Violência nos estádios

Estatuto do Torcedor é de difícil aplicação

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14 de agosto de 2010, 10h02

Os recorrentes problemas de segurança nos estádios brasileiros levaram o Congresso Nacional a decretar um reforço nas medidas preventivas e repressivas tomadas em relação à realização dos jogos com o claro objetivo de aumentar a segurança do torcedor e vislumbrando, como vem acontecendo nas recentes reformas legislativas nacionais relacionadas ao esporte, a próxima Copa do Mundo, em 2014.

A mensagem foi clara, mas a eficácia na aplicação ainda tem que ser verificada.

As medidas tomadas na forma de emenda da Lei 10.617, de 15 de Maio 2003, popularmente conhecida como “Estatuto do Torcedor”, são muitas e abarcam varias áreas relacionadas com a segurança no âmbito esportivo.

A maior novidade é a criminalização de determinadas condutas violentas nos estádios. Em particular, de acordo com o novo artigo 41, alínea b, do Estatuto do Torcedor, quem promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores em eventos esportivos será punido com pena de reclusão de um a dois anos. Na mesma pena incorrerá o torcedor que cometer estes crimes em um raio de 5 km ao redor do local de realização do evento esportivo, ou durante o trajeto de ida e volta do evento esportivo, assim como quem portar, deter ou transportar no interior do estádio, e suas imediações ou no seu trajeto, quaisquer instrumentos que possam servir para a prática de violência. Neste sentido, ainda que a intenção de aumentar a segurança nos estádios seja apreciável, o jurista não pode deixar de notar a extrema amplitude e quase falta de tipificação dos crimes introduzidos, que configuram em síntese crimes de perigo abstrato. Pense em condutas como “incitar a violência num raio de 5 mil metros ao redor do estádio” ou “deter nas imediações do estádio quaisquer instrumentos que possam servir para a prática de violência”, cuja ampla interpretação poderia levar a condenação criminal de milhares de pessoas a cada domingo. Oportuno se torna questionar por que determinadas condutas devam ser criminalmente reprimidas apenas se cometidas por um torcedor e não por qualquer pessoa? Desse modo, considerações relacionadas com o respeito ao principio constitucional da igualdade poderia ser levantadas.

Ainda em relação às importantes novidades em âmbito criminal, cabe destacar a tipificação de dois novos crimes. Em primeiro lugar, o chamado cambismo passa a ser ilegal sendo sancionado, com a pena de reclusão de um a dois anos e multa, a prática de vender ingressos de evento esportivo por preço superior ao estampado no ingresso, e com a pena de dois a quatro anos aquele que fornecer, desviar ou facilitar a distribuição de ingressos para venda por preço superior ao estampado no ingresso. Em segundo lugar também passa a ser crime toda uma série de condutas relacionadas com o conceito de fraude nos resultados de jogos. Serão punidos com reclusão de dois a seis anos e multa duas condutas especificas como, em primeiro lugar solicitar ou aceitar, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o resultado de competição esportiva, e, em segundo lugar dar ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim de alterar ou falsear o resultado de uma competição desportiva. Ademais, de maneira ampla, será punida com a mesma pena a ação de fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva.

O objetivo da lei de aumentar a segurança nos estados não é perseguido somente através da introdução de medidas posteriores e repressivas, mas também com um reforço das medidas preventivas relacionadas com a organização do evento e do estádio. Nesse sentido, a Lei em primeiro lugar aporta profundas emendas ao Capitulo IV, “Da segurança do torcedor partícipe do evento esportivo”, introduzindo o novo Artigo 13, que estabelece, sem prejuízo de outras condições previstas em lei, as condições de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo, sendo as seguintes: (i) estar na posse de ingresso válido; (ii) não portar objetos, bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar a prática de atos de violência; (iii) consentir com a revista pessoal de prevenção e segurança; (iv) não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, inclusive de caráter racista ou xenófobo; (v) não entoar cânticos discriminatórios, racistas ou xenófobos; (vi) não arremessar objetos, de qualquer natureza, no interior do recinto esportivo; (vii) não portar ou utilizar fogos de artifício ou quaisquer outros engenhos pirotécnicos ou produtores de efeitos análogos; (viii) não incitar e não praticar atos de violência no estádio, qualquer que seja a sua natureza; e (ix) não invadir e não incitar a invasão, de qualquer forma, da área restrita aos competidores. O não cumprimento das condições estabelecidas neste artigo implicará na impossibilidade de ingresso do torcedor ao recinto esportivo, ou, se for o caso, o seu afastamento imediato do recinto. Em segundo lugar, aumentam os requisitos exigidos pelos estádios e sua infra-estrutura. Diminui de 20 mil para 10 mil pessoas, ampliando-se, desta forma, o número de eventos esportivos sujeitos a estas obrigações, o limite a partir do qual: (i) os estádios deverão manter central técnica de informações com infra-estrutura suficiente para viabilizar o monitoramento por imagem do público presente; (ii) a emissão de ingressos e o acesso ao estádio nas primeira e segunda divisões da principal competição nacional e nas partidas finais das competições eliminatórias de âmbito nacional deverão ser realizados por meio de sistema eletrônico que viabilize a fiscalização e o controle da quantidade de público e do movimento financeiro da partida; (iii) o controle e a fiscalização do acesso do público ao estádio deverão contar com meio de monitoramento por imagem das catracas; (iv) a entidade responsável pela organização da competição e a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo solicitarão formalmente, direto ou mediante convênio, ao Poder Público competente: serviços de estacionamento para uso por torcedores partícipes durante a realização de eventos esportivos, assegurando a estes acesso a serviço organizado de transporte para o estádio, ainda que oneroso; e meio de transporte, ainda que oneroso, para condução de idosos, crianças e pessoas portadoras de deficiência física aos estádios, partindo de locais de fácil acesso, previamente determinados. Estas mudanças respondem a uma proposta do Ministério do Esporte.

Por fim, uma das novidades mais interessantes, também sob um ponto de vista técnico-jurídico é o surgimento de uma definição legal do termo “torcida organizada”, que se adiciona àquela de “torcedor” já contida na versão original do Estatuto do Torcedor. Assim, a torcida organizada vem a ser definida pelo novo artigo 2 , alínea a, da Lei como “a pessoa jurídica de direito privado ou existente de fato, que se organize para o fim de torcer e apoiar entidade de prática esportiva de qualquer natureza ou modalidade”. Todavia o aspecto mais interessante e inovador da reforma é que a Lei não se limita a criar uma definição de torcida, mas chega a prever verdadeiras obrigações, sendo que em alguns casos até devendo responder por responsabilidade civil objetiva. Assim as torcidas organizadas deverão, em primeiro lugar, manter cadastro atualizado de seus associados ou membros, o qual deverá conter, pelo menos, as seguintes informações: nome completo, fotografia, filiação, número do registro civil, número do CPF, data de nascimento, estado civil, profissão, endereço completo e escolaridade. Interessante será ver as reações das torcidas a essa novidade e até que ponto esta obrigação será respeitada, não sendo clara a sanção em caso de não respeito da disposição.

Ainda mais inovadora é outra disposição legislativa de acordo com a qual a torcida organizada responderá civilmente, de forma objetiva e solidária, pelos danos causados por qualquer dos seus associados ou membros no local do evento esportivo, em suas imediações ou no trajeto de ida e volta para o evento. Norma ambiciosa, cuja aplicação será curioso acompanhar, podendo até dar lugar ao surgimento de injustiças. Lembre-se que a torcida organizada é, segundo a definição da mesma lei, pessoa jurídica existente também de fato. Nenhum requisito financeiro, estrutural, ou estatutário é previsto para sua criação. Só é preciso que “se organize para o fim de torcer e apoiar entidade de prática esportiva de qualquer natureza ou modalidade”. Com que patrimônio a torcida organizada vai, efetivamente, responder nessas obrigações? Sobre que bens as pessoas lesadas poderão fazer valer os seus direitos? Por um lado, parece improvável que possa ser sobre bens pertencentes à torcida, já que, como dito acima, a lei não estabelece para criação a obrigação de patrimônio mínimo. Por outro lado, poderia chegar a ser injusto e talvez de duvidosa legitimidade constitucional que os credores possam fazer valer os seus direitos sobre todos os membros, objetivamente e solidariamente. Poderiam chegar a ser chamados a responder por danos enormes, como frequentemente são aqueles causados pela folia coletiva das torcidas, as pessoas que nada tem a ver com o fato ou não tem culpa nenhuma.

Uma situação paradoxal até poderia surgir, lendo literalmente o disposto da lei: quem seria responsável se lesado fosse alguém pertencente a mesma torcida? Todos os membros objetivamente e solidariamente? Enfim, não parece que esta responsabilidade seja limitada, pelo menos de acordo com uma interpretação literal da lei, aos membros da torcida que atuam nela ou a administram. Neste sentido, a lei é clara, falando de responsabilidade objetiva e solidária. Além disso, ela não prevê entre os requisitos exigidos para cadastramento dos membros e associados, a inclusão do papel ou da função do torcedor, pessoa física, no âmbito da torcida organizada.

Muitas perguntas surgem então após uma primeira e superficial analise da lei. Aguardamos as respostas que poderão chegar por meio de decisões judiciais. Sem dúvida, a introdução desta responsabilidade objetiva e solidária da torcida responde ao objetivo de prevenção dos danos, de responsabilização do torcedor e de coletivização do risco derivado das ações individuais. Objetivos legítimos e apreciáveis, mas uma definição da responsabilidade objetiva e solidária em termos tão gerais como aparecem da leitura combinada dos novos Artigos 2, alínea a, e 39, alínea b, pode ser sujeita a discussão quanto a legitimidade constitucional, se não devidamente definida e limitada. Quais os seus limites então? Será que só vão responder os torcedores contidos no cadastro da entidade? E quem vai responder se esta obrigação de cadastramento não for respeitada? E não seria extremamente simples para a mesma torcida excluir alguns dos seus membros ou associados deste cadastro, assim driblando a aplicação dá lei? Quem e como controlaria o cadastramento dos milhares de integrantes das torcidas? E mesmo limitando a responsabilidade aos torcedores cadastrados, situações nas quais injustiças poderiam surgir não são difíceis de imaginar. Por exemplo, no caso de uma torcida que fizesse danos no curso de um jogo fora de casa, ou, como prevê a mesma lei, no trajeto de ida e volta para o evento, por qual razão deveria o torcedor devidamente cadastrado responder por aqueles danos quando ele ficou assistindo ao jogo sentado no sofá da sua casa, ou nem assistiu ao jogo? Seria então, por causa do cadastramento, obrigação seguir a torcida sempre, com o fim de contribuir na prevenção dos possíveis danos? É notório como um dos fins principais da introdução da figura da responsabilidade objetiva é exatamente a redução dos riscos inerentes a determinadas atividades perigosas. É este mesmo objetivo que a legitima, mas esta legitimidade se funda sobre a adequação e a proporcionalidade aos objetivos perseguidos. Geralmente, a responsabilidade objetiva é atribuída a alguém que controla ou organiza a atividade passível de gerar danos. Neste sentido, lembrando a falta de uma obrigação pela torcida de declarar quem são os seus organizadores, a medida adotada com a emenda do Estatuto do Torcedor poderia parecer excessiva. Que tipo de controle pode ter um torcedor comum sobre os milhares de torcedores que compõem a torcida? Tem ele verdadeiramente a possibilidade de influenciar ou controlar o comportamento deles?

De forma geral, como costuma ser no âmbito da responsabilidade objetiva, sendo ela lex specialis em respeito à responsabilidade comum de direito civil, é aconselhável a adoção de uma interpretação restritiva. Por outro lado, fica também aberta a questão da responsabilidade solidária da torcida, especialmente com respeito as relações internas dos devedores. A última disposição que considera a torcida organizada como entidade única passível de assumir responsabilidades e receber sanções por causa do comportamento dos seus membros é aquela que prevê que a torcida organizada que, em evento esportivo, promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores, árbitros, fiscais, dirigentes, organizadores ou jornalistas será impedida, assim como seus associados ou membros, de comparecer a eventos esportivos pelo prazo de até três anos.

Em conclusão, a Lei parece então, de forma geral, ambiciosa, rigorosa, mas de aplicação sem duvida difícil e, além disso, discutível e passível de promover injustiças. Clara é a sua missão: lançar uma mensagem forte a todos os componentes do futebol nacional e internacional sobre a segurança do futebol e dos estádios no Brasil, tendo em vista a Copa do Mundo de 2014, organizada pela entidade máxima do futebol mundial, a FIFA, que recentemente expressou as suas preocupações sobre o estado da preparação do Brasil a quatro anos do evento.

Curiosamente, a primeira, e até agora única, violadora do novo Estatuto do Torcedor é de certa forma a própria FIFA, que já pediu exoneração da mesma Lei, ou pelo menos de parte dela, durante a Copa de 2014, uma vez que uma das principais patrocinadores da FIFA e da mesma Copa do Mundo, a produtora de cerveja Budweiser, seria gravemente prejudicada pela lei, que proíbe portar objetos, bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar a prática de atos de violência como condição de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo.

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