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Cláusula de “mera liberalidade” não possui validade jurídica

24 de agosto de 2010, 14h00

Por José Vicente Santiago Junqueira

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Uma prática que tem se tornado comum nas lides trabalhistas é a celebração de acordo pelas partes em que se estipula que o pagamento da quantia avençada se dá “por mera liberalidade”, ou seja, sem que haja qualquer reconhecimento da contraprestação de serviços.

Normalmente, tais acordos são celebrados quando a parte reclamante vindica o reconhecimento de vínculo empregatício, mas, no momento em que ocorre a composição, além de não se reconhecer a existência do contrato de trabalho, não há o reconhecimento sequer da prestação de serviços de natureza autônoma, sendo estipulado que o valor estaria sendo pago unicamente com o fito de extinguir o litígio.

Desta forma, pretendem as partes que, ante a ausência do reconhecimento de qualquer espécie de prestação de serviços, não seriam devidos os pagamentos das contribuições previdenciárias, uma vez que não haveria a ocorrência da hipótese de incidência tributária.

Neste ponto, então, surge a seguinte indagação: seria válida a referida discriminação ou a mesma teria por escopo unicamente a elisão das verbas previdenciárias incidentes sobre o valor do ajuste?

É precisamente a resposta de tal questionamento que procuraremos desvendar no breve estudo a seguir.

Na ausência de vínculo empregatício
Assim dispõe o artigo 195, inciso I, alínea “a” da Constituição da República

“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:

a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício”

Nota-se que Carta Magna não exige, para a configuração da hipótese de incidência previdenciária, que exista a relação de emprego, bastando que tenha ocorrido um pagamento como contraprestação do trabalho.

Assim, a constituição autoriza que o legislador ordinário institua a cobrança das contribuições previdenciárias sobre os valores pagos em forma de retribuição do trabalho autônomo. Valendo-se da autorização concedida pelo legislador constituinte, foi conferida a seguinte redação ao artigo 22, inciso III, da Lei 8.212/91:

“Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social além do disposto no art. 23, é de:

(…)

III – vinte por cento sobre o total das remunerações pagas ou creditadas a qualquer título, no decorrer do mês, aos segurados contribuintes individuais que lhe prestem serviços”.

Desta forma, celebrado acordo pelas partes, mesmo sem o reconhecimento de vínculo empregatício, em que se convenciona o pagamento de verbas por eventuais serviços prestados, certamente caracterizada estará a hipótese de incidência previdenciária.

Nesse exato sentido do que ora se expõe, é o teor da Orientação Jurisprudencial 368 da Subseção-I Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho:

“Descontos previdenciários. Acordo homologado em juízo. Inexistência de vínculo empregatício. Parcelas indenizatórias. Ausência de discriminação. Incidência sobre o valor total.

É devida a incidência das contribuições para a Previdência Social sobre o valor total do acordo homologado em juízo, independentemente do reconhecimento de vínculo de emprego, desde que não haja discriminação das parcelas sujeitas à incidência da contribuição previdenciária, conforme parágrafo único do artigo 43 da Lei 8.212, de 24.07.1991, e do artigo 195, inciso I, alínea "a", da CF/ 1988”.

Além da alíquota de vinte por cento, deverá ser realizada a obrigatória retenção de onze por cento dos valores pagos ao reclamante, uma vez que o mesmo, como prestador de serviços, se enquadra na hipótese descrita no artigo 4º da Lei 10.666/03, verbis:

“Art. 4º Fica a empresa obrigada a arrecadar a contribuição do segurado contribuinte individual a seu serviço, descontando-a da respectiva remuneração, e a recolher o valor arrecadado juntamente com a contribuição a seu cargo até o dia 10 (dez) do mês seguinte ao da competência”.

Tal posicionamento já se encontra consolidado no Tribunal Superior do Trabalho, por meio da recente Orientação Jurisprudencial 398 da SDI-1:

“Contribuição previdenciária. Acordo homologado em juízo sem reconhecimento de vínculo de emprego. Contribuinte individual. Recolhimento da alíquota de 20% a cargo do tomador e 11% a cargo do prestador de serviços.

Nos acordos homologados em juízo em que não haja o reconhecimento de vínculo empregatício, é devido o recolhimento da contribuição previdenciária, mediante a alíquota de 20% a cargo do tomador de serviços e de 11% por parte do prestador de serviços, na qualidade de contribuinte individual, sobre o valor total do acordo, respeitado o teto de contribuição. Inteligência do § 4º do art. 30 e do inciso III do art. 22, todos da Lei n.º 8.212, de 24.07.1991”.

Assim, ainda que o acordo celebrado pelas partes se dê sem o reconhecimento do vínculo empregatício e, uma vez caracterizada a prestação de serviços de natureza autônoma, restará caracterizada a hipótese de incidência das contribuições previdenciárias, sendo cabíveis as alíquotas de vinte por cento a cargo do tomador e onze por cento a cargo do prestador de serviços.

Mera liberalidade
Uma vez firmada a premissa de que as contribuições previdenciárias incidem sobre as verbas pagas nos acordos celebrados sem o reconhecimento de vínculo empregatício entre as partes, ou seja, naqueles acordos em que o valor é pago como forma de contraprestação do trabalho autônomo, passemos à análise dos acordos celebrados “por mera liberalidade”.

Quando as partes convencionam que em determinado acordo as verbas são pagas “por mera liberalidade”, pretendem que seja reconhecida a inexistência de vínculo de emprego ou de qualquer outra forma de prestação de serviços.

Entretanto, soa no mínimo estranho que a empresa concorde em pagar determinada quantia ao reclamante sem que haja uma mínima correlação com as verbas postuladas e com a causa de pedir. Seria o mesmo que admitir que a reclamada, sem qualquer motivo, resolvesse doar valores àquele que contra ela ajuizou uma demanda trabalhista.

Com efeito, o ordenamento jurídico repudia os atos simulados, havendo a prevalência, nos negócios jurídicos, da vontade real das partes, em detrimento das manifestações que têm por objetivo exclusivo a ocultação de uma relação jurídica dissimulada.

Quando tal relação jurídica que se pretende encobrir constitui hipótese de incidência tributária, estar-se-á diante da figura conhecida como evasão fiscal, conduta essa que deve ser veementemente repudiada pelo Poder Judiciário.

Assim, não é possível conferir validade a um acordo trabalhista em que se convenciona o pagamento de verbas, mas sequer é reconhecida a existência de uma relação jurídica entre as partes, devendo ser declarada nula a cláusula que estipula que o pagamento se dá “por mera liberalidade”, atraindo, por conseguinte, a incidência da norma constante no artigo 43, parágrafo único, da Lei 8.212/91, que tem o seguinte teor:

“Art. 43. Nas ações trabalhistas de que resultar o pagamento de direitos sujeitos à incidência de contribuição previdenciária, o juiz, sob pena de responsabilidade, determinará o imediato recolhimento das importâncias devidas à Seguridade Social.

§ 1o Nas sentenças judiciais ou nos acordos homologados em que não figurarem, discriminadamente, as parcelas legais relativas às contribuições sociais, estas incidirão sobre o valor total apurado em liquidação de sentença ou sobre o valor do acordo homologado”.

Assim, ainda que não reconhecida a existência de vínculo empregatício entre as partes, certamente o valor acordado estará retribuindo um trabalho de natureza autônoma, mesmo que eventual, de modo que o valor ajustado configura base de cálculo das contribuições previdenciárias. Tal, inclusive, é o posicionamento mais recente do Tribunal Superior do Trabalho, conforme se infere da leitura do seguinte julgado, publicado em 6 de agosto de 2010:

“Recurso de revista. Acordo homologado em juízo. Não reconhecimento de vínculo de emprego nem de prestação de serviços. Incidência de contribuição previdenciária sobre o valor total do acordo.

1. O Tribunal Regional decidiu não ser devida a incidência da contribuição previdenciária sobre o valor do acordo homologado em juízo, em face da aplicação do princípio da autonomia da vontade e em razão da inexistência de declaração no ajuste acerca da relação jurídica havida entre as partes. 2. Não obstante o entendimento proferido pelo Colegiado local, a atual jurisprudência deste Tribunal Superior se orienta no sentido de que a autocomposição ajustada perante a Justiça do Trabalho pressupõe, no mínimo, o reconhecimento da existência de prestação de serviços, porque não é razoável admitir que o demandado retribua o demandante com pagamento por mera liberalidade, sem reconhecer nenhuma prestação de serviços. 3. O artigo 195, inciso I, alínea “a”, da CF/88 determina o recolhimento previdenciário por parte do empregador ou entidade equiparada sobre -a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe presta serviço, mesmo sem vínculo empregatício-. 4. No caso, presumida a existência de uma relação de prestação de serviços entre as partes, conclui-se que o valor estipulado no acordo tem natureza jurídica remuneratória, devendo sofrer a incidência da contribuição previdenciária. 5. Recurso de revista a que se dá provimento" (RR-198100-04.2002.5.02.0048, relator ministro Fernando Eizo Ono. Data de Julgamento: 30/06/2010, 4ª Turma, Data de Publicação: 06/08/2010)

Desta forma, o julgado acima transcrito deixa claro o atual entendimento do TST de que a homologação de acordos trabalhistas pressupõe o reconhecimento da existência da prestação de serviços, sendo inviável a aceitação de acordos celebrados “por mera liberalidade”, de modo que se presume que os valore ajustados visam a remunerar o labor, ainda que eventual, de modo a ensejar a incidência das contribuições previdenciárias.

Por outro lado, deve-se ter em vista que, se a ação, de fato, tivesse por objeto o pagamento de valores completamente estranhos à prestação de serviços, a Justiça do Trabalho sequer deteria competência material para apreciar o pedido, devendo a mesma ser ajuizada perante a Justiça Comum.

Assim, é inviável a homologação de acordos na Justiça do Trabalho nos quais se convenciona que os valores são pagos “por mera liberalidade”, ou seja, sem que se reconheça a prestação de serviços por parte do reclamante.

Tais acordos, por se tratarem de negócios jurídicos simulados, que somente têm por objetivo afastar a incidência das contribuições previdenciárias, não podem contar com a chancela dos magistrados trabalhistas, sob pena de se institucionalizar judicialmente mais uma forma de burla à Previdência Social.

Desta forma, conforme vem se manifestando o Tribunal Superior do Trabalho, havendo a celebração de acordo entre as partes, ainda que não seja reconhecida a existência de relação empregatícia, serão devidas as contribuições previdenciárias incidentes sobre o valor das verbas pactuadas, não possuindo validade jurídica a cláusula que declara que as mesmas são pagas “por mera liberalidade”.