Vértice de ouro

Uma contribuição à reforma política de Gaudêncio Torquato

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11 de dezembro de 2010, 14h46

Gaudêncio Torquato, a quem o jornal O Estado de S. Paulo destina um espaço nobre no domingo para o seu sempre inteligente e instigante texto, sabe oferecer ao leitor temas que atendem à nossa necessidade por informação política, bem como sabe também ele sugerir soluções criativas que nos animam no sentido de que este nosso país tem solução, bastando para isso que a classe política faça a sua parte.

Sabemos que essa notável combinação de cientista político, professor e experimentador concebe, em seu rico mundo de idéias originais lastreadas no pensamento de outros intelectuais do presente e do passado, um novo e raro rearranjo que elucida e encaminha a mais complexa das questões.

Ainda, em 28 de novembro, um domingo, com o título de “Reforma política, por onde começar”, realizou Torquato correto diagnóstico no momento em que afirma “Por que não começar desembrulhar o pacote pela régua do equilíbrio entre os Poderes?” E acrescenta “… há que se considerar um alinhamento no plano funcional dos poderes. Se a relação entre eles tem rompido o fio constitucional da harmonia, independência e autonomia, por conta da apropriação de funções legislativas pelo Executivo, qualquer reforma política será capenga se não considerar tal fato.” E, no mais, avança contra o presidencialismo poderoso e centralizador brasileiro que compromete o sonho de Montesquieu da tripartição dos poderes , o que permite , ainda, a Torquato sugerir para o Legislativo e para o Executivo, medidas severas de correção de rumos. É por aí que começa a reforma política de Torquato.

O diagnóstico está certo, mas, permita-me, o remédio seria dado ao paciente errado. Não é a eles, Legislativo e Executivo, a quem se deve medicar no primeiríssimo momento e, sim, ao Judiciário. Em virtude da fúria legiferante pós-1988, que imaginou aplacar a sede por justiça de um povo que sempre foi considerado hipossuficiente, Executivo e Legislativo, ora juntos, ora separados, produziram algo como 180 mil leis. Obviamente, o resultado foi desastroso. O Conselho Nacional de Justiça há pouco divulgou que perto de 90 milhões de ações correm nos foros e tribunais de todo o país. Os tribunais se multiplicam, os juízes idem e ainda assim os números recrudescem. A menor das querelas gera processo que ajuda a entupir os foros e que, em virtude do caos legal, consegue atravessar todo o Brasil e fere de morte o coração do sistema judicial. Assim, o Supremo Tribunal Federal perdeu-se em julgar perto de 200 mil processos no ano de 2008, enquanto as cortes supremas dos Estados Unidos e Canadá julgaram, individualmente, menos que 100 processos. Fica, desta maneira, claro que não teve o Judiciário nem tempo nem condições de exercer o seu real papel: o vértice de ouro do triângulo concebido por Montesquieu, que tem como missão assegurar aos dois outros vértices: o Legislativo e o Executivo. A independência, o respeito e a efetividade.

Permita-me, Torquato, citar o seu admirado Tocqueville (1835-1840),por mim também estimado. Afirmou ele que o Judiciário norte-americano constitui “o mais poderoso e único contrapeso da democracia”. E, lá, nada mudou. Como também pouco mudou a Constituição Americana.

A tão esperada reforma do Judiciário deve, pois, iniciar a verdadeira reforma política no país. Não me refiro tão só à forma: a reformas de códigos e procedimentos, ritos e prazos, férias e imunidades. Refiro-me, sim, ao conteúdo: a incorporação na lei, no espírito da lei, e no do procedimento de uma nova visão do direito e da justiça que os vincule à realidade fática pós-moderna. Penso que agora se apresenta ao mundo um conceito novo e dinâmico, sistêmico, inter-multi e transdisciplinar que não poderá deixar de ser considerado pelo legislador e pelo juiz: a “sustentabilidade”. Por meio dela ver-se-á se a norma em questão atende às necessidades simultâneas da economia, da simplicidade, da ecologia. Onde o direito, obrigatoriamente, deve estar contido. Se a norma contribui para a pacificação; se atende ao progresso tecno-científico, bem como o incentive; se a norma respeita a pluralidade, e se cria espaços de diálogo permanente e, finalmente, ressalta a necessidade da nova norma desencorajar no cidadão e em suas empresas a busca de decisão judicial para a solução de controvérsias. As decisões deverão ser majoritariamente consensuais e tratadas diretamente entre as partes.

Estará o judiciário preparado para entender tais mudanças? E para atender a elas? O clarividente ministro do STF Ayres Britto, em recente debate declarou: “Tem muito formol nas estantes desses profissionais do direito (os juízes). O Poder Judiciário, com freqüência, se comporta de modo saudosista, com nichos que parecem laborar no passado”.

Mas não é de hoje que o judiciário é assim compreendido. Socorremo-nos de novo de Tocqueville que consegue apresentar maravilhoso quadro que expõe claramente a dicotomia povo-judiciário: “Aos seus {do povo} instintos democráticos, os {juízes} opõem secretamente os seus pensadores aristocráticos; ao seu amor à novidade, o seu supersticioso respeito a tudo que é antigo; à imensidade de seus propósitos, as suas vistas estreitas, ao seu desprezo às regras, o seu gosto pelas formas; e ao seu ardor, o seu hábito de proceder com lentidão”.

Eis, pois, o que julgo ser, a reforma das reformas: uma absoluta mudança de paradigma no seio do Judiciário.

Então, finalmente, com um Judiciário reciclado e turbinado, será ele mesmo – o vértice de ouro – quem irá arbitrar o conflito que já existe e que irá exacerbar-se entre Executivo e Legislativo, quando a reforma política pegar fogo e opuser um a outro, Executivo x Legislativo, como bem deixou demonstrado Torquato naquele maravilhoso artigo.

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