britto, no julgamento da Lei de Impresa (ADPF 130), sobre a preservação da liberdade de imprensa: "O pensamento crítico é parte integrante da informação plena e fidedigna. O possível conteúdo socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria verve do autor. O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado", afirmou o ministro.

Para o relator, o receio do abuso não pode frear a liberdade de manifestação do pensamento e de expressão, principalmente nos textos críticos. Para que se peça a indenização, deve a lesão atingir diretamente a dignidade da vítima, de acordo com o artigo 5º, incisos V e X, da Constituição. "Assim, não se extrai prejuízo efetivo ao patrimônio moral do requerente em função do debate que travou com o jornal Folha de São Paulo", finalizou o desembargador.

O caso
Em carta enviada e publicada pela Folha em 20 de fevereiro de 2009, Comparato afirmou que o diretor e o autor do editorial do dia 17 de fevereiro deveriam "ser condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro", por terem afirmado que o Brasil teve uma "ditabranda".

O advogado se referiu ao editorial "Limites a Chávez", que comparou a ditadura brasileira e os regimes adotados por Fujimori, ex-presidente do Peru, e Hugo Chávez, presidente da Venezuela. O editorial foi tão criticado que, no dia 7 de março de 2009, um grupo de 300 pessoas, segundo a própria Folha, protestou em frente à sede do jornal.

Em resposta à carta de Comparato, a Folha publicou nota afirmando que sua indignação é "obviamente cínica e mentirosa", uma vez que o advogado, segundo o jornal, não critica ditaduras de esquerda, como a de Cuba. Desde então, além de cartas, o jornal publicou artigos a respeito da polêmica, alguns dos quais com críticas ou reparos à própria Folha. Em outros, foram atribuídos à Comparato o adjetivo de democrata de fachada e uma conduta de solidariedade envergonhada.

Clique aqui para ler a decisão.

Apelação Cível 990.10.009749-0

Leia o Editoral publicado pela Folha de S. Paulo no dia 17 de fevereiro de 2009 e, em seguida, a nota enviada por Fábio Konder Comparado ao Painel de Leitores, publicada no dia 20 de fevereiro:

Limites a Chávez
O rolo compressor do bonapartismo chavista destruiu mais um pilar do sistema de pesos e contrapesos que caracteriza a democracia. Na Venezuela, os governantes, a começar do presidente da República, estão autorizados a concorrer a quantas reeleições seguidas desejarem.

Hugo Chávez venceu o referendo de domingo, a segunda tentativa de dinamitar os limites a sua permanência no poder. Como na consulta do final de 2007, a votação de anteontem revelou um país dividido. Desta vez, contudo, a discreta maioria (54,9%) favoreceu o projeto presidencial de aproximar-se do recorde de mando do ditador Fidel Castro.

Outra diferença em relação ao referendo de 2007 é que Chávez, agora vitorioso, não está disposto a reapresentar a consulta popular. Agiria desse modo apenas em caso de nova derrota. Tamanha margem de arbítrio para manipular as regras do jogo é típica de regimes autoritários compelidos a satisfazer o público doméstico, e o externo, com certo nível de competição eleitoral.

Mas, se as chamadas "ditabrandas" -caso do Brasil entre 1964 e 1985- partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça-, o novo autoritarismo latino-americano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru, faz o caminho inverso. O líder eleito mina as instituições e os controles democráticos por dentro, paulatinamente.

Em dez anos de poder, Hugo Chávez submeteu, pouco a pouco, o Legislativo e o Judiciário aos desígnios da Presidência. Fechou o círculo de mando ao impor-se à PDVSA, a gigante estatal do petróleo.

A inabilidade inicial da oposição, que em 2002 patrocinou um golpe de Estado fracassado contra Chávez e depois boicotou eleições, abriu caminho para a marcha autoritária; as receitas extraordinárias do petróleo a impulsionaram. Como num populismo de manual, o dinheiro fluiu copiosamente para as ações sociais do presidente, garantindo-lhe a base de sustentação.

Nada de novo, porém, foi produzido na economia da Venezuela, tampouco na sua teia de instituições políticas; Chávez apenas a fragilizou ao concentrar poder. A política e a economia naquele país continuam simplórias -e expostas às oscilações cíclicas do preço do petróleo.

O parasitismo exercido por Chávez nas finanças do petróleo e do Estado foi tão profundo que a inflação disparou na Venezuela antes mesmo da vertiginosa inversão no preço do combustível. Com a reviravolta na cotação, restam ao governo populista poucos recursos para evitar uma queda sensível e rápida no nível de consumo dos venezuelanos.

Nesse contexto, e diante de uma oposição revigorada e ativa, é provável que o conforto de Hugo Chávez diminua bastante daqui para a frente, a despeito da vitória de domingo.

Leia a nota enviada por Fábio Konder Comparado ao Painel de Leitores, publicada no dia 20 de fevereiro:

"O leitor Sérgio Pinheiro Lopes tem carradas de razão. O autor do vergonhoso editorial de 17 de fevereiro, bem como o diretor que o aprovou, deveriam ser condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro, cuja dignidade foi descaradamente enxovalhada. Podemos brincar com tudo, menos com o respeito devido à pessoa humana."
FÁBIO KONDER COMPARATO , professor universitário aposentado e advogado (São Paulo, SP)

Nota da Redação – A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações acima. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua "indignação" é obviamente cínica e mentirosa.

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