Vara particular

Leia decisão que puniu juíza por manipular Justiça

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14 de agosto de 2010, 8h15

Punida com a pena máxima administrativa, a juíza Margarida Elizabeth Weiler, aposentada compulsoriamente pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul em junho, pode perder também o benefício mensal garantido aos servidores públicos tirados da ativa. O presidente da corte, desembargador Elpídio Helvécio Chaves Martins, juntou a uma ação do Ministério Público Federal que tramita no Superior Tribunal de Justiça o acórdão unânime que expulsou a magistrada do Judiciário. Os argumentos extras podem levar a corte a condenar a juíza por crimes contra a administração pública, o que lhe tiraria a aposentadoria mensal vitalícia a que hoje tem direito, apesar da punição.

O acórdão foi encaminhado em junho ao STJ, para ser juntado ao Recurso Especial 956.388 do MPF contra a juíza. Recebido em 2007 pela 5ª Turma da corte, o processo que a acusa de peculato está sob a relatoria do ministro Jorge Mussi. Na segunda vez que reclamou ao STJ contra uma punição administrativa, a juíza alegou que os indícios levantados são fruto de sua atividade jurisdicional, e que ela não pode ser julgada pelo conteúdo de decisões. Da primeira, em 2001, ela alegou cerceamento de defesa ao ser removida de sua vara para outra comarca, acusada de cometer irregularidades.

A pena administrativa imposta pelo TJ-MS se refere a uma lista de irregularidades. A principal delas é o conluio enxergado pelos desembargadores na relação da juíza com o empresário Luiz Eduardo Auricchio Bottura, denunciado pelo Ministério Público por golpes contra consumidores na internet. Bottura foi responsável por boa parte das ações que tramitavam na pequena comarca de Anaurilândia (MS), pedindo liminares contra desafetos e respectivos advogados. Segundo os prejudicados, todas as liminares foram concedidas sem que as partes contrárias fossem ouvidas. Antes de condenar a juíza, o tribunal já a havia declarado suspeita para julgar processos ligados ao empresário.

Segundo a Corregedoria do TJ-MS, com a ligação, os dois visavam obter “vantagem ilícita em face de terceiros, bem como de constrangê-los por meio de processos judiciais”. Ainda de acordo com o órgão, Bottura era defendido pelo advogado Eduardo Garcia da Silveira Neto, “com quem a magistrada alegadamente mantém relação afetiva more uxorio”. De acordo com o corregedor-geral de Justiça de Mato Grosso do Sul, desembargador Josué de Oliveira, depoimentos de 28 pessoas, entre servidores, policiais, advogados, juízes e até do prefeito da cidade, confirmaram “à exaustão as suspeitas de irregularidades praticadas pela magistrada”. O Ministério Público estadual opinou pela punição máxima.

A relação íntima da juíza com o advogado Eduardo Garcia começou em 2005, segundo relatório do desembargador Claudionor Miguel Abss Duarte, relator do processo disciplinar. A afirmativa se baseia em e-mail enviado pela juíza a Garcia, reproduzido nos autos. “Querido, leia esta notícia com hora marcada só fora do expediente!!!rsrs. As ‘horas extras’ são muito agradáveis, como só podem ser entre adultos bem resolvidos. E discretos. Este meu e-mail nunca foi violado, é seguro. Bjs…" Segundo o processo, a mensagem foi mandada em 16 de novembro de 2005, antes de ela nomeá-lo juiz leigo na comarca, em setembro de 2006.

Uma das comprovações do pacto, segundo o tribunal, está no fato de a juíza ter proferido diversas decisões favoráveis a Bottura, uma delas em inquérito policial movido com o auxílio do advogado, em que ela expediu cartas precatórias para buscas e apreensões contra desafetos do empresário. “Estes fatos constituem claros indícios de que a citada juíza se vale do cargo para a prática de irregularidades”, disse o corregedor Josué de Oliveira, segundo o qual a pena máxima de aposentadoria compulsória se devia à reincidência. “Por anteriores desvios de conduta a magistrada foi apenada pelo Tribunal de Justiça com remoção compulsória, após regular procedimento administrativo, e foi recentemente condenada em ação de improbidade perante o Juízo da Comarca de Caarapó, [e] pelos mesmos fatos está sendo processada criminalmente.”

As acusações renderam uma sindicância na vara em que Margarida era titular, em Anaurilândia. Em 13 de fevereiro do ano passado, ela já estava afastada da função para não atrapalhar as investigações. Em dezembro, foi posta em disponibilidade. Nesse meio tempo, a juíza chegou a pedir a própria aposentadoria, tentando evitar a punição. Não deu certo. O Mandado de Segurança 2010.006623-6 foi rejeitado devido ao impedimento legal previsto na Resolução 30 do Conselho Nacional de Justiça, na qual o órgão proíbe que magistrados respondendo a processo disciplinar antecipem sua retirada da ativa.

Segundo o relator do processo disciplinar, desembargador Claudionor Duarte, a punição só não foi pior porque “a demissão, conforme previsto no artigo 95, inciso I, parte final, da Constituição Federal, depende de sentença judicial transitada em julgado.” No entanto, se a ação criminal no STJ for julgada procedente, Margarida perderá o direito de receber aposentadoria mensal.

Ficha suja
O relatório do desembargador elenca as irregularidades apontadas: “a indicação à nomeação de seu companheiro, o advogado Eduardo Garcia da Silveira Neto, para o cargo de juiz leigo do Juizado Especial da Comarca de Anaurilândia; permissão para que a conciliadora do Juizado Especial, Lóide Stábile Lima, presidisse audiências em que seu esposo, o advogado Napoleão Pereira de Lima, representava o interesse de uma das partes; locomoção a outra Unidade da Federação, sem o conhecimento do Tribunal de Justiça, acompanhada de advogado, delegado e um agente de Polícia, para diligência de prisão de seu ex-companheiro; e reunião dos servidores do fórum de Anaurilândia, para exibir cenas da filmagem da referida prisão”.

A sindicância também indicou desvios atribuídos à juíza depois que ela conheceu Luiz Eduardo Bottura. “A magistrada proferiu decisões absurdas, por isso imediatamente cassadas em segunda instância, tais como o arbitramento de pensão alimentícia em favor do Sr. Bottura no valor de R$ 100 mil mensais, a serem pagos pelo seu ex-sogro, Sr. Adalberto Bueno Netto, em ação cautelar de arrolamento de bens, intentada em 6.11.2007, sob o patrocínio do advogado Eduardo Garcia da Silveira Neto, inscrito na OAB-SP sob o n. 205.194, fatos que demonstram que a magistrada, valendo-se do seu cargo, procurou obter vantagem ilícita a seu favor ou de terceiro.”

Como se não bastasse, ainda segundo o relatório, “nessa mesma demanda, além do pensionamento, a magistrada, sob o singelo fundamento de constituírem ‘medidas necessárias à instrução do feito’, deferiu a expedição dos ofícios que implicam na quebra de sigilo fiscal, bancário, telefônico e telemático dos requeridos”.

Predileto processual
O favor ao empresário não se restringia ao território sul-mato-grossense, de acordo com a Corregedoria. O relatório aponta que Bottura, “além de tentar obter proveito econômico, passou a atacar pessoas ligadas aos seus adversários ou àqueles que se antepuseram às suas pretensões, mediante o ajuizamento de centenas de ações cíveis e criminais”. “Bottura ajuizou 87 queixas-crimes, sendo a grande maioria proposta em face de advogados de seus adversários, em decorrência de manifestações processuais, algumas destas ocorridas em processo que tramitavam em outros estados; em todos esses casos, a magistrada, dizendo que as queixas estavam formalmente em ordem, designou audiência.” A estratégia, na interpretação do tribunal, permitiu que Bottura usasse processos judiciais como instrumentos de vingança.

Nem os próprios clientes do empresário escapavam. De acordo com o relatório, depois de chegar a Anaurilândia, Bottura usava “estratégias nada ortodoxas, tais como ajuizar quase mil ações somente no Juizado Especial contra consumidores de diversas localidades”. “Acrescente-se que a magistrada não teve nenhum escrúpulo em pedir aos servidores, em reunião pública, que não hostilizassem o Sr. Bottura, depois de este ter se indisposto com a servidora (…), que se recusara a lavrar diversas certidões que o referido Bottura pretendia ditar a ela, segundo os próprios interesses”.

Ao ler seu voto, o desembargador Claudionor Duarte, relator do processo administrativo contra a juíza no TJ, se mostrou espantado com o perfil demonstrado por Bottura. “É surpreendente a vocação do Sr. Bottura para se envolver em processos judiciais”, afirmou. “Neste Tribunal de Justiça, já chegaram a tramitar cerca de mil ações pertinentes ao referido senhor, em grande parte delas despontando como autor de queixas-crimes por calúnia, difamação e injúria, bem como exceções de suspeição contra advogados e magistrados.” Duarte conta ter, só ele, relatado mais de cem queixas-crimes movidas pelo empresário “com base em apenas um fato, que ele ajuizou contra único magistrado”.

Exercício da função
Margarida refutou todas as acusações. Em explicações dadas à Corregedoria, ela afirmou que seu companheiro, o advogado Eduardo Garcia, advogou para o empresário em apenas um pedido de abertura de inquérito policial, “tendo depois renunciado às mesmas ainda em 2008”. Ela também garante não ter dado qualquer preferência ao julgar os pedidos de Luiz Eduardo Bottura. Ainda segundo ela, “não houve usurpação de senha por parte do advogado Eduardo Garcia, uma vez que os servidores apenas solicitavam ajuda do Dr. Eduardo, juiz leigo na comarca, para auxiliá-los com o manejo das ferramentas do Sistema de Automação do Judiciário de Mato Grosso do Sul”. Ela também alega não haver qualquer prova de que tenha sido favorecida por causa das decisões.

Mas o desembargador Claudionor Duarte, relator do processo, discorda. “Poder-se-ia cogitar da ocorrência de meros equívocos relacionados ao exercício da judicatura. Porém, quando os erros, in procedendo e in judicando, são profusos, crassos, grosseiros, acintosos à moralidade e sempre favoráveis à tnesma parte e advogado com quem a magistrada mantém relação que desborda do dever de impessoalidade, a presunção de boa-fé cede, revelando desvio de conduta”, disse.

Apesar das negações da juíza de que já conhecia Luiz Eduardo Bottura antes do ajuizamento dos processos, o desembargador afirma que os depoimentos mostraram o contrário. “A magistrada anunciava a muitas pessoas que iria chegar em Anaurilândia um empresário do ramo da Internet, que geraria vários empregos na cidade e o consequente aumento do número de processos, o que chegou a causar uma certa apreensão nos servidores”, relata.

A decisão pela aposentadoria da juíza foi unânime no tribunal. Ela ainda pode recorrer.

Clique aqui para ler a decisão do TJ-MS.

Processo Administrativo Disciplinar 066.158.0005/2009
RESP 956.388

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