Consultor Jurídico

Liminar que permite humorismo em campanha abre porta para exageros

28 de agosto de 2010, 17h49

Por Alessandro Cristo, Lilian Matsuura, Rodrigo Haidar, Marília Scriboni

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No intuito de devolver a chargistas e humoristas o direito de usar candidatos como alvo, o ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, pode ter escancarado a porta por onde podem passar não só opiniões legítimas, mas todo sortilégio de manipulações e achincalhe entre adversários. E não apenas nas seções de humor, como em todo o noticiário. Até mesmo no horário eleitoral gratuito.

Na última quinta-feira (26/8), o ministro suspendeu a eficácia do inciso II do artigo 45 da Lei 9.504/1997, que estabeleceu as regras para as eleições. O dispositivo, estritamente voltado para programas de rádio e TV, proibia a manipulação de som e imagem para “ridicularizar” candidatos.

Usada pelo Tribunal Superior Eleitoral como fundamento, a norma deu origem a uma resolução recente que proibiu os programas de humor de fazer menções a candidatos nas brincadeiras. A liminar do ministro foi direto na fonte e tirou os efeitos da norma. Especialistas ouvidos pela Consultor Jurídico, no entanto, acreditam que, ao suspender a proibição, Britto acabou liberando qualquer tipo de trucagem e encenação, não só no jornalismo, mas em quaisquer embates entre adversários.

É em que acredita o advogado Helio Freitas Silveira, que defende o Partido Verde nas eleições deste ano. Segundo ele, a liminar abriu uma porta perigosa para críticas desmedidas e sem limites, o que considera ruim dentro do processo eleitoral. Silveira afirma que a suspensão tirou um importante dispositivo de controle, não só dos programas humorísticos, mas da imprensa como um todo que, ressalta, tem veículos de comunicação muitos fortes e de grande impacto sobre o eleitor. “O candidato terá de tolerar críticas muitas vezes mentirosas. Não acredito que a autorregulamentação seja suficiente.”

Silveira diz que não é contra o humor nas eleições. “Ninguém em sã consciência vai proibir o humor”, afirma, e defende o uso na televisão e nos jornais de charges de candidatos. Mas, em relação aos programas humorísticos, afirma que nem sempre se preserva o melhor da política. “Usam exemplos negativos e generalizam, como se todos os políticos fossem iguais. Ele acrescenta que, em outras eleições em que atuou como advogado, percebeu que o seu candidato era alvo de críticas ferrenhas, enquanto o adversário era tratado de forma amigável. “É verdade que nós temos a livre expressão assegurada pela Constituição Federal, mas esta liberdade não é avassaladora. O ministro [Ayres Britto] a considera fundamental para a democracia. Para mim, a democracia se dá com equilíbrio e harmonia, que garantem a festa cívica que é o processo eleitoral.”

Para um ministro do Tribunal Superior Eleitoral ouvido pela ConJur, a sátira política nunca esteve vedada pela Lei Eleitoral. “O que a lei proíbe é a degradação e ridicularização dos candidatos. Uma coisa é a charge política ou a sátira feita pelos programas de humor. Outra completamente diferente é a trucagem ou montagem que permitam ferir a dignidade da pessoa”, afirma. “Não entendo por que criaram toda essa onda já que a lei está em vigor, da mesma forma, há 13 anos.”

Procurado pela revista, o presidente do TSE, ministro Ricardo Lewandowski, afirmou que não pode falar sobre o caso porque irá julgá-lo como ministro do Supremo Tribunal Federal assim que a liminar de Ayres Britto for submetida ao plenário daquela Corte. Lewandowski disse apenas que não há notícia de que, sob a Constituição de 1988, qualquer humorista ou chargista tenha sido punido por fazer humor político.

No entanto, o advogado Eduardo Muylaert, que já atuou como juiz no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, diz que o risco criado pela liminar é a possibilidade de um partido ou candidato usar “o humor” como arma de propaganda negativa contra os adversários. “Munido de uma aparente liberdade de expressão, o candidato contrata um palhaço para imitar o seu adversário, como arma política. A Justiça vai ter que decidir se, de fato, trata-se de liberdade de expressão ou de propaganda desleal.”

Porém, em relação à imprensa, ele entende que a decisão não vai suscitar grandes problemas e, principalmente, vai acabar com a censura prévia. Se houver exageros, o Judiciário decide. “É uma decisão importante, luminosa. Vai deixar a gente dar risada.”

O advogado Ricardo Vita Porto, que patrocina o PMDB, concorda. É à Justiça, na sua opinião, que caberá julgar possíveis abusos, o que, mesmo antes da liminar do ministro Ayres Britto, já vinha acontecendo apesar de a lei vetar as ridicularizações desde 1997. “Na Justiça Eleitoral, mesmo antes da liminar, dificilmente se conseguia direito de resposta depois de brincadeira, porque a jurisprudência entende que a pessoa pública está sujeita a crítica”, diz. Segundo ele, o ministro pôs em prática o que a jurisprudência já pacificara, e satisfez os críticos da mordaça imposta pela lei eleitoral. “Não se criou nada, o barulho é exagerado.”

Para Porto, os limites da imprensa também continuam os mesmos. Não são permitidas reportagens, programas ou charges que prejudiquem uma candidatura em detrimento de outra, e a defesa de um candidato, caso seja adotado por um veículo, só é possível nos editoriais. “Continua se podendo pedir direito de resposta, sem prejuízo de responsabilização civil por abusos”, diz. “É o caso de uma charge, por exemplo, que insinue que o candidato seja ladrão.”

Porém, de acordo com um ministro do STF ouvido pela ConJur, por não se restringir à liberdade de programas humorísticos, a decisão do ministro Ayres Britto pode permitir a qualquer programa ridicularizar candidatos. Como o artigo 45 da Lei Eleitoral fala genericamente na programação normal das emissoras, em tese, a rolha que impedia extrapolações foi retirada.

A maior preocupação é o que essa decisão pode gerar em relação às emissoras regionais e do interior, onde já havia certos abusos mesmo com a proibição de montagens e trucagens. Procuradores eleitorais que atuam em cidades do interior já demonstraram preocupação e acreditam que a Justiça será muito mais demandada por conta disso. Um dos motivos é o fato de diversos veículos pertencerem, direta ou indiretamente, a políticos. Ou seja, embora possam ser feitas por programas humorísticos, as achincalhações podem ter alvos muito bem escolhidos por motivos que nada têm a ver com a crítica democrática.

Termos usados por Ayres Britto em sua liminar também podem aumentar a demanda judicial. Para não anuir com o “vale tudo”, o ministro definiu como conduta vedada a veiculação de críticas ou matérias jornalísticas “que venham a descambar para a propaganda política, passando, nitidamente, a favorecer uma das partes da disputa eleitoral, de modo a desequilibrar o princípio da paridade de armas”. A liminar também fixa que os casos de abusos serão aferidos a posteriori pelo Judiciário. Assim, a Justiça Eleitoral pode ter de passar a julgar o que é piada e o que não é. Na prática, as balizas que antes eram definidas em lei passarão a ser definidas em decisões judiciais. Mas, em muitos casos, a decisão da Justiça não é capaz de sanar o estrago feito por um adversário mal intencionado, avaliam advogados.

Alarme falso
Mas há também quem ache que a liminar só causa polêmica se levada ao extremo, o que não teria sido a intenção do ministro. “Os efeitos da liminar não dão ampla liberdade para partidos e candidatos fazerem trucagem e montagem”, lembra Erick Wilson Pereira, especialista em Direito Eleitoral. “A primeira interpretação da decisão pode ser de que está tudo liberado, mas a hermenêutica diz que sempre se deve suspeitar da primeira interpretação.” Para ele, a única mudança feita pela liminar se refere à imprensa. “Tudo o que estiver ligado à imprensa e não a partido pode, ressalvadas as responsabilidades cíveis”, diz.

É como também pensa o advogado eleitoral Décio Freire. Segundo ele, a decisão não deve gerar oportunismo de partidos políticos para prejudicar adversários. “A legislação proíbe que um candidato destrua a propaganda de outro. Os partidos são muito monitorados quanto a isso”, garante. Para o deputado estadual por São Paulo Fernando Capez (PSDB), promotor público licenciado, os candidatos estão liberados para brincarem apenas consigo mesmos. “O Tiririca vai poder contiunar brincando durante a propaganda eleitoral, desde que isso se limite a ele próprio”, exemplifica. “O que não vale é menosprezar ou referir-se a outro de forma jocosa. Com essa condição, continua tudo igual.”

De acordo com a advogada eleitoral Luciana Lossio, a liminar do ministro não pode ser confundida com uma licença para a baixaria. "As eleições já estão suficientemente reguladas com a proibição de diversas formas de propaganda. Restringir demais a publicidade das eleições pode surtir efeito inverso", pondera. "Já há muita proibição da propaganda".

O relaxamento, segundo Erick Pereira, desafogou o que já virava uma revolta. “Já se estavam colhendo assinaturas para uma iniciativa popular que derrubasse a proibição.” Ele explica que, além da Lei 9.504, de 1997, as rédeas para montagens e trucagens em programas de rádio e TV foram detalhadas pela minirreforma eleitoral feita pela Lei 12.034 no ano passado, e apertadas pelo entendimento do TSE a respeito, manifestado em resolução que entrou em vigor em julho.