Ideias do milênio

"A religião é uma força ideológia poderosa"

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10 de dezembro de 2010, 14h58

A Consultor Jurídico publica, nesta sexta-feira (10/12), a transcrição da entrevista do crítico literário e cultural irlndês Terry Eagleton, concedida ao jornalista Sílio Boccanera, do programa Milênio, da Globo News, no dia 10 de novembro, durante a Flip – Festa Literária de Paraty. O Milênio é um programa do canal de televisão por assinatura Globonews, que entrevista pensadores do mundo inteiro sobre os mais diversos assuntos. Vai ao ar às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça-feira, às 5h30 de quarta e às 7h05 de domingo.

Leia a seguir a entrevista:

Em debate para um auditório lotado durante a FLIP, a Festa Literária de Paraty, no Rio de Janeiro, o crítico cultural e literário britânico Terry Eagleton, mostrou que merece a fama de polêmico e combativo. Protestou até contra o entrevistador, que citou algumas das críticas a ele. O convidado não gostou. Críticas como a do jornal britânico Sunday Times que classificou Eagleton de marxista, religioso, velho e punk. Ou o comentário da viúva do escritor Kingsley Amis em resposta às acusações de anti-semitismo e homofobia que Eagleton fez ao marido. Ela chamou Eagleton de uma mistura mortal de católico com marxista.

Ainda em Paraty, Eagleton achou tempo para desancar o ateísmo militante dos compatriotas Richard Dawkins e Christopher Hitchens, além de apontar uma suposta islamofobia dos premiados escritores Martin Amis e Salman Rushdie. Este é o famoso autor indiano perseguido por fundamentalistas islâmicos que na mesma FLIP chamou Eagleton de covarde e mentiroso. O acusado não respondeu.

Hoje com 67 anos, Eagleton já publicou mais de 40 livros sobre cultura, política e religião, vários deles traduzidos no Brasil, e centenas de artigos e ensaios sobre os assuntos mais variados. De nacionalismo a pós-modernismo, de Shakespeare a Oscar Wilde, Wittgenstein e Walter Benjamin. Seu próximo livro terá o título Por que Karl Marx estava certo. Ele hoje dá aulas nas universidades de Lancaster na Inglaterra, Notre Dame nos Estados Unidos e na Universidade da Irlanda. Conversamos com Eagleton em Paraty.

Terry Eagleton — Antes de mais nada, eu queria agradecer por essa introdução deveras sensacionalista, que me faz parecer mais um boxeador peso-pesado do que um intelectual. Tomara que vocês não estejam esperando que eu comece a pular em volta do palco, me pendurando no teto como um gorila, dada essa introdução, que poderíamos descrever como um tanto apelativa. Espero que sejamos intelectualmente sérios aqui.

Silio Boccanera — Pode deixar.
Terry Eagleton — E, por favor, não vamos nos limitar a um duelo de pesos pesados. 

Silio Boccanera — Tirando “religioso, velho e punk”, como foi descrito pelo Sunday Times, o senhor é, muitas vezes, classificado como um crítico literário e cultural marxista. Se aceitar essa descrição, o que isso faz do senhor?
Terry Eagleton — Vou responder à sua pergunta falando como… Eu queria falar rapidamente sobre esse debate sobre Deus. Você levantou a questão desses diversos conflitos. Prefiro não começar entrando direto no debate e perguntando quem acredita ou não em Deus. Eu queria me distanciar por um instante e dizer como é incrível que um debate sobre Deus esteja acontecendo. Por que Deus subitamente voltou ao debate numa era que se diz pós-religiosa, pós-metafísica, pós-moderna e, como alguns diriam, pós-histórica? O que está havendo? Por que todo mundo voltou a falar em Deus? Então, a primeira pergunta a se fazer é: “Por que esse debate está de volta, logo agora que Deus parece ter saído de cena, com certeza, já muito arrependido de um dia ter criado a mínima partícula de matéria, e muito mais por ter criado Donald Rumsfeld [secretário de Defesa dos Estados Unidos no governo de George W. Bush]?” Por que, subitamente, ele voltou a ser alvo de discussão? Obviamente, há diversas respostas para isso. Mas vou sugerir, rapidamente, uma: o 11 de Setembro. Estou me referindo, é claro, ao 11 de Setembro mais recente, não ao primeiro 11 de Setembro, que o povo deste continente conhece bem: o dia em que o governo dos EUA derrubou violentamente o governo democraticamente eleito de Salvador Allende no Chile, substituindo-o por um ditador abominável que acabou assassinando muito mais gente do que os atentados ao World Trade Center. O primeiro 11 de Setembro! Na verdade, houve um11 de setembro antes disso que pouco se comenta: o nascimento de Theodor Adorno, mas só os direitistas consideram isso uma catástrofe. Mas, deixando isso de lado e respondendo à sua pergunta, eu acho que um dos grandes motivos para Deus ter voltado ao centro do debate é o 11 de Setembro.

Silio Boccanera — Nos livros que o senhor escreve sobre religião, principalmente nos que critica Dawkins e Hitchens, o senhor expõe uma visão muito pessoal de Deus, uma visão diferente daquela que muitas pessoas têm de Deus. Como o senhor definiria esse conceito de Deus?
Terry Eagleton —
Não acho que eu tenha uma visão pessoal de Deus. Prefiro considerá-la uma visão tradicional. Acreditando ou não em Deus, nós temos a responsabilidade intelectual de entender direito o significado disso. Eu não critico Richard Dawkins por sua descrença em Deus. Milhões e milhões de pessoas não acreditam em Deus. O problema é que ele não faz idéia do que significa acreditar em Deus. Eu considero o Richardo Dawkins, um racionalista antiquado do século 19 que acredita que Deus é uma espécie de pseudocientista, que Deus é um rival da evolução. Acreditar em Deus não se trata disso. A doutrina da criação não tem nada a ver com a origem do mundo. Richard Dawkins não sabe disso. Ele não sabe, por exemplo, que o maior teólogo que já viveu, São Tomás de Aquino, achava bastante plausível o mundo não ter uma origem. São Tomás de Aquino pensava, acertadamente, que isso era uma questão para os cientistas. Não tinha nada a ver com teologia. A doutrina da criação não tem nada a ver com a origem do mundo, como crê, equivocadamente, Richard Dawkins. Se quiserem mesmo saber do que se trata, me procurem pessoalmente mais tarde que, por um preço bem em conta, eu conto para vocês. 

Silio Boccanera — No livro, o senhor critica a visão de Deus como criador de tudo, ou, como o senhor diz, como o “Grande Fabricante”. Mas a maioria acredita que Deus é isso.
Terry Eagleton —
A maioria acredita que o socialismo se resume a campos de concentração stalinistas. Muitas pessoas têm crenças com que não precisamos necessariamente concordar. A minha visão pessoal é… Por exemplo, Richard Dawkins acredita, sem exagero, que acreditar em Deus é o mesmo que acreditar em alienígenas, no Abominável Homem das Neves ou no Monstro do Lago Ness. Acreditar em Deus não tem nada a ver com isso! E não preciso acreditar em Deus para afirmar isso. É só observar as ricas tradições da teologia cristã, da teologia judaica, da teologia islâmica e tentar juntar os pedaços.

Silio Boccanera — O senhor colocaria o pensamento de outro entrevistado nosso, Chritopher Hitchens, na mesma linha? Há uma diferença de abordagem?
Terry Eagleton —
O que eu gosto na abordagem de Htichens sobre religião é a violência e a crueldade com que ele a trata. O Hitchens e eu fomos, há muito tempo, camaradas trotskistas, mas ele cresceu, ele amadureceu. Eu ia dizer que ficou sóbrio, mas talvez seja exagero. Enquanto isso, eu fiquei preso na minha perspectiva infantil, incapaz de aceitar a realidade. O que eu gosto na abordagem de Hitchens sobre religião é a falta de rodeios. Ele não diz de um jeito comedido e tolerante: “Se suas crenças são essas, eu aceito sem problema.” Ele diz que considera a religião repugnante. Bom, concordando ou não, isso é algo passível de argumentação. É mais fácil argumentar com Christopher Hitchens do que com o capelão da rainha. Ele não vai perguntar se você foi lavado no sangue do cordeiro, ele vai simplesmente lhe oferecer mais um licor. Hitchens e Dawkins acreditam, sem exagero, que as coisas, como um todo, estão melhorando. Eles admitem problemas pontuais, bolsões de miséria, opressão e infelicidade, mas, se não fosse esse preceito horrível chamado “religião”, se ela fosse retirada da equação, poderíamos marchar rumo a um novo iluminismo. Não consigo pensar em crença mais supersticiosa do que essa.

Silio Boccanera — Em seu livro Jesus Cristo – os Evangelhos, publicado aqui no Brasil, o senhor descreve a vida de Jesus Cristo. O senhor vê Jesus como um revolucionário, como Lênin ou Trotski o considerariam, como uma figura mística que teria sido esquecida se não fossem as reações dos líderes judeus e dos romanos, ou como o filho de Deus?
Terry Eagleton —
Eu posso tentar responder, mas quem quiser comprar esse livro baratíssimo e deveras interessante poderá descobrir por conta própria. Não fui eu que escrevi o livro. Ele se chama “Novo Testamento”. Foi escrito por outras pessoas há muito tempo. Eu escrevi que a idéia de Jesus como revolucionário, como foram Che Guevara ou Lênin, é totalmente anacrônica. Uma razão que, provavelmente, desmistifica Jesus como revolucionário, nesse sentido, é a sua crença no advento do fim da História. Não havia tempo para organizar urnas, partidos políticos e por aí vai. Jesus achava que a História estava chegando ao fim. Portanto, a política não era importante. Por outro lado, podemos entender “revolucionário”, que pode ter diversos sentidos, como alguém que aceita a natureza trágica da condição humana, ou seja alguém que aceita que é possível encarar corajosamente o fracasso, a ruína, a perda e a miséria, sem se transformar em pedra, e dizer: “Esta é a realidade da condição humana.” Para se obter a imagem ou o ícone da condição humana, é só observar um criminoso político crucificado, insultado e torturado, pois os romanos restringiam a crucificação a crimes políticos, e tentar refletir sobre isso. Essa seria a minha resposta a Christopher Hitchens e Richard Dawkins, e não um argumento abstrato ou teórico sobre a existência ou não de um ser supremo, como se estivéssemos falando do Abominável Homem da Neves. Mas como podemos interpretar isso? Como podemos interpretar a posição de que, somente através de um comprometimento obstinado com essa imagem de fracasso e ruína, que é o exato oposto do sonho americano, em todos os sentidos, poderíamos ter a chance de chegar a uma forma de vida nova e transfigurada? Falar sobre fé não significa falar sobre alguma questão intelectual, como a existência de um ser supremo, significa falar sobre alguém que, em meio a perplexidade e escuridão, se manteve comprometido, talvez sem saber por quê, com essa possibilidade de um amor transfigurador e um poder transfigurador. A nossa reação a isso me parece muito mais relevante para a política mundial atual do que uma afirmação intelectual sobre um ser supremo.

Silio Boccanera — Como teórico marxista autoproclamado, onde o senhor situa a expressão “o ópio do povo” de Marx?
Terry Eagleton — A
h, sim! Antes, eu gostaria de dizer que, no ano que vem, um livro baratíssimo e deveras interessante, no caso, escrito por mim, será lançado sobre Marx. Eu odeio livros com títulos provocativos, mas ele se chama “Why Marx Was Right” [Por Que Marx Estava Certo – no título em inglês, o autor faz um trocadilho, já que right serve tanto para dizer certo, como direita]. O propósito do livro… não é uma obra acadêmica. É para um público muito mais amplo. Eu pego dez dos argumentos mais comuns, mais batidos, contra Marx e, como dizem no críquete, rebato-os para fora do campo. Eu tento dar conta de cada argumento. As observações de Marx sobre religião são muito interessantes. Se pensarmos no atual radicalismo islâmico, a religião não é o ópio do povo, ela é o crack do povo. Essa frase é frequentemente mencionada fora de contexto. Alguém sabe o que Marx diz antes de “ópio do povo”? Ele diz: “A religião é o coração de um mundo sem coração. Ela é o gemido e o suspiro do oprimido. Ela é a alma de condições desalmadas. Ela é o ópio do povo.” É incrível como isso é citado fora de contexto. Eu concordo com Marx. A maioria das religiões… Aqui, eu concordo integralmente com Richard Dawkins e com meu velho amigo trotskista, Christopher Hitchens. A maioria das religiões se manifestou como uma forma perversa de opressão ideológica. É escandaloso que um documento como o Novo Testamento seja usado com esse intuito por ricos e poderosos, enquanto o Evangelho de Lucas, pelo menos, começa descrevendo a figura de uma jovem submissa e grávida: Maria, grávida de Jesus. Lucas põe na boca dela o que hoje sabemos ser um cântico zelote, o cântico dos judeus revolucionários e anti-romanos locais que o cristianismo conhece como “Canção de Maria” e que, segundo a tradição e a ortodoxia, quer dizer: “Conheceremos Deus por aquilo que Ele é quando virmos os famintos alimentados por dádivas e os ricos sendo expulsos de mãos vazias.” Gostaria de colocar essa questão a Richard Dawkins e Christopher Hitchens, pois é isso que Maria e Lucas identificam como Deus. Não tem nada a ver com o “ópio do povo”. Não sabemos por que Jesus foi crucificado. Talvez nem os evangelistas soubessem. Ele demonstram muita confusão a respeito. Quantos foram os julgamentos, por exemplo? Mas sabemos de uma coisa. É bem provável que ele tenha sido exterminado pela classe governante local, pelo sinédrio judeu, porque se temia que ele estava incitando uma revolução, o que traria a opressão do poder imperial romano sobre o povo judeu. Eu não acho que Jesus estava incitando uma revolução, mas aquela era a situação. E isso não tem nada a ver com o “ópio do povo”. 

Silio Boccanera — Ainda com relação ao “ópio do povo”, o senhor escreveu um artigo associando o “ópio do povo” ao futebol. O artigo saiu no jornal britânico Guardian. O senhor diz que “o futebol não é bom para quem busca mudanças sociais. Ele é o novo ópio do povo.” Já que o Brasil é louco por futebol, talvez possa elaborar um pouco mais.
Terry Eagleton —
Como estou no Brasil, eu retiro o que disse! Me perdoem. Me perdoem. Não me crucifiquem. Na verdade, não entendo nada de futebol. Mas, como sempre digo, a ignorância nunca me impediu de nada. Nunca deixe o desconhecimento impedi-los de fazer algo. Esse é o único conselho que eu tenho para dar. Podemos pensar na miríade de substitutos para a religião que existem na modernidade. Livrar-se da religião significa livrar-se de uma força ideológica muito poderosa. Na verdade, eu me arriscaria a dizer que essa é a forma mais poderosa e simbólica que a humanidade já testemunhou. Existe forma simbólica mais poderosa do que aquela que associa diretamente os detalhes do cotidiano de milhões de pessoas a uma verdade absoluta e transcendental? Não dá para competir com isso. Assim, quando a religião começa a fracassar na modernidade… É interessante ver como esse fracasso não se deve a ateus cabeludos como Richard Dawkins, que, na verdade, nem tem muito cabelo. O fracasso da religião está na própria modernidade. O capitalismo é inerentemente um modelo de vida descrente, secular, pragmático, racional e relativista, e, assim, ele tende a solapar, através de suas ações diárias, os modelos ideológicos, como a religião, ao mesmo tempo em que recorre a eles. Essa é uma contradição inerente às sociedades capitalistas. Mas o fracasso da religião precisa ser suprido com algo. Existiram diversas alternativas à religião no período moderno, sendo uma das mais interessantes e poderosas a cultura. Não me refiro à cultura no sentido de Balzac ou Beethoven, mas à cultura como uma forma de vida. Identidade, afinidade, aceitação, história, linguagem, símbolo. A cultura é o que faz as pessoas matarem. Querem uma definição de cultura? Hoje cultura é aquilo pelo que as pessoas morrem voluntariamente ou matam. A forma mais evidente disso, que é muito familiar neste continente, e muito familiar na minha terra, a Irlanda, é o nacionalismo. Se existiu uma religião moderna, para o bem ou para o mal, ele foi o nacionalismo. Mas mesmo o nacionalismo, num mundo globalizado, não consegue suprir a religião por si só. Precisamos de algo cerimonial, simbólico, ritualístico, que envolve milhões de pessoas, que tem tradição e história. E o que é melhor do que o futebol? O futebol é uma conspiração da classe dominante. A elite sentou em volta de uma mesa, numa sala livre de fumantes, e disse: “Como vamos mantê-los felizes, principalmente quando não estiverem trabalhando?” O lazer significa isso: o que fazer com as pessoas quando elas não estão trabalhando. E inventaram essa brilhante idéia chamada “futebol”, o que não entendo bem porque quase nunca vi. Mas eu sei disso.

Silio Boccanera — No seu livro de 2003, Depois da Teoria, publicado no Brasil, o senhor critica a cultura contemporânea e literária. O que há de errado na cultura literária contemporânea?
Terry Eagleton — Não acho que esse seja o tema principal do livro. 

Silio Boccanera — Está no livro.
Terry Eagleton — O tema principal é o que aconteceu com a teoria literária, com a teoria da cultura, porque há 20 ou 30 anos, ela ia muito bem e de repente parou. Acho interessantes as razões disso, como eu argumento no livro. Eu acho, por exemplo, que o declínio da teoria da cultura aconteceu paralelamente ao declínio da esquerda. Os melhores anos da teoria da cultura, o final dos anos 60 até o começo dos anos 80, foram os anos em que a esquerda ia muito bem. Acho que há uma ligação entre as teorias ambiciosas, o raciocínio ambicioso, e o sucesso da esquerda. Quando a esquerda parou de avançar tanto, a teoria começou a declinar. Então, o estado da cultura contemporânea literária não me preocupa tanto quanto isso. Porém, devo dizer uma coisa sobre a cultura contemporânea literária na Grã-Bretanha. Acho muito interessante e deprimente o fato de que as pessoas que foram mais veementes em sua reação apavorada ao islamismo radical, pessoas como Martin Amis, Christopher Hitchens, e em certa medida, mas menos em pânico, Ian McEwan…Essas são as pessoas que deveriam ser os guardiões da chama liberal. As mesmas pessoas que execraram muçulmanos comuns, inocentes, os denegriram com o rótulo do terrorismo, são as pessoas que confessam ser os intelectuais liberais britânicos. Eu incluiria Salman Rushdie nessa lista. Acho que há uma terrível ironia aí, pois as mesmas pessoas que deveriam defender a tolerância, a pluralidade e a diversidade deram o primeiro golpe, digamos assim. Não me entendam mal, o islamismo radical é realmente um fenômeno repugnante. São pessoas que explodem crianças em nome de Alá, e não há como defender isso. Mas quem excedeu o limite nesse assunto foram os liberais cultos de Londres. 

Silio Boccanera — Salman Rushdie esteve aqui e disse que isso é uma distorção do ponto de vista dele. Mencionou especificamente o seu nome e disse que o senhor mente sobre isso. Foram palavras dele. Ele disse que faz claramente a mesma distinção que o senhor fez entre o islamismo radical e o islamismo em geral. Porque o senhor critica Rushdie e esses outros autores por criticarem demais o islamismo em geral, como o senhor disse, e não apenas os terroristas. Ele disse que o senhor distorce a visão dele. O que acha disso?
Terry Eagleton — Bem, eu acho que há, é claro, diferenças individuais no grupo que mencionei, mas o que me alarma é que a linha que separa a crítica perfeitamente justificável ao islamismo radical e a “islamofobia” tornou-se tênue em alguns casos e foi ultrapassada repetidamente. Principalmente por Martin Amis, por exemplo, e também por Christopher Hitchens. Hitchens e Amis odeiam o islamismo porque odeiam todo tipo de religião. Eles têm direito a esse ponto de vista intelectual, mas não têm direito de confundir os milhões de muçulmanos do mundo com uma minoria especialmente violenta. Também devemos nos lembrar, ao falarmos de fundamentalismo, que há uma variante texana assim como há uma variante talibã. E me parece extraordinário essas pessoas não mencionarem isso. Elas não mencionam como a própria civilização ocidental está permeada de ponta a ponta por formas de fundamentalismo evangélico. Não preciso falar disso no Brasil, país que está muito ciente disso. De alguma forma, reserva-se o liberalismo para o Ocidente e o extremismo para o Oriente. Em parte, talvez seja porque a URSS não existe mais, então as pessoas precisam de outro bicho-papão. Mas o eixo entre fundamentalismo e liberalismo não pode ser mapeado pelo eixo Ocidente-Oriente, eu diria. Ele o atravessa completamente. Eu gostaria de ouvir gente como Salman Rushdie e Martin Amis dizer isso com mais veemência do que dizem em vez de falar como se a tradição do Ocidente estivesse totalmente livre da barbárie e o bárbaro sempre fosse o outro. O tipo de… A convicção liberal progressista, melhor exemplificada por Dawkins, mas que Hitchens compartilha, eu acho, diz que antes havia barbárie e agora há civilização, e o perigo abominável é podermos sempre ter uma recaída. Essa é a convicção liberal progressista padrão. É totalmente equivocada. Uma das boas razões para ser marxista, além do prazer de irritar as pessoas, é que os marxistas sempre afirmaram que a civilização e barbárie são dois lados da mesma moeda: Eles não são consecutivos, barbárie depois civilização, são sincrônicos. Em toda civilização há miséria, exploração, infelicidade etc. Eu não conheço nenhuma crença, exceto o marxismo, que diz, ao mesmo tempo, que a modernidade tem sido uma emancipação longa e escravizante para milhares de pessoas. Democracia, feminismo, republicanismo, democracia… Foi uma emancipação dos terrores dos antigos regimes e tem sido um pesadelo longo e indescritível. O marxismo une… Ele era chamado de “dialética”, quando os homens ainda usavam costeletas e jaquetas jeans. O marxismo tenta afirmá-las simultaneamente. Alguém que vê a civilização simplesmente como uma história de progresso triunfal, como acho que Dawkins vê, ou a vê simplesmente como a degeneração de um passado ideal não percebe essa dialética essencial.

Silio Boccanera — Combinando Marx, teoria e crítica literária, sua área, como o senhor acha que o marxismo, como ferramenta, pode ser mais útil para entender a literatura?
Terry Eagleton — Há uma caricatura da crítica literária marxista… Uma caricatura compreensível, porque muitas críticas são assim. Segundo ela, abrimos um romance e contamos o número de trabalhadores ou vemos se há minas ou fábricas. É como a caricatura vulgar da crítica literária freudiana, em que se conta o número de símbolos fálicos em cada obra. György Lukács, que talvez seja o maior crítico literário marxista, certa vez disse que o mais importante em uma obra literária, do ponto de vista político, histórico e ideológico, é a forma, a forma artística. Se eu fosse citar um crítico literário atual que faz isso magistralmente, porque, de certa forma, toda sua obra é sobre isso, eu diria que é Fredric Jameson, nos Estados Unidos. Jameson constantemente tenta demonstrar como a História reside no texto, nos seus detalhes linguísticos formais mais delicados e minúsculos. Acho que há uma tradição ilustre da crítica literária marxista, que inclui [Walter] Benjamin e [Theodore] Adorno, que tenta fazer exatamente isso. 

Silio Boccanera — Por obrigação, o senhor precisa ler muito, eu espero. O que o senhor leu recentemente que acha que vale a pena ler, que interessaria à platéia?
Terry Eagleton — Eu poderia citar vários livros meus.

Silio Boccanera — Eu devia ter pedido para não considerá-los.
Terry Eagleton — Então há outros livros? Perdão. Por isso eu escrevo tanto, quando quero ler um livro, eu escrevo um. Sempre achei muito invasivo ler o livro de outras pessoas, você se intromete na vida deles de certa forma. É uma pergunta muito difícil. Para começar, falo isso para agradar vocês de forma escancarada, eu preciso ler mais literatura brasileira. Li muito pouca literatura sul-americana em geral. Infelizmente, a única situação pela qual passei na América Latina foi ter sido preso pela polícia na fronteira do México, há muitos anos, quando eu lecionava com Jameson em San Diego. Se for a “pergunta da ilha deserta”, não tenho dúvida. “Qual livro eu gostaria de levar para uma ilha deserta?” Não há dúvida. É um dos melhores romances já escritos. Se alguém quiser saber qual é, fale comigo mais tarde, a sós, e, por uma quantia modesta… Não. Tudo bem. É Proust. O que eu sempre faço – fiz isso na longa viagem para cá – é pegar um volume de Em Busca do Tempo Perdido e mergulhar nele, ler o livro. Eu acho uma experiência delirante. Apesar de Proust ser considerado um autor muito difícil, ele é incrivelmente engraçado, em primeiro lugar. E o estilo dele é esplendido. Voltando um pouco à pergunta sobre a crítica literária marxista. A crítica literária marxista deve ligar a História à obra literária. Proust é um ótimo exemplo disso porque eu tenho uma teoria, não a espalhe: a extensão enorme das frases de Proust é resultado da Comuna de Paris de 1871. Isso deve parecer uma teoria pouco sensata para um crítico defender. A mãe de Proust estava grávida dele durante a Comuna de Paris e, como boa burguesa francesa, ela tinha medo de perder seus bens, sua vida, seu filho… Existe a teoria de que Proust começou a ter sua famosa asma por causa dessa experiência intrauterina. E a minha teoria é que a enorme extensão das frases de Proust é uma compensação inconsciente por sua falta de ar. É completamente impossível falar uma frase de Proust sem um tanque de oxigênio nas costas.

Silio Boccanera — A viúva do escritor Kingsley Amis disse que o senhor é “uma combinação letal de marxista e católico.” Tenho curiosidade de saber se essa combinação já o levou à Teoria da Libertação, que é muito forte na América Latina, ou, ao menos, era.
Terry Eagleton — Sim. Um dos meus maiores interesses na América Latina é isso. Nos anos 50, quando eu estudava em Cambridge, eu me associei ao que era chamado de movimento da esquerda católica na Grã-Bretanha e Irlanda. Um dos problemas desse movimento foi que nos organizamos pouco antes da Teoria da Libertação aparecer aqui. Nossos pensamentos precisavam se concretizar. Teriam se concretizado mais, eu acho, se tivéssemos nos organizado depois da Teoria da Libertação. Mas, com certeza, fomos muito influenciados por ela. Aliás, você falou que eu sou marxista e católico. Não sei se eu diria que sou católico. Quero dizer, eu reluto muito em me associar formalmente a essa instituição extremamente patriarcal opressora. Assim que o papa puser os pés na Grã-Bretanha, eu pretendo prendê-lo. Sempre achei interessante a questão da infalibilidade papal. A declaração do papa da sua própria infalibilidade foi infalível? Retroativamente, até que ponto ela vai? Se ela não foi infalível, então não é preciso acreditar nela. Para mim, a palavra “católico” sugere tudo isso. Porém, ao mesmo tempo, eu diria que tive uma criação católica que, simplesmente por acaso, foi muito inteligente. Quando eu cheguei ao ponto, aos 18 anos, em que qualquer pessoa normal, civilizada e decente teria rejeitado esse negócio, eu encontrei uma versão do cristianismo que fazia sentido político, ético e cultural para mim e, por isso, era mais difícil de abandonar. Ainda era possível abandoná-la, mas eu teria que… Os custos seriam altos. Minha objeção a vários tipos de ateísmo não é a falta de fé em Deus, mas é o fato de a maioria dos ateus pagar um preço baixo pelo seu ateísmo. O que eu quero dizer com isso é que eles nem se confrontaram com uma versão do cristianismo que custaria caro abandonar. Eu moro na Irlanda, e quase todo intelectual irlandês, homem ou mulher, talvez aconteça o mesmo aqui, é ateu de carteirinha, uma coisa desagradável. Mas, como sempre digo a eles, não há problema nisso. O problema é pagar um preço tão baixo por isso. Você precisa lutar para abandonar algo que tem valor. O sacrifício, uma ideia pouco popular entre os pós-modernistas de hoje… O sacrifício é o abandono de algo que você acha extremamente valioso. Senão não seria sacrifício. O celibato é um elogio à sexualidade – se for compreendido corretamente – porque ele diz que essa dádiva, essa capacidade tão preciosa, é algo que você rejeita deliberadamente, por certas razões. Por acaso, é claro, na Igreja Católica, não é o celibato que é sacramental, mas o casamento. São Paulo deixa bem claro que a união sexual de duas pessoas é que é o sinal do amor de Deus. Não é o celibato, mas o casamento que é sacramental. Mas você tem que… Se você rejeita uma crença, o cristianismo, o que quer que seja, isso precisa ter algum significado. O problema da maioria dos ateus hoje é que isso não tem muito significado. Você herda sua fé assim como herda a cor dos olhos etc. Uma das razões disso – para concluir, peço desculpas por demorar tanto tempo -, é uma afirmação que fiz antes: eu acho que as civilizações capitalistas modernas são apenas lugares inerentemente sem fé. O que eu quero dizer com isso é que o capitalismo não depende das suas crenças para sobreviver ou para se reproduzir. O Estado capitalista não está nem aí para o que você acredita desde que sua crença não o enfraqueça ou que ela não o faça interferir nas crenças dos outros. É isso que chamamos de “liberalismo”. Uma doutrina muito honrada. O que pode afetá-lo não é a fé que mantém o sistema funcionando. É algo mais cruel, material e egoísta. Quando esse sistema se encontra cara a cara com o inimigo, o islã radical, que não tem absolutamente nenhum tipo de problema com suas fundações, com suas crenças ou suas realidades transcendentais, então se vê preso numa crise interna. Isso, para mim, é um fato tão importante quanto mal explorado da tão aclamada “Guerra ao Terror”. O islã radical confronta o ocidente com aquilo que já foi a sua grande necessidade de crença e sua própria incapacidade crônica de crer. O resultado é que o mundo está tendendo à divisão entre aqueles que acreditam muito e aqueles que acreditam pouco. Entre os evangélicos fundamentalistas de um lado e, você sabe, do outro, pessoas que não acreditam em nada mais do que seus extratos bancários e suas crianças. O mais interessante disso tudo é que cada uma dessas partes empurra a outra em direção a uma versão extremada de si. Quanto mais sem raízes, cosmopolita, secular e céticas as civilizações se tornam, mais os patriotas e os fundamentalistas se agarram a essa imagem tão limitada de caipira. Quanto mais eles seguem nessa direção, mais a outra parte reage da mesma forma. Estamos presos, nesse momento, numa espécie de dialética circular e congelada, na qual cremos muito em muito poucas coisas. Mas há esperança pois, nesse intervalo, pessoas como eu, que estão no meio do caminho, podem influenciar aqueles que não creem em muito e aqueles que não creem em pouco… Estou sendo irônico, ok? 

Silio Boccanera — Mas o senhor diz, por exemplo: “Deus sustenta as coisas por Seu amor e fez o mundo simplesmente por amor e deleite.” O que isso significa?
Terry Eagleton — Isso é como citar uma frase de “Moby Dick”, de Shakespeare, de Keats ou de Neruda e perguntar o que significa. 

Silio Boccanera — O conceito expresso no livro…
Terry Eagleton — Vou tentar responder à pergunta. Não se pode destacar uma passagem dessas sem um contexto, sem uma cultura, sem uma história, e perguntar o que significa. Esse é o tipo de erro racionalista que Richard Dawkins cometeria. Aliás, eu gostaria de dizer que tenho grande admiração por sua incrível capacidade de comunicação da Ciência e, além disso, por sua corajosa campanha contra as opressões odiosas provocadas pela religião hoje. Ainda assim, Richard Dawkins tem uma visão nada tradicional, uma visão muito racionalista do significado. O filósofo Alasdair MacIntyre afirmou certa vez que “o Deus rejeitado nos séculos 19 e 20 foi inventado no século 17”. Ele não tem nada a ver com o Deus de Abraão, Isaac e Jacó.

Silio Boccanera — Um dos argumentos que Dawkins expôs aqui, ano passado, foi que as crenças religiosas são baseadas, em grande parte nas circunstâncias do nascimento. Ninguém nasce católico, muçulmano ou judeu. As pessoas têm essas condições determinadas pela família. E uma das críticas feitas por ele é que não se pode chamar uma criança de católica porque a criança não teve a oportunidade de pensar a respeito e tomar uma decisão. Então, até que ponto o senhor acha que a maioria das pessoas tem crenças religiosas simplesmente devido ao ambiente em que nasceram e à doutrinação?
Terry Eagleton — Não há dúvida.

Silio Boccanera — O senhor considera que religião e resultado de doutrinação?
Terry Eagleton — A religião é geralmente guiada pelo ambiente familiar. Apesar de muitas pessoas, infelizmente, não refletirem criticamente sobre suas crenças. Do mesmo modo, imagino que Richard Dawkins tenha nascido numa família ateia e racionalista. Espero que ele tenha conseguido refletir criticamente sobre isso e tenha se perguntado se esse racionalismo é conseqüência de doutrinação ou é algo com que ele se compromete genuinamente. Um dos problemas de Dawkins… Me desculpem por insistir nessa pessoa em particular. O debate é muito mais amplo. O Dawkins realmente pensa que toda fé é cega. Richard Dawkins não percebe que, como qualquer ser humano, ele tem muitas crenças. Sem dúvida, não são crenças religiosas, mas Richard Dawkins tem as suas verdades. Ele se envolve com muitas coisas, como qualquer outra pessoa. E não é algo insensato de se fazer. O Dawkins comete o erro herético – a heresia conhecida como “fideísmo” – de achar que fé e razão estão completamente separadas. É como dizer que amor e razão são completamente separados. Como se estar apaixonado por alguém nos impossibilitasse de explicar a causa da paixão e de comunicar aos outros que estamos apaixonados, o que não é verdade. Então, eu concordo. Infelizmente, a verdade é que a maioria de nós – budistas, católicos, ateus, racionalistas – adere automaticamente à crença familiar, mas alguns tentam adotar um distanciamento crítico.

Silio Boccanera — No seu livro de 2002, Marxism and Literary Theory, ainda sem tradução no Brasil, o senhor diz: “O que morreu na URRS era marxista apenas no mesmo sentido em que a Inquisição era cristã.” Então o senhor não perdeu a sua fé? Em Marx, não em Deus.
Terry Eagleton — Sabe… O socialismo sobreviveu a todo tipo de crises e passa por uma crise muita séria atualmente. Acho que um dos motivos de ele ter sobrevivido é por ser uma ideia brilhante. E… Você sabe… Quando algumas pessoas, com muita presunção, disseram que o marxismo estava acabado, morto, não tinha nada a contribuir ao mundo moderno, houve uma imensa crise do capitalismo, e o marxismo não é nada além de uma análise das contradições e crises internas do capitalismo. Não estou dizendo que todo mundo deva ser marxista. Eu começo esse livro incrivelmente barato sobre Marx dizendo que tenho muitas críticas a Marx. Não conheço um freudiano que aceite todas as palavras de Freud. Não conheço um darwinista, fora Richard Dawkins… E com certeza não sou um marxista que acredita em tudo que Marx disse, incluindo que o colonialismo na Índia foi algo maravilhoso. Não é uma verdade incontestável. É claro que não. Então, quando você pergunta se eu não perdi a fé… Primeiro, todo mundo tem fé em alguma coisa. Fé no sentido de um compromisso que define o self, quem você é, é indispensável à identidade humana. Pode não ser fé no marxismo ou no cristianismo, mas, com certeza, é fé em alguma coisa. Fé é algo de que você descobre que, no fim das contas, não pode escapar. Por mais que você queira, por mais inconveniente que seja, mesmo que você esteja sendo crucificado, você literalmente não pode fugir dela. E, quanto a isso, eu acho que, provavelmente, se você pensar bem todo mundo tem algum tipo de fé.

Silio Boccanera — Dentro desse contexto de fé, que foi o que eu usei, claro, o senhor acredita na idéia marxista de uma sociedade sem classes? “A cada um, de acordo com suas necessidade…”
Terry Eagleton — Acredito que uma boa razão para ser marxista é muito simples e demonstra bom senso: há suficiente riqueza no mundo, não para criar uma utopia, pois Marx não estava nem um pouco interessado em utopia… Esse é outro mito vulgar, pois Marx começou sua obra combatendo o pensamento utópico. Marx se recusou repetidamente a prever o futuro, mas ele pensava, e acho que demonstrava bom senso nisso, que havia suficiente riqueza acumulada, por causa da longa história do capitalismo, para tornar as coisas muito mais fáceis para uma grande maioria das pessoas. Não para criar perfeição. Os materialistas, por definição, não se interessam pela perfeição. O material não é perfeito. Se você perguntou, ao falar de “sociedades sem classe”, se teríamos recursos para libertar as pessoas de forma de trabalho degradante e exploradoras, em grande escala, acho que não há dúvida disso. O problema não é recurso material, mas vontade política. E acho que a originalidade de Marx… Há pouca coisa original em Marx, me permita provar isso. O próprio Marx disse que não inventou o conceito de classe. Disse que o conceito é muito mais antigo. Ele não inventou nem o conceito de luta de classes. Ele não inventou a idéia de comunismo, que é muito antiga. Ele não inventou a idéia de revolução, que, no mínimo, remonta à Revolução Francesa. Ele não inventou a idéia de materialismo e não inventou a idéia de determinismo ecnomico. Até Freud, que não simpatizava com o marxismo, acreditava que a maior motivação da sociedade humana era econômica, a necessidade de trabalhar. Freud pensava que, sem essa necessidade, ficaríamos deitados à toa o dia todo, em interessantes posições de deleite, vestindo longas vestes de cor roxa, tocando cítara e recitando Homero uns para os outros. Por isso, Oscar Wilde era socialista. Oscar Wilde era socialista porque, como qualquer pessoa racional, ele não gostava de ter que trabalhar. É a única boa razão para ser socialista se você não gosta de trabalhar. Você não participa dessa ridícula glorificação capitalista do trabalho, da disciplina etc. Marx viu que havia uma grande chance, dada a existência do capitalismo… Ele não existia na Rússia de 1917. Dada a acumulação de riqueza do capitalismo, Marx achava que havia boa chance de libertar muitas pessoas de funções degradantes. Mesmo que elas não ficassem à toa o dia todo, recitando poesia, elas poderiam ser muito mais felizes. Marx não acreditava no trabalho, acreditava em lazer. Ele era apaixonadamente dedicado à idéia de autorrealização individual. Se você quiser saber o que é moralidade para Marx… Uma das coisas mais interessantes em Marx é que ele entende que qualquer discussão sobre moralidade não pode começar questionando dever, obrigação, responsabilidade etc. Essas coisas têm o seu lugar, mas elas devem tomar lugar em um contexto maior e mais amplo, a questão que Marx chamou de “autorrealização do indivíduo”. Marx queria uma sociedade em que indivíduos pudessem ser eles mesmo, desenvolver-se, realizar-se e expressar-se de forma muito mais rica, diversificada e livre do que é possível em uma sociedade de classes. Acho que esse é um objetivo muito nobre, que merece ser almejado.

Silio Boccanera — Tenho aqui algumas perguntas da platéia. Jonas Stevens quer saber se o estudo literário teve alguma influência na sua opinião sobre a fé e religião.
Terry Eagleton — Opinião sobre o quê?

Silio Boccanera — A fé e a religião. A influência da literatura, do que você leu.
Terry Eagleton — Não diretamente, mas uma coisa que me interessa na ficção, e na literatura também, e na literatura também, eu suponho, é que elas são verdades, mas verdades corporificadas, verdade encarnadas. Não são verdade abstratas, proposicionais, mas verdade no sentido de experiências vividas. A literatura não tem a ver só com o significado da experiência, mas com a experiência do significado. Se você quisesse definir poesia, não seria muito errado dizer que ela é o significado como experiência, o significado com algo sensorial, o significado encarnado. O poema é um tipo de corpo, o lugar em que o significado e o corpóreo, a materialidade, se unem. A materialidade da linguagem e o seu significado. O somático e a semântica, digamos, se unem na literatura. E eu acho, apesar de eu não ter certeza absoluta, pois preciso refletir mais… Acho que isso tem implicações teológicas porque a teologia se preocupa com o corpo como linguagem, como uma forma de presença, o corpo como verbo, o corpo como comunicação. Um sacramento é um sinal de caráter performativo, um sina que realiza algo. Em certo sentido, isso também é válido para o que chamamos de literatura. Então estou interessado em um sentido um tanto esotérico, em relações desse tipo entre a teologia e a idéia da literatura. Não tanto como certas obras literárias influenciaram minha crença religiosa, mas a própria ideia de literatura.

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