Segunda Leitura

Memória do Judiciário: O "Juiz" de Porto Murtinho

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

5 de dezembro de 2010, 7h34

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Belmonte e Amaraí, dois grandes cantores da boa e velha música caipira, com a voz modulada cantavam "Pé de Cedro", e assim começavam "Foi no belo Mato Grosso, há vinte anos atrás, naqueles tempos queridos, que não voltam nunca mais".

Assim também começa a coluna desta semana. No belo Mato Grosso, só que 52 anos atrás. Mais precisamente, em Porto Murtinho, nas barrancas do rio Paraguai, fronteira com a nação hermana, em outubro de 1958.

O estado de Mato Grosso era um só. Enorme, um gigante adormecido. Seus limites iam do Pará, ao norte, ao Paraguai, no sul. Cuiabá, sua capital, era uma distante e provinciana cidade com menos de 60.000 habitantes.

Porto Murtinho dela ficava cerca de 1.050 km, em estrada sem pavimento. Sua população talvez não chegasse a 5.000 habitantes. A viagem era longa e cansativa, sempre a depender das condições do tempo. Era rotina o uso de correntes nas rodas dos carros, balsas para a travessia de rios e animais na pista.

Naquele tempo os candidatos ao cargo de Juiz de Direito eram poucos. Os vencimentos modestos e o isolamento em pequenas cidades desestimulavam os pretendentes. Em muitas comarcas, quem exercia a jurisdição era o Juiz de Paz, leigo em Direito.

É neste panorama que, em 20 de outubro de 1958, chega à cidade de Porto Murtinho Salvador Pacheco. Homem educado, pouco mais de 30 anos de idade, estatura média, moreno, cabelos negros lisos repartidos do lado direito e um bigode à la Carlos Gardel, típico da época.

Apresentou-se no Fórum no dia seguinte e comunicou que pretendia tomar posse em ato solene. Educado e cerimonioso, terno de linho branco, às 15 horas daquele dia, reunidas as autoridades locais, todos trajados convenientemente, Salvador Pacheco apresentou-se como o novo juiz substituto. Recebeu os cumprimentos e lançou-se ao trabalho, demonstrando que não tinha ido a passeio.

Após alguns dias despachando os processos que, bem atrasados, se achavam nos dois cartórios da comarca, convocou o Tribunal do Júri e marcou o dia 24 de novembro para o julgamento de caso rumoroso. Logo se tornou conhecido como o novo juiz e os que com ele cruzavam, nas poucas e vazias ruas da pequena cidade de fronteira, cumprimentavam-no tirando o chapéu, em sinal de respeito.

No dia 30 daquele mês e ano, Salvador Pacheco resolveu ir à vizinha cidade de Jardim, distante algumas horas. Solicitou ao Comandante da Segunda Companhia de Fronteira do Exército uma viatura e motorista, sendo logo atendido. Ao Escrivão do Cartório do 1º ofício, pediu dois revólveres, um para si e outro para o motorista, para eventual necessidade no trajeto. E lá se foi pelas estradas empoeiradas que mais serviam às boiadas do que a veículos.

Em Jardim pediu ao Comandante do C.E.R.-3 outra viatura, para seguir viagem para Aquidauana. Mas daí a sorte abandonou-o.

O Dr. Adolpho Augusto de Barros, que era o Juiz de Direito de Aquidauana, ao tomar conhecimento da presença de Salvador Pacheco comunicou ao Promotor Cesar Froes, de Porto Murtinho: é um impostor. É que o “doutor” já havia feito o mesmo na comarca de Rio Brilhante, próxima de Dourados. A ordem de prisão foi imediata.

O Promotor Froes, no dia 31 de outubro, mandou um ofício ao Delegado de Polícia, Capitão Paulo Xavier, da Polícia Militar, requisitando inquérito policial. Este, no mesmo dia, nomeou Israel Jarbas Vicente Escrivão ad hoc, pois titular não havia. Em tempo recorde o inquérito policial foi enviado ao Fórum.

O representante do Ministério Público, que não devia estar nada contente, porque também foi um dos enganados, ofereceu denúncia no dia 4 de dezembro por usurpação de função pública e estelionato. O Juiz de Paz, na falta de Juiz de Direito despachou no mesmo dia com uma letra caprichada: N. A. a conclusão, ou seja, "nos autos, à conclusão". Todos queriam Justiça o mais rápido possível, certamente sentindo-se envergonhadas vítimas.

O "juiz substituto" foi preso em Nioaque. Com certeza não havia mandado de prisão, mas sim um telegrama. Colocaram-no, sob escolta, em um trem com destino a Campo Grande, que já era a maior cidade do sul do então estado de Mato Grosso.

Aí sobreveio o inesperado. A notícia chegou a Cuiabá e as autoridades previram o que viria depois: uma caçoada geral. Seria uma vergonha para todos os matogrossenses, especialmente ao Poder Judiciário, pois ficariam expostos ao riso de todo o Brasil.

Veio aí a solução, que segundo fontes fidedignas, teria sido dada pelo Dr. Heitor Medeiros, Secretário da Justiça, sugerindo que facilitassem a fuga do "magistrado".

Diz a lenda que a escolta levava Salvador de trem e em uma parada deixou o homem descer para fazer suas necessidades. Ele, ao ver-se sozinho, escapuliu. E o trem seguiu viagem. Concluíram todos que era melhor ele fugir, e o caso ser esquecido, do que ficar preso e expor ao ridículo a Justiça de Mato Grosso. E assim foi feito.

A Ação Penal prosseguiu, citado o réu por edital e ouvidas as oito testemunhas da denúncia, a maior parte delas funcionários do Fórum. Ao final foi julgada procedente, condenado o falso juiz. No entanto, a sentença nunca foi executada. Anos depois, mais exatamente em 5 de abril de 1974, decisão judicial declarava extinta a punibilidade da execução da pena, pela prescrição.

O estado se dividiu em 1 de janeiro de 1979, criou-se o Mato Grosso do Sul, Porto Murtinho cresceu, o mundo ficou pequeno e a internet ligou sua gente ao resto do planeta. O "juiz substituto" Salvador Pacheco tomou rumo ignorado e dele nunca mais se soube. No entanto, na memória do Judiciário do estado ele nunca será esquecido.

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