Processo eletrônico

O que os olhos não veem o coração não sente

Autor

  • Nancy Andrighi

    é ministra do Superior Tribunal de Justiça. Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Buenos Aires. Mestre em Mediação pelo Instituto Universitaire Kurt Bosch.

14 de dezembro de 2010, 9h52

[Artigo publicado originalmente no jornal Correio Brasiliense, nesta terça-feira (14/12)]

Adentrar no gabinete para trabalhar e ser tomada pela visão de prateleiras lotadas de processos, com tarjas e capas das mais variadas cores, que lembram um arco-íris, permite que nesse simples perpassar de olhos sejam identificados os tipos de dor subjacente a cada lide, acionando o sentimento de solidariedade.

Outra sensação é a de entrar no gabinete clean, de mesas limpas, brancas, apenas com duas telas de computador, sem a presença física de pilhas de processos, o que pode criar a falsa ideia de que está tudo em ordem, tudo arrumado, tudo julgado dentro do tempo razoável constitucionalmente estabelecido. Saem de cena toneladas de papel e entra uma tela de computador.

A presença quase imperceptível dos processos virtuais, ocultos nos escaninhos eletrônicos do sistema informatizado do tribunal, não palpáveis e invisíveis aos olhos humanos, constitui uma realidade consolidada e que é estranhamente tocada pela evanescência do imaterial, como se de seres etéreos se tratasse e não de vidas reais, inseridas em conflitos, submersas em autos digitalizados.

A reflexão que convido todos a fazer está longe do sentimento de aversão às novidades tecnológicas que infelizmente ainda domina o Judiciário brasileiro. Ao contrário, o que se pretende é ativar intensa vigilância, para que não se retroceda na imprescindível jornada de humanização do Judiciário.

A visão diária dos autos físicos com tarjas, cujas cores distintas permitiam a pronta identificação do tamanho da dor e da angústia contida em cada processo, mantinha viva a chama do dever de fazer até mesmo além do possível para atender aos pedidos de prestação jurisdicional dos idosos, deficientes, acidentados, segurados, menores, presos, alimentandos, família etc.

Essa antiga e certamente ultrapassada forma de identificação dos autos físicos mediante tarjas coloridas deve ser adequadamente substituída. Isso porque a caixa silenciosa do computador poderá ampliar o tempo de duração dessa dor, face à dificuldade que tem uma Corte de ter técnicos que, ao fazer o registro eletrônico dos autos, tenham à sua disposição meios que permitam dimensionar a ansiedade contida em cada processo, para que se estabeleçam critérios factíveis de prioridade de julgamento.

É o fim do papel, mas não da cruel espera. No ponto de partida há a virtualização dos processos, que, por força da máquina, são rapidamente enviados para os Tribunais Superiores. Contudo, no ponto de chegada nada mudou e são os mesmos seres humanos os incumbidos em fazer a análise de cada lide.

Esse fato inatacável leva a crer que a celeridade é parcialmente falsa, na medida em que o Ministro continua sendo o único incumbido de julgar os processos que aportam em seu gabinete. A modificação efetivamente palpável é restrita à da rapidez com a qual o processo sai do Tribunal de origem e dá entrada no Tribunal Superior.

No simples toque da tecla "enter", nada há de humanitário, porque o computador não é capaz de detectar o grau de angústia que cada processo encerra.

Aplaude-se, com efeito, a adoção necessária e imperiosa de um instrumento moderno, como é a do processo eletrônico virtual. Porém, urge que se adotem outros e novos meios para humanizar a identificação dos autos conforme o seu grau de prioridade, sob pena de aniquilarmos o lento avanço da humanização do trabalho judiciário.

Um dos caminhos encontrados pelo STJ foi a inserção de alertas, que aparecem na tela do computador, identificando a urgência, por exemplo, de processos com pedidos liminares.É, pois, de rigor, a tomada de medidas para acompanhar a velocidade dada na largada, a fim de que não se transfira simplesmente a morosidade de um Tribunal para o outro: aquele da chegada dos processos eletrônicos.

A velocidade é virtual, mas o ritual continua o mesmo.

Essa velada e rápida transição para um Judiciário totalmente informatizado deve vir acompanhada, portanto, de mecanismos que permitam uma perfeita operacionalidade do Juiz, a quem incumbe, exclusivamente, priorizar o julgamento dos processos de acordo com a dor que deles dimana.

A virtualização dos processos serviu para encher os corações de esperança, mas a realidade virtual jamais será a mesma que pode ser alcançada pela sensibilidade humana. Se com o ritual do papel, que passava por diversos intermediários até chegar aos Tribunais Superiores, já era difícil dar vazão ao "gargalo", com a virtualização poderá ser criada uma falsa expectativa que, acaso não contornada, será capaz de prolongar, ainda mais, o sofrimento daquele que espera pelo julgamento de sua vida.

O ritual precisa acompanhar o virtual, para que a nova demanda seja compatível com a estrutura humana existente.

Julgar na velocidade do computador é um alvo que está além da capacidade humana. Por outro lado, não há máquina que possa substituir o toque humano dotado de sensibilidade para auscultar o coração de cada lide.

A máquina, portanto, iniciou o movimento de virtualização do processo. Contudo, há, ainda, muito a ser feito, no sentido de dotar o ser humano de meios que lhe permitam julgar adequadamente, sem que sobre ele recaia, mais uma vez, a pecha da morosidade, ante a incompreensão do paradoxo criado entre os avanços tecnológicos e a permanência dos rituais humanos.

Mais do que nunca vai ficar claro que aquilo que os olhos não veem o coração não sente.

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