Tortura no regime

MPF quer condenação de acusados de tortura

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30 de agosto de 2010, 18h17

O Ministério Público Federal pediu o afastamento imediato e a perda dos cargos e aposentadorias de três delegados da Polícia Civil de São Paulo. Alega que eles participaram diretamente de atos de tortura, abuso sexual, desaparecimentos forçados e homicídios durante o regime militar.

A Ação Civil Pública pede a responsabilização pessoal dos delegados do antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) Aparecido Laertes Calandra, David dos Santos Araújo e Dirceu Gravina, os dois primeiros aposentados e o terceiro ainda na ativa. O MPF pede a reparação por danos morais coletivos e restituição das indenizações pagas pela União. Capitão Ubirajara, Capitão Lisboa e JC, codinomes utilizados pelos três policiais enquanto atuaram no DOI/Codi, foram reconhecidos por várias vítimas ou familiares em imagens de reportagens veiculadas em jornais, revistas e na televisão.

Os procuradores da República que propuseram a ação colheram relatos de ex-presos políticos e de seus familiares vitimados pelos atos dos três policiais, além de reunir depoimentos retirados de documentos como processos de auditorias militares, arquivos do Dops e livros, entre eles “Brasil: Nunca Mais” e “Direito à Memória e à Verdade”.

Pela documentação e depoimentos colhidos pelo MPF, os procuradores relatam na ação que, sob a alcunha de capitão Ubirajara, o delegado Aparecido Laertes Calandra participou da tortura e desaparecimento de Hiroaki Torigoe, da tortura, morte e da falsa versão de que Carlos Nicolau Danielli fora morto em um tiroteio, da tortura do casal César e Maria Amélia Telles, além de participar da montagem da versão de que o jornalista Vladimir Herzog teria cometido suicídio na cadeia. Reportagens dão conta de que ele teria participado também de torturas contra Paulo Vannuchi e Nilmário Miranda.

O depoimento de Maria Amélia Telles ao MPF mostra métodos de tortura física e psicológica aplicados por ele e outros agentes a serviço do DOI/Codi, como o uso de seus filhos visando constranger os depoentes em busca de “confissões”. Maria Amélia relata que, numa oportunidade, após terem sido torturados, ela e o marido foram expostos nus, marcados pelas agressões, aos filhos, então com cinco e quatro anos de idade, trazidos especialmente para o local como forma de pressioná-los. Ao ver os pais, a filha perguntou: “mãe por que você está roxa e o pai, verde?”.

O atual presidente do Conselho Estadual de Defesa da Pessoa, Ivan Seixas, preso aos 16 anos, junto com o pai, Joaquim Alencar de Seixas, torturado e morto pela equipe do DOI/Codi da qual participava David dos Santos Araújo, o “Capitão Lisboa”, relata que este era o que mais lhe batia. Como forma de pressão sobre ele, os policiais o levaram para uma área próxima ao Parque do Estado, então deserta, e simularam seu fuzilamento. Depois, o colocaram em uma viatura e foi apresentada a ele a edição da Folha da Tarde em que a manchete anunciava que seu pai fora morto pelas forças repressivas. Ao chegar no DOI, seu pai ainda estava vivo.

Depois da prisão de Ivan Seixas e de seu pai, sua casa fora saqueada e sua mãe e irmãs testemunharam, com ele, as torturas a que seu pai foi submetido. Uma de suas irmãs relatou ao MPF ter sido abusada sexualmente por Araújo. O pai acabou morrendo naquele dia nas dependências da prisão.

O mais jovem dos três policiais e até hoje no cargo de delegado da Polícia Civil, em Presidente Prudente, Dirceu Gravina era chamado pelos colegas de JC – uma alusão à Jesus Cristo por, à época, com pouco mais de 20 anos, manter os cabelos compridos e lisos e usar crucifixo – e é lembrado nos relatos por sua violência e sadismo.

Avesso à imprensa, G. foi reconhecido em 2008 por Lenira Machado uma de suas vítimas após aparecer em reportagem sobre investigação que o delegado conduzia acerca de “um suposto vampiro que agia na cidade de Presidente Prudente e mordia o pescoço de adolescentes”. Presa por três dias no DOPS, Lenira teve toda a roupa rasgada por G. e outros dois policiais quando foi transferida ao DOI/Codi, ficando por 45 dias apenas com um casaco e lenço.

Em seu primeiro interrogatório no DOI/Codi, Lenira foi pendurada no pau de arara e submetida a choques elétricos. Nesta sessão de tortura, conseguiu soltar uma de suas mãos e, combalida, acabou por abraçar G. – que estava postado a sua frente, jogando água e sal na boca e nariz da presa. O contato fez com que o delegado sentisse o choque, caindo sobre Lenira e, em seguida, batendo o rosto, na altura do nariz, em um cavalete.

Após algumas horas, G. voltou do Hospital Militar, onde levou pontos no rosto, e retomou a tortura, a ponto de provocar uma grave lesão na coluna de Lenira, e, mesmo assim, não suspender a sevícia. A tortura contra ela era tão intensa que, em um determinado dia, teve que ser levada ao hospital, onde lhe foi aplicado morfina para poder voltar às dependências da prisão.

G. ainda é apontado como o último a torturar o preso político Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, dizendo a outro preso, após Palhano parar de gritar de dor, que sua equipe tinha acabado de matar o colega, ameaçando-o na sequência. “Agora vai ser você!” Desde então, nunca mais se teve notícias de Aluízio, desaparecido até hoje. Também foram vítimas de G. os presos políticos Manoel Henrique Ferreira e Artur Scavone, segundo o MP.

Reconhecimento
Apesar do uso de apelidos (Aparecido Laertes Calandra, por exemplo, não admite ter sido o capitão Ubirajara), os ex-policiais foram reconhecidos, em diversas oportunidades, em entrevistas à imprensa e em depoimentos ao MPF, pelos presos políticos. Ivan Seixas relata também que, durante as torturas, ao se referirem uns aos outros, os policiais se traiam, chamando os colegas pelo prenome.

Algumas vezes, chegavam a se identificar. Em uma ocasião, ao transportar Seixas numa viatura, A. voltou-se para ele, mostrou a carteira funcional e disse: “sou o delegado David dos Santos Araújo e não tenho medo de você”.

A memória
Esta nova ação é mais uma das iniciativas do Ministério Público Federal em relação às violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar no Brasil. Essa atuação teve início em 1999 por meio da tarefa humanitária de buscar e identificar restos mortais de desaparecidos políticos para entrega às respectivas famílias.

Com as investigações, o MPF identificou que o processo de consolidação da democracia e reafirmação dos direitos e garantias fundamentais suprimidos pela ditadura requer do Estado brasileiro a implantação de medidas de Justiça Transicional: (a) esclarecimento da verdade; (b) realização da justiça, mediante a responsabilização dos violadores de direitos humanos; (c) reparação dos danos às vítimas; (d) reforma institucional dos serviços de segurança, para que respeitem direitos fundamentais; e (e) promoção da memória, para que as gerações futuras possam conhecer e compreender a gravidade dos fatos. Com informações da Assessoria de Imprensa do MPF.

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