Insegurança na ficha

Lei da Ficha Limpa foi feita para punir, diz advogado

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28 de agosto de 2010, 7h48

Depois de afirmar que uma lei não pode retroagir para prejudicar alguém, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu, por cinco votos a dois, nesta quarta-feira (25/8), que a Lei Complementar 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, pode retroagir. Dessa forma, ela se aplica aos candidatos condenados por órgãos colegiados mesmo antes de a norma entrar em vigor. "Se não fosse proibitiva e não tivesse caráter punitivo ela não teria força e por isso não teria que ser aplicada nem mesmo existir. Ela não é punitiva do ponto de vista penal, mas ela restringe direito", disse o advogado Lauro Schuch.

A discussão acerca da Lei da Ficha Limpa voltou à pauta do Plenário do TSE por força de um recurso ajuizado pelo candidato a deputado estadual no Ceará, Francisco das Chagas Rodrigues Alves (PSB). Ele foi condenado em 2004 por compra de votos quando era candidato à Câmara de Vereadores da cidade de Itapipoca, no interior cearense.

Christophe Scianni/ASICS/TSE
Sessão plenária do TSE - Christophe Scianni/ASICS/TSE

 

A decisão transitou em julgado em 2006. Como a nova lei prevê inelegibilidade de oito anos nestes casos, ele está impedido de concorrer até 2012. O Tribunal Regional Eleitoral do Ceará negou seu registro com base nesse entendimento.

Os ministros se basearam no argumento de que critérios de inelegibilidade não podem ser enquadrados como punição ou pena. São condições exigidas para o registro de candidatos. E essas condições devem ser aferidas no momento do pedido de registro da candidatura.

De acordo com o voto do ministro Ricardo Lewandowski, "a inelegibilidade, assim como a falta de qualquer condição de elegibilidade, nada mais é do que uma restrição temporária à possibilidade de qualquer pessoa se candidatar, ou melhor, de exercer algum mandato".

Segundo ele, nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, é entendimento pacífico de que as normas que alteram ou impõem inelegibilidades não têm caráter penal, como também não configuram sanção. Constituem regras de proteção à coletividade, que estabelecem preceitos mínimos para o registro de candidaturas, tendo em mira a preservação dos valores democráticos e republicanos.

"As causas de inelegibilidade, enquanto normas de ordem pública, aplicam-se a todos indistintamente, contemplando, inclusive, situações jurídicas anteriores à publicação da Lei Complementar 135/2010, cabendo à Justiça Eleitoral verificar – no momento de pedido de registro de candidatura – se determinada causa de inelegibilidade em abstrato prevista na legislação incide ou não em uma situação concreta", concluiu o ministro ao decidir pela aplicação da lei à condutas praticadas anteriormente à sua vigência.

Schuch refuta a tese do presidente da corte eleitoral. Para o advogado, quer queira ou não, a lei é punitiva. "Vejamos, se não há uma punição essa lei não teria que ser obedecida, não haveria o porque de isso acontecer. Dessa forma, ela é uma punição sim, pois implica a restrição de um direito. É importante dizer que a sanção não é apenas penal, mas a restrição administrativa caracteriza também uma sanção."

O advogado diz que é importante frisar que não se trata de um crime e sim de uma infração eleitoral que tem como conseqüência a suspensão parcial de seus direitos políticos. E por isso se caracteriza sim uma sanção pela prática infracionária cometida pelo candidato.

Com a decisão, os candidatos condenados por órgãos colegiados mesmo antes da vigência da lei podem ter seus registros de candidaturas negados pela Justiça Eleitoral. Mesmo que a decisão já tenha transitado em julgado, as novas condições impostas pela Lei da Ficha Limpa se aplicam.

Como a inelegibilidade é uma sanção, segundo Schuch, nesse caso não poderia haver uma retroatividade para uma coisa transitada em julgado e com pena cumprida. Isso de "certa forma afronta a Constituição Federal, pois, o inciso XXXVI do artigo 5º da CF, diz expressamente que ‘uma lei não prejudicará o direito adquirido, ato jurídico perfeito e a coisa julgada’", explica.

Com a mesma opinião, o advogado especialista em Direito Eleitoral, Erick Wilson Pereira, diz que com base na Constituição uma lei nova não pode retroagir para punir alguém que já foi julgado, condenado e que já pagou sua pena. Neste contexto, "há uma inconstitucionalidade, pois, não pode haver restrição de direito, neste caso a inelegibilidade, quando a coisa já transitou em julgado".

O julgamento foi definido com o voto da ministra Cármen Lúcia, que havia pedido vista do recurso na semana passada. Para a ministra, liberar a candidatura de políticos condenados é privilegiar o direito de se candidatar, que é individual, em detrimento do próprio exercício do mandato, que é um direito da coletividade.

Lauro Schuch entende quem por mais justa que seja a intenção, o Judiciário não pode querer acabar com os maus políticos. "Criou-se no imaginário coletivo que a Ficha Limpa é uma espécie de vassoura mágica que vai varrer da política os “maus políticos”. É preciso estar ciente de que não é essa lei que vai determinar se um político é bom ou mau, pois eles vão existir com ou sem ficha suja. Pois, se existe um mau político é porque existe um mau eleitor", argumenta.

Segundo Schuch, essa lei "é um aperfeiçoamento da democracia do Direito Eleitoral. E, por isso, não é papel do Judiciário querer acabar ou determinar em quem o eleitor deve votar. Isso vai de encontro com a soberania popular. O Judiciário, no caso o TSE, não pode querer tomar para si a tutela protetiva de que os cidadãos não votem nesse ou naquele candidato", esclarece.

Da mesma forma pensa o advogado Erick Pereira. Para ele, enfrentar a soberania popular — a vontade coletiva — é sinal de que está havendo uma vulneração do estado Democrático de Direito.

Semelhança
No mesmo dia da decisão do TSE — de que a lei retroage — o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo indeferiu, por unanimidade, a candidatura do deputado federal Francisco Rossi (PMDB), que tenta a reeleição. Cabe recurso ao TSE, "mas será difícil outra posição senão a que já foi decidida, adiantou Schuch.

Rossi foi condenado em 2002 pelo Tribunal de Justiça paulista por improbidade administrativa. A Ação Civil Pública é de 1996 e diz respeito ao período em que ele foi prefeito de Osasco (1989-1993). De acordo com a sentença do TJ, Rossi contratou sem licitação serviços de advocacia para a prefeitura. O contrato foi considerado ilegal. O político foi condenado a ressarcir os recursos e teve os direitos políticos suspensos por cinco anos.

Rossi recorreu da condenação por improbidade ao Superior Tribunal de Justiça e perdeu. Um novo recurso foi feito e espera por julgamento no Supremo Tribunal Federal. Nos cinco anos em que teve os direitos políticos suspensos, Rossi ficou inelegível. Assim cumpriu a pena a que foi condenado. Mas agora, pelo mesmo delito, ficou inelegível por oito anos e, a confirmar a decisão do TRE-SP, não poderá disputar a eleição deste ano.

Foi com base nesse histórico que os magistrados do TRE-SP decidiram indeferir a candidatura de Rossi a deputado federal na eleição deste ano, a primeira com base na Lei da Ficha Lima. "O valor de um ordenamento jurídico revela-se no momento em que é posto à prova, ou seja, no momento em que deveres são descumpridos e direitos não vêm sendo respeitados", afirmou na sentença o relator do caso, juiz Paulo Henrique dos Santos Lucon.

Segundo Schuch, o caso de Francisco Rossi, o efeito da aplicação da Ficha Limpa é um pouco diferente, "pois para a lei ser aplicada à pena, deve ser observado a data — dia e mês — em que sua condenação transitou em julgado", explicou.

Eficácia
Para o advogado Erick Wilson Pereira, a lei só se tornará realmente eficaz se uma ADI fosse ajuizada por algum partido ou coligação no Supremo. No entanto, até agora, nenhuma ação foi protocolada no tribunal para contestar a constitucionalidade da lei. Se os ministros quisessem antecipar essa discussão, teriam de se valer de um caso pontual — o julgamento de uma liminar ou agravo, por exemplo — para analisar a constitucionalidade de toda a lei e declarar o efeito vinculante dela. E como há diversos pontos sendo criticados, os ministros precisariam de tempo para fazer seus votos.

Nesse cenário, uma provável resposta do tribunal só seria dada no fim do ano, ou, eventualmente, em 2011. A lei valeria para estas eleições, mas poderia ser derrubada para as eleições municipais de 2012. "A lei só terá eficácia em 2014, pois o próprio Judiciário já terá uma posição mais amadurecida sobre ela", afirma Pereira.

Desentendimentos
Para os especialistas essa lei ainda enfrentará muita confusão. Candidatos que garantiram o registro da candidatura por meio de liminar, se eleitos, ainda podem ser enquadrados na ficha limpa e em decorrência disso podem perder os mandadtos. Pedidos de anulação da eleição não estão descartados. "Isso cria uma incerteza e insegurança jurídica, além de desconfiança do eleitor em relação à aplicação da lei e do Judiciário", sustenta Lauro Schuch.

Diante desse quadro, o ministro Ricardo Lewandowski já disse que essa é uma situação bastante comum, que faz parte do cotidiano da Justiça Eleitoral. Um candidato, com uma liminar, concorre, é eleito, depois o caso é julgado definitivamente e tem seu diploma cassado. A mesma situação pode ocorrer com aqueles que não tenham a ficha limpa. Podem obter uma liminar, um efeito suspensivo, ter seu registro deferido, mas farão sua campanha por sua própria conta e risco, avisou o ministro.

Sobre isso, em seus depoimentos à imprensa, Lewandowski afirmou que se alguém tiver agora o registro indeferido pelo Tribunal Regional Eleitoral pode eventualmente obter um efeito suspensivo. Mas como diz o próprio nome da medida, simplesmente suspender uma decisão final, mas quando ela for pronunciada o candidato corre o risco de perder seu mandato.

Leia aqui o voto do ministro Ricardo Lewandowski.

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