Assunto interno

Discussões sobre concessão do pré-sal são nacionais

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25 de agosto de 2010, 5h37

O Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei 5.941, de 2009, proposto pelo Poder Executivo, e que foi convertido na Lei 12.276, de 30 de junho de 2010[1]. Autorizou-se à União ceder onerosamente à Petrobrás o exercício de atividades de pesquisa e lavra de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos. Tem-se a impressão de que se pretende instrumentalizar a capitalização da Petrobrás, especialmente, no que se refere à autorização para a União subscrever ações de capital social de nossa empresa de petróleo e a integralizá-las com títulos da dívida pública federal[2].

Recentemente, o consultor-geral da União aprovou parecer, submetido ao ministro da Advocacia-Geral da União, que também aprovou o aludido texto, no que se refere ao contrato de que cuida a Lei 12.276, de 2010, especialmente no que se refere ao uso da arbitragem internacional. Reconheceu-se, em primeiro lugar, que a arbitragem é instituto que se encontra em processo de plena incorporação no modelo normativo brasileiro. Tem-se impressão que o instituto veio para ficar, e que a eficiência que revela justifica a sua adoção, sempre que possível.

Entendeu-se que a arbitragem internacional, instituto típico e recorrente nas discussões relativas à exploração do petróleo pode ser implementada adequadamente no Direito brasileiro, no que se refere a questões técnicas, pertinentes à exploração e produção de petróleo, propriamente ditas, entre a União e terceiros, ou entre terceiros, porém, não entre a União, a Petrobrás e a Agência Nacional do Petróleo. Nessa hipótese, pode-se recorrer às Câmaras de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal. Esta deve conciliar e arbitrar questões jurídicas, valendo-se de especialistas ad hoc para opinar em questões técnicas e de conhecimento especializado.

Verifica-se que a arbitragem internacional, para questões jurídicas específicas de exploração de petróleo que envolvam a Petrobrás, não contaria com previsão de aplicabilidade, não podendo os contratos fazê-lo também. Assim, seria ilegal, imprópria e inadequada a submissão da União, da Petrobrás e da ANP a arbitragem internacional, neste contexto. O contrato de cessão onerosa vincula controladora (União) e controlada (Petrobrás) e não terceiros, pelo que é indevido o encaminhamento de divergências para arbitragem internacional. Há instâncias próprias, no seio da própria Administração. Deve-se, utilizar, no caso, as Câmaras de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal.

Deve-se reconhecer que os contratos de cessão onerosa sugerem nuances distintas, especialíssimas, porquanto eventuais conflitos suscitados pelo cumprimento do aludido contrato se dão no âmbito da própria Administração, onde é estranha a arbitragem internacional, até por razões óbvias.

Em linhas gerais, apoia-se o uso da arbitragem em matéria de petróleo. No referido parecer, lembrou-se que a arbitragem é instituto de amplo uso na experiência internacional, especialmente em tema de contratos da indústria do petróleo, a exemplo do discutido, entre outros, em Arábia Saudita vs. American Oil Company (ARAMCO), Texaco (TOPCO) vs. Líbia, Wintershall, A.G. vs. Qatar, British Petroleum vs. Líbia, Algerian State Interprise vs. African State Interprise, Kwait vs. Aminoil, e Sojuznefteexport vs. Joc Oil Ltda[3]. E evidenciou-se que os casos acima não se desdobraram em âmbito interno de administrações públicas, diferentemente do que ocorre nas relações entre União, Petrobrás e Agência Nacional de Petróleo.

Deve-se prestigiar o uso da arbitragem. É que o modelo de Estado com o qual o mundo contemporâneo convive suscita nova compreensão do Direito Público, no sentido de que se alcancem soluções prospectivas para problemas e dilemas que afetam o modelo institucional que se conhece[4]. E o Poder Judiciário tem recorrentemente prestigiado o uso de soluções arbitrais, a exemplo do que se observa em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

No caso das camadas de pré-sal, é muito expressiva a necessidade de investimentos. Especula-se que a camada de petróleo de pré-sal que se pode explorar supere cinco vezes as reservas atuais do país. Ao que parece, ainda, a confirmação da expectativa nos colocaria entre os grandes produtores de petróleo do mundo, a exemplo da Arábia Saudita, do Irã, do Iraque, do Kuwait e dos Emirados Árabes. Calcula-se que o modelo de exploração a ser implementado junto aos campos de Tupi, Iara, Bem-te-vi, Carioca, Guará, Parati, Júpiter e Carambá possa orçar, num primeiro momento, em cerca de US$ 600 bilhões.

Deve-se lembrar também que os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva, bem como os recursos naturais, inclusive os de subsolo, são bens da União[5]. É monopólio da União a pesquisa e a lavra de jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluídos[6]. À União atribuem-se, em relação ao petróleo, um direito (de propriedade) e um dever conexo (resultante do monopólio na exploração do recurso). Este dever desdobra-se também no permissivo constitucional para que a União contrate com empresas estatais ou privadas a realização das atividades de prospecção de petróleo, mediante condições estabelecidas em lei[7].

Remete-se, em linhas gerais, à Lei 9.478, de 6 de agosto de 1997, que dispõe sobre a política energética nacional, as atividades relativas ao monopólio de petróleo, que dispõe sobre o Conselho Nacional de Política Energética e a Agência Nacional de Petróleo. O núcleo deste modelo foi testado junto ao Supremo Tribunal Federal, que na ADIN 3.273-9-DF, relatada pelo ministro Carlos Britto, embora o relator para o acórdão tenha sido o ministro Eros Grau. Distinguiu-se o monopólio de exploração do monopólio da propriedade. O decidido na aludida Ação Direta de Inconstitucionalidade é o abre-te-sésamo para a concepção de uma política de petróleo menos afeta a uma interpretação retrospectiva do direito constitucional.

Supervenientemente, a partir das notícias relativas à possibilidade de se encontrar petróleo nas regiões do pré-sal, engendrou-se um novo modelo de exploração, revelada pela concepção de um marco regulatório avançado[8]. Segundo informação divulgada pelo Ministério das Minas e Energia trata-se o pré-sal de um conjunto de grandes reservatórios de petróleo e gás natural, situados entre 5 mil e 7 mil metros abaixo do nível, com lâminas d’água que superariam 2 mil metros de profundidade, abaixo de uma camada de sal que, em certas áreas, teria mais de 2 mil metros de espessura.

O contrato de cessão onerosa, no entanto, foge a modelos de concessão ou de partilha, em sentido estrito. É instrumento que fomenta a capitalização da Petrobrás. É a utilização marginal de um valor de reserva não extraída, precificada e identificada, ainda que em regime de expectativa.

O modelo sugere triangulação entre União, Petrobrás e ANP, o que afasta, efetivamente, a necessidade de qualquer interferência de arbitragem internacional. A questão é interna, endógena, doméstica, ainda que em sua composição a Petrobrás conte com eventuais e presentes ou futuras ou pretéritas participações minoritárias.

O contrato que se desenha trata, entre outros assuntos, de amplo conjunto de conceitos, (e.g., acordo de individualização da produção, afiliada, área de desenvolvimento, área do contrato, área do pré-sal, avaliação, barril equivalente de petróleo, cedente, cessão onerosa, cessionária, concessionário, conteúdo local na etapa de desenvolvimento de produção, conteúdo local na fase de exploração, contrato, data de assinatura, fase de produção, fase de exploração, entre tantos outros), do objeto da cessão onerosa, de indicadores de vigência e de duração, de questões afetas a custos e riscos associados à execução do contrato, das fases de exploração e de produção, da devolução dos campos, da medição, entrega e disponibilidade da produção, da individualização desta última, da execução das operações, a par de várias outras disposições.

E ainda que os problemas que possam surgir contemplem miríade de questões técnicas, telúricas, geodésicas, a Administração Federal conta com foro próprio para a discussão de questões emergentes. Refiro-me às Câmaras de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal.

As Câmaras de Conciliação e Arbitragem junto à Administração Federal foram criadas por disposição expressa do artigo 11 da Medida Provisória 2.180-35, de 24 de agosto de 2001. Cuida-se de modelo que se propõe a compor controvérsias de natureza jurídica, que envolvam entidades da Administração Federal indireta, bem como entre tais entes e a União. Aos ministros de Estado detentores de competência sobre a matéria disputada encomenda-se a solicitação, de imediato, ao presidente da República, de audiência do advogado-geral da União.

O modelo alcança, efetivamente, a União, a Petrobrás e a ANP, ainda que em tema de pré-sal. Bem entendido, matérias de cunho mais técnico poderão contar como savoir-faire de pessoal especializado, embora em âmbito das Câmaras da AGU.

Concordou-se plenamente com a assertiva de que a adoção da cláusula compromissória no âmbito dos contratos de concessão (e similares) para exploração de petróleo e gás representa um grande atrativo aos investidores que atuam na indústria do petróleo[9]. No entanto, no caso presente, tem-se figura distinta, e que vincula, tão somente, União, Petrobrás e ANP.

Há convergência na ação das companhias de petróleo em torno do uso da arbitragem internacional[10], circunstância que não justifica, isoladamente, opção por arbitragem internacional, em tema de contrato de cessão onerosa. A questão presente é distinta, e tratamento distinto deve merecer.

O uso da arbitragem internacional é circunstância estranha à relação entre União, Petrobrás e ANP. Não guarda compatibilidade com o modelo atual de Administração Pública, em área tão sensível. Conflitos entre União (controladora) e Petrobrás (controlada) resolvem-se internamente, ou no Judiciário. Provas da assertiva há de mancheias na ação conciliadora das Câmaras da AGU em vários processos de interesse da Petrobrás, bem como nas inúmeras discussões judiciais que se presencia, especialmente em âmbito fiscal.

Opinou-se pela imprestabilidade de cláusula que disponha sobre uso de arbitragem internacional em contrato de cessão onerosa do exercício das atividades de pesquisa e lavra do petróleo e gás natural, entre União, Petrobrás e ANP, por força de que ingerência externa é estranha à relação que vige entre os três entes aqui identificados.

Para a resolução de pendengas nesse campo conta-se com as Câmaras de Conciliação e Arbitragem da Advocacia-Geral da União, com plena competência e conhecimento para tratar de matérias jurídicas, e com a sugestão de que se cogite da possibilidade de recrutamento de árbitros ad hoc, quando e se necessário, por razões de conhecimento específico. Além do que, não há previsão legal para a arbitragem internacional no contrato de cessão onerosa, a exemplo do que ocorre nos contratos de concessão.

Deve-se registrar que não há nenhuma ambiguidade no trato que a Advocacia-Geral da União vem dando ao tema de conciliação e arbitragem. A experiência das Câmaras de Conciliação tem revelado que a experiência é prospectiva, que o modelo aperfeiçoa as relações na Administração e que a desjudicialização de muitos problemas conta com a simpatia e apoio do próprio Poder Judiciário. Porém, neste caso concreto, que vincula tão somente a União e a Petrobrás e, ancilarmente a Agência Nacional de Petróleo, ausência de previsão legal específica e até razões de segurança nacional justificam o entendimento defendido pela Advocacia-Geral da União, neste caso concreto, que apenas restringe o uso da arbitragem internacional em campo no qual já se conta com mecanismo interno altamente satisfatório.


[1] O presente artigo tem como base elementos colhidos para elaboração de parecer junto à Advocacia-Geral da União, a propósito da inadequação do uso da arbitragem internacional nos contratos de cessão onerosa que a União poderá celebrar com a Petrobrás.

[2] Lei nº 12.276, de 30 de junho de 2010, art. 9º.

[3] Conferir, por todos, José Alberto Bucheb, A Arbitragem Internacional nos Contratos da Indústria de Petróleo, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

[4] É tema clássico da relação entre direito e desenvolvimento. Conferir, por todos, David Trubek e Alvaro Santos (ed.), The New Law and Economic Development- a Critical Appraisal, Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

[5] Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, art. 20, incisos V e IX.

[6] Constituição Federal de 1988, art. 177, I.

[7] Constituição Federal de 1988, art. 177, § 1º.

[8] Informações podem ser colhidas junto ao sítio eletrônico do Ministério das Minas e Energia, www.mme.gov.br, especialmente no que se refere a um esclarecimento sobre as questões mais frequentes relativas ao pré-sal, bem como os textos normativos que animaram a empreitada, ainda em discussão no Congresso Nacional. As informações veiculadas na presente manifestação foram obtidas junto ao referido endereço eletrônico do Ministério das Minas e Energia. Acesso em 4 de agosto de 2010.

[9] Carmen Tibúrcio e Suzana Medeiros, Arbitragem na Indústria do Petróleo no Direito Brasileiro, in Marilda Rosado (coord.), Estudos e Pareceres- Direito do Petróleo e Gás, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 618.

[10] Cf. José Emílio Nunes Pinto, A Arbitragem nos Contratos da Indústria de Petróleo e Gás Natural, in Paulo Valois (org.), Temas de Direito do Petróleo e do Gás Natural II, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 112.

Autores

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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