Confusão eleitoral

Polêmicas sobre a Lei Ficha Limpa continuam

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21 de agosto de 2010, 9h41

A menos de dois meses das eleições, as divergências dos Tribunais Regionais Eleitorais sobre a aplicação da Lei Ficha Limpa e sobre em quais casos a lei retroage — se é que retroage — gera polêmica na Justiça Eleitoral e confusão ao eleitor, dizem especialistas. “Essa confusão só acabaria com um parecer do Supremo Tribunal Federal, por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, porque assim existiria um efeito vinculante. Ou seja, todos aqueles que se enquadram nos parâmetros da lei seria punido por ela”, argumenta o advogado Péricles d’Ávila, do escritório Pinheiro Neto Advogados, em Brasília.

De acordo com advogados, a Lei Complementar 135 (Lei da Ficha Limpa) aprovada no dia 4 de junho de 2010 pelo presidente Lula, foi recebida como um remédio contra a corrupção na política. No entanto, o que se vê é que o perfil dos candidatos que concorrerão às eleições este ano não mudou. Isso porque, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral, a Lei não vai atingir os candidatos condenados antes da sanção da lei.

Ou seja, segundo o presidente do TSE, ministro Ricardo Lewandowski, ela só poderá ser aplicada contra pessoas condenadas no intervalo de tempo entre a publicação da sanção pelo presidente (7 de junho) Luiz Inácio Lula da Silva e o registro das candidaturas, em 5 de julho.

Para o advogado Erick Wilson Pereira, a lei só seria realmente eficaz se uma ADI fosse ajuizada por algum partido ou coligação no Supremo. No entanto, até agora, nenhuma ação foi protocolada no tribunal para contestar a constitucionalidade da lei. Se os ministros quisessem antecipar essa discussão, teriam de se valer de um caso pontual — o julgamento de uma liminar ou agravo, por exemplo — para analisar a constitucionalidade de toda a lei e declarar o efeito vinculante dela. E como há diversos pontos sendo criticados, os ministros precisariam de tempo para fazer seus votos.

Nesse cenário, uma provável resposta do tribunal só seria dada no fim do ano, ou, eventualmente, em 2011. A lei valeria para estas eleições, mas poderia ser derrubada para as eleições municipais de 2012. "A lei só terá eficácia em 2014, pois o próprio Judiciário já terá uma posição mais amadurecida sobre ela", afirma Pereira.

Polêmicas
A aplicação da lei e possibilidade de seus efeitos retroagirem para uma situação que antes não era passível de sanção, como por exemplo, a renúncia do cargo publico para fugir do processo de cassação do mandado, são os pontos mais polêmicos da norma. Além disso, existe a discussão sobre a hipótese que veda a candidatura de políticos condenados por colegiado de juízes em processos que ainda não terminaram de tramitar. Há o argumento de que essa condição de inelegibilidade violaria o princípio da presunção de inocência.

Neste contexto, "ainda há uma inconstitucionalidade quanto ao princípio da presunção de inocência. Não pode haver inelegibilidade sem trânsito em julgado", defende Pereira.

Em relação a isso, o presidente do TSE já declarou na imprensa que existem dois valores a serem considerados. Existe um valor fundamental, que está inscrito no rol das garantias individuais, o da presunção de inocência. Mas existe outro valor fundamental, da moral administrativa, que também está na Constituição, no rol dos direitos políticos. Então, quando o Supremo for se debruçar sobre essa questão terá de ponderar esses dois valores. O da moralidade administrativa de um lado, aplicado às eleições, que é um direito fundamental, e de outro a presunção da inocência, que se aplica fundamentalmente ao processo penal.

Ele ressalta que antes não havia nenhuma lei disciplinando o indeferimento dos candidatos que tenham a ficha suja. Mas agora a situação mudou, porque o próprio artigo 14, parágrafo 9º da Constituição Federal, estabelece que uma lei complementar poderá estabelecer algumas hipóteses de inelegibilidades além das previstas na CF.

Para os especialistas essa lei ainda trará muita confusão pela frente. Pois é foco de discussão também a possibilidade dos candidatos que tiveram, por meio de liminar, o registro de candidatura garantido serem eleitos e depois de passada a eleição forma enquadrados na ficha limpa e em decorrência disso serem cassados. Pedidos de anulação da eleição não estão descartados.

"Imagine se algum candidato majoritário for eleito e o STF decidir que ele se enquadra da lei e, por isso, não poderá ficar no cargo. Isso geraria um caos", argumenta Péricles Dávila. Ele defende também que "essa situação não seria cogitada se o TSE tivesse firmado uma diretriz em relação a isso. A partir daí os TREs em observância a essa diretriz e em força da política judiciária decidiriam conforme o TSE. Isso, sem dúvidas, traria maior confiabilidade por parte do eleitor na Justiça Eleitoral", argumenta.

Diante desse quadro, Lewandowski também já disse que essa é uma situação bastante comum, que faz parte do cotidiano da Justiça Eleitoral. Um candidato, com uma liminar, concorre, é eleito, depois o caso é julgado definitivamente e tem seu diploma cassado. A mesma situação pode ocorrer com aqueles que não tenham a ficha limpa. Podem obter uma liminar, um efeito suspensivo, ter seu registro deferido, mas farão sua campanha por sua própria conta e risco, avisou o ministro.

Sobre isso, em seus depoimentos à imprensa, Lewandowski afirmou que se alguém tiver agora o registro indeferido pelo Tribunal Regional Eleitoral pode eventualmente obter um efeito suspensivo. Mas como diz o próprio nome da medida, simplesmente suspender uma decisão final, mas quando ela for pronunciada o candidato corre o risco de perder seu mandato.

Aplicação
Nesse sentido, ao sair do STF, o ministro aposentado Eros Grau, declarou em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo que essa regra contraria o Estado de Direito. Segundo ele, políticos corruptos pervertem, são prejudiciais à sociedade. No entanto, só podemos afirmar que este ou aquele político é ou não corrupto após o trânsito em julgado.

Com um placar muito apertado, o TSE reafirmou, nesta terça-feira (17/8), que a Lei Complementar 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, tem aplicação imediata. Por cinco votos a dois, os ministros entenderam que a lei não se enquadra no princípio da anualidade previsto no artigo 16 da Constituição Federal.

Em notícia divulgada pela revista Consultor Jurídico, o relator do processo, ministro Marcelo Ribeiro, insistiu no ponto de que a criação de novos critérios de inelegibilidade interfere claramente no processo eleitoral. Por isso, deveria respeitar o prazo fixado constitucionalmente. De acordo com o artigo 16 da Constituição, “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.

O argumento, contudo, foi vencido pela maioria. O presidente do TSE, ministro Ricardo Lewandowski, que havia pedido vista dos autos, anotou em seu voto que o prazo de um ano para a aplicação de lei só se justifica nos casos em que há deformação do processo eleitoral. Ou seja, nos casos em que desequilibra a disputa, beneficiando ou prejudicando determinadas candidaturas.

Como a Lei da Ficha Limpa é linear, ou seja, se aplica para todos indistintamente, não se pode afirmar que ele interfere no processo eleitoral. Logo, sua aplicação é imediata. Lewandowski também reafirmou seu entendimento de que as condições de elegibilidade são critérios. E, como critérios, são aferidos no momento do registro da candidatura. O presidente sustentou que, como a Lei Complementar 135 revogou grande parte da Lei Complementar 64/90, se o tribunal entendesse que não se aplica para essas eleições, não haveria lei para reger a maior parte das condições de elegibilidade.

Já que a Lei da Ficha Limpa foi sancionada em junho, apenas quatro meses antes das eleições, não poderia barrar candidaturas antes de junho de 2011. Na prática, seria aplicada apenas para as eleições de 2012. Segundo o ministro Marco Aurélio, que também votou contra a aplicação imediata da lei, “ninguém em sã consciência, a meu ver, poderia afirmar que a Lei Complementar 135 não altera o processo eleitoral”, afirmou Marco. “Não vejo como se colocar em segundo plano o que se contém no artigo 16 da Carta da República”, reforçou.

Lewandowski explicou que a Ficha Limpa não impõe uma sanção ao candidato, apenas cria um requisito: não ter sido condenado por órgão colegiado. Por isso, os princípios da anualidade e da não retroatividade são desnecessários nesse caso.

Pena ou condição
Depois de superar a discussão sobre a aplicação imediata da lei, os ministros passaram a discutir se a regra abrange ou não os casos de condenação anteriores à sua vigência. Para o ministro Marcelo Ribeiro, a aplicação das sanções de inelegibilidade a fatos ocorridos antes de sua vigência fere o princípio da segurança jurídica. “Ocasiona ainda inevitável violação ao princípio de que ninguém poderá ser processado, julgado ou punido pelo mesmo fato”, votou.

A argumentação é fundamentada no inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição: "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". Assim, os condenados por órgãos colegiados antes de sanção da Lei da Ficha Limpa não poderiam sofrer as novas sanções.

O ministro Arnaldo Versiani divergiu de Ribeiro. Para ele, condição de inelegibilidade não é punição. O raciocínio é o seguinte: Dona Marisa, mulher do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não pode concorrer. E isso não pode ser enquadrado como punição ou pena. É uma vedação de cunho eleitoral estabelecida em lei.

Outro exemplo: para se candidatar, juízes têm de pedir exoneração do cargo. E não se pode afirmar que isso é uma pena. O mesmo raciocínio se aplicaria para os novos critérios criados para barrar candidaturas. Critério de elegibilidade não é pena. Logo, não há espaço para se falar em violação ao princípio de que a lei não pode retroagir para prejudicar o réu.

O ministro Marcelo Ribeiro, contudo, separa as causas de inelegibilidade de duas formas. Para ele, elas podem ter, ou não, caráter de sanção. De acordo com o entendimento de Ribeiro, se a inelegibilidade decorre da prática de um ilícito eleitoral, ela revela caráter de pena porque é imposta em razão da prática do ilícito. Logo, não poderia haver a retroatividade para prejudicar o candidato. Já as causas de inelegibilidade decorrentes de parentesco ou por ocupação de cargo público não são tidas como sanção. Assim, para essas, especificamente, não cabe falar de retroatividade.

A definição dessa questão foi adiada porque a ministra Cármen Lúcia pediu vista do processo.

Segundo Lewandowski, uma lei não pode retroagir para prejudicar alguém. Por outro lado, a Justiça Eleitoral costuma considerar, em seus julgamentos, a situação da pessoa apenas na data do registro para examinar a validade dele — ou seja, condenações posteriores não seriam levadas em consideração. "A lei só pode retroagir para beneficiar alguém, nunca pode prejudicar", disse o ministro.

A discussão acerca da Lei da Ficha Limpa foi provocada por recurso impetrado pelo candidato a deputado estadual no Ceará Francisco das Chagas (PSB). Ele foi condenado por compra de votos quando era candidato à Câmara de Vereadores da cidade de Itapipoca, no interior cearense. A decisão transitou em julgado em 2006. Como a lei prevê inelegibilidade de oito anos nestes casos, ele estaria impedido de concorrer até 2014. O Tribunal Regional Eleitoral do Ceará negou seu registro com base nesse entendimento.

Casos concretos
De acordo com o TSE, em todo o país, pelo menos 100 pessoas deverão ter a candidatura barrada pela Lei da Ficha Limpa. Até o momento, das 1.030 candidaturas indeferidas, pouco mais de 70 referem-se à nova lei.

O TSE afirma que já era de esperar que candidatos regionais tentassem derrubar regras eleitorais. Mas é aí que devem prevalecer a força, o sentido e o valor maior da Justiça Eleitoral brasileira. Pois, acima de tudo, são a isenção e a independência política da Justiça Eleitoral que geram a segurança da sociedade na democracia, defendeu Ricardo Lewandoswski.

Os casos que ainda esperam por decisão do TSE são os processos do Ministério Público do Maranhão em relação à candidatura de Jackson Lago (PMDB) ao governo do estado. De Sergipe, onde seu governador Marcelo Deda (PT), apesar de sofrer na Justiça Eleitoral o processo ajuizado há mais tempo, ainda não foi julgado, estando a poucos meses de terminar o mandato e sendo candidato à reeleição. Acusado de, na condição de prefeito, ter desviado dinheiro público para animar sua candidatura a governador. Além desses, no Maranhão o TRE, por exemplo, liberou a candidatura à Câmara do deputado Sarney Filho (PV), condenado por propaganda irregular em 2006.

Para Lewandowski, esses são casos isolados. E mesmo gerando polêmica e controvérsia em algumas decisões, a maioria dos Tribunais Regionais Eleitorais tem aplicado a lei como foi interpretado pelo TSE.

Inconstitucionalidade
Aos sair do STF, Eros Grau declarou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, que a Lei da Ficha Limpa põe "em risco" o Estado de Direito. Para ele, o TSE ignorou o princípio da irretroatividade das leis. "Há muitas moralidades. Se cada um pretender afirmar a sua, é bom sairmos por aí, cada qual com seu porrete. Estou convencido de que a Lei Complementar 135 é francamente, deslavadamente inconstitucional."

Segundo ele, "ficha limpa" é qualquer cidadão que não tenha sido condenado por sentença judicial transitada em julgado. A Constituição do Brasil diz isso, com todas as letras.

Em recente artigo publicado na ConJur, o advogado eleitoral, Marcos Coutinho Lobo, afirmou que a Lei Ficha Limpa "é inconstitucional de cabo a rabo". A Lei Complementar 135/2010, denominada Lei Ficha Limpa, é desprovida de juridicidade em cotejo com a Constituição da República, escreveu.

"Tenho obrigação, como cidadão, como brasileiro, de sustentar a inconstitucionalidade, bem como por convicção de advogado, porque é obrigação do advogado defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, os direitos humanos e o Código de Ética da OAB", defende.

Segundo Lobo, "a lei não passa de um pseudo apelo popular, cuida-se de casuísmo que nada mais é do que uma escancarada afronta à ordem jurídica constitucional vigente, a implicar numa espécie de justiçamento, sem justiça e Justiça, que encontra também na precipitação uma das mais repugnantes formas de macular reputações, de contrariar o ordenamento jurídico, de colaborar com a barbárie."

De outro lado, impedir que um "ficha suja" não possa pleitear mandatos eletivos cria uma nova espécie de inelegibilidade, a saber, a morosidade necessária dos processos. Ora, porventura um processo demore dez anos e somente a decisão de última instância reconheça a inocência do acusado terá ele, indevidamente, ficado inelegível por dez anos, não por ter cometido um ilícito, mas simplesmente porque estava sendo processado. Este um dos aspectos da absurdez da Lei Ficha Limpa.

"Além do princípio da igualdade, resta vulnerado o próprio parágrafo 9º do artigo 14, que é o esteio para os defensores da Lei Ficha Limpa, pois é o próprio dispositivo que determina que as hipóteses de inelegibilidade deverão ter prazo de cessação, e este não pode ser distintos para situações iguais e muito menos pode ser um prazo em aberto", conclui.

Crimes eleitorais
A inelegibilidade de um candidato pode ser pedida por qualquer partido político, coligação, candidato ou pelo Ministério Público Eleitoral perante a Justiça Eleitoral. A representação deverá ser feita por meio da Ação de Investigação Judicial Eleitoral e deve relatar fatos e indicar provas, indícios e circunstâncias.

São inelegíveis os que tiverem condenação definitiva ou de órgão colegiado, nos seguintes casos:

  • Ocupantes de cargos eletivos:
  • Cassados por violação à Constituição Estadual ou Lei Orgânica dos Municípios.
  • Que tiverem suas contas recusadas
  • Que desfizerem união conjugal ou estável para descaracterizar situação de inelegibilidade.
  • Que renunciaram para não serem cassados
  • Ocupantes de cargos na administração pública condenados por abuso de poder econômico ou político
  • Oficiais excluídos das forças armadas
  • Profissionais excluídos da categoria por falha ético-profissional.
  • Magistrados e membros do MP aposentados compulsoriamente
  • Quem teve os direitos políticos suspensos por improbidade.
  • Demitidos do serviço público em processo administrativo.
  • Condenados por fazer doações eleitorais ilegais
  • Condenados:
  • Por crime contra a economia popular, a fé pública, a administração e o patrimônio públicos.
  • Por crime contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e por violação à Lei de Falências.
  • Por crime contra o meio ambiente e a saúde pública.
  • Por crime eleitoral punido com pena de prisão.
  • Por abuso de autoridade
  • Por lavagem de dinheiro, tráfico de droga, racismo, tortura e crimes hediondos
  • Por trabalho escravo
  • Por crime contra a vida e a dignidade sexual
  • Por organização criminosa, quadrilha ou bando

Leia aqui a Lei Ficha Limpa.

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