Garantias desprezadas

Lei Ficha Limpa é inconstitucional de cabo a rabo

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13 de agosto de 2010, 15h46

Em voga no território nacional, de forma exacerbada e irracional, a pregação de profissão de fé em favor dos efeitos “purificadores” da Nação provocados pela Lei Ficha Limpa, a Lei Complementar 135/2010, que criou hipóteses de inelegibilidade para a Justiça Eleitoral negar registro de candidatura de cidadãos que sofreram condenação sem trânsito em julgado, dentre outros malabarismos “legais” retrógrados.

Tenho convicção de que a inconstitucionalidade da Lei Complementar 135/2010 é de cabo a rabo.

E tenho obrigação, como cidadão, como brasileiro, de sustentar a inconstitucionalidade, bem como por convicção de advogado, por que é obrigação do advogado defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, os direitos humanos (art. 2°., caput e §§ 1°. e 2°.; §§ 1°. E 2°. do art. 31; inciso I do art. 44, todos do Estatuto da OAB – Lei 8.906/94 e Código de Ética da OAB).

A Lei Complementar 135/2010, denominada Lei Ficha Limpa, é desprovida de juridicidade em cotejo com a Constituição da República.

Fruto de um pseudo apelo popular, cuida-se de casuísmo que nada mais é do que uma escancarada afronta à ordem jurídica constitucional vigente, a implicar numa espécie de “(…) justiçamento, sem justiça e Justiça, que encontra também na precipitação uma das mais repugnantes formas de macular reputações, de contrariar o ordenamento jurídico, de colaborar com a barbárie.”, avalia ADRIANO SOARES DA COSTA (in http://adrianosoaresdacosta.blogspot.com).

É o mesmo doutrinador que assevera que a Lei Ficha Limpa implica na “(…) relativização dos direitos e garantias individuais. Garantias conquistadas pela cultura ocidental, como o devido processo legal, o pleno exercício do direito de defesa, a irretroatividade de leis punitivas (…)” e que a lei é um “(…) atendimento à opinião pública, o justiçamento a qualquer custo, como nos lembra o volksgeist (espírito do povo) dos alemães, tão caro à ideologia nazista.”.

A Lei Ficha Limpa, a bem da verdade, nada mais é que a institucionalização da tese da vida pregressa que o egrégio Supremo Tribunal Federal, na ADF 144, rechaçou veementemente. É uma tentativa, espero que vã, de contornar decisão do STF.

À época, nos idos de 2008, o subscritor desse artigo manifestou, em defesas várias na Justiça Eleitoral e artigo publicado na internet, entendimento que não se alterou, pois, como dito, a Lei da Ficha Limpa é apenas a formalização da tese vida pregressa.

O ministro Eros Grau, no egrégio TSE, em consonância com a tese do ministro Ari Pargendler, evocou os princípios da presunção de inocência ou da não-culpabilidade para dizer da injuridicidade da tese da vida pregressa.

Uma das alegações de defesa da Lei Ficha Limpa é que o princípio do in dubio pro reu se aplica apenas aos processos criminais. Não obstante, também para defender a Lei, evoca-se o princípio in dúbio pro societa, princípio este que precisamente é utilizado nos processos criminais. É a teratologia manifesta, associada a muita contradição.

A Lei Ficha Limpa não encontra apoio numa simples interpretação lógico-sistemática do texto constitucional.

A Lei Ficha Limpa é o exemplo mais acabado de desprezo que já vi pelos fundamentos, objetivos fundamentais e direitos e garantias fundamentais da Constituição da República.

É fácil constatar que as hipóteses de inelegibilidade inventadas pela Lei Ficha Limpa (v.g., simples existência de processos de improbidade e criminais ainda não transitados em julgado, alcançar situações jurídicas já consolidadas etc.), todas a impedir a elegibilidade do cidadão, não se adequam aos preceitos constitucionais que ditam que a República Federativa do Brasil foi instituída para assegurar justiça (Preâmbulo); que é um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a cidadania, dignidade da pessoa humana, que todo poder emana no povo (art. 1°., caput, II, III e V, e parágrafo único); que tem como um dos objetivos fundamentais não admitir qualquer forma de discriminação (art. 3°., IV); que adota como princípio a prevalência dos direitos humanos (art. 4°., II).

Mais. A Lei Ficha Limpa é absolutamente incompatível com os direitos e garantias individuais, sobretudo os que dizem que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5°., caput); que é inviolável a igualdade e a segurança (art. 5°., caput); que ninguém será submetido a tratamento desumano e degradante (art. 5°., caput, III); que são invioláveis a honra e a imagem das pessoas (art. 5°., caput, X); que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5°., caput, XXXVI); que não pode haver juízo de exceção (art. 5°., caput, XXXVII); que não há crime sem lei anterior que o defina, nem sanção sem prévia cominação legal (art. 5°., caput, XXXIX); que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art. 5°., caput, XL); que lei deve punir qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5°., caput, XLI); que é garantido o devido processo legal (formal e substantivo) e o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5°., caput, LIV e LV); que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5°., caput, LVII).

De outra parte, em nenhum dispositivo da Constituição do Brasil há autorização para que qualquer pessoa, grupo de pessoas ou norma criada por um grupo de pressão tutele o cidadão tal qual como pretende a Lei Ficha Limpa, até porque, como dito no artigo 14 da Constituição, a soberania é do povo e a ele, unicamente, cabe decidir, sem tutela, pelo voto direto e secreto. Direto porque não precisa de intermediários e, secreto, porque nem ao Estado é permitido invadir a subjetividade do único titular do direito de escolha.

A partir da Constituição da República é incontornável a conclusão de que o trânsito em julgado da condenação é da essência do Estado Democrático de Direito, ou seja, ninguém pode ser impedido de ser julgado politicamente pelos cidadãos sem que haja decisão definitiva, como se extrai do artigo 15, incisos III e V da Constituição da República, este último combinado com o artigo 20 da Lei 8.429/92.

O mais grave é que a Lei Ficha Limpa cria sanções políticas gravíssimas (antecipadas, de execução imediata e de efeitos sem prazo definido) a partir de possível sanção penal, cível (improbidade) ou administrativa. “Teje” condenado sem trânsito em julgado, “teje” inelegível. A hipótese é uma espécie de irmã gêmea da “prisão para averiguações”.

De outro lado, impedir que um “ficha suja” não possa pleitear mandatos eletivos cria uma nova espécie de inelegibilidade, a saber, a morosidade necessária dos processos. Ora, porventura um processo demore dez anos e somente a decisão de última instância reconheça a inocência do acusado terá ele, indevidamente, ficado inelegível por dez anos, não por ter cometido um ilícito, mas simplesmente porque estava sendo processado. Este um dos aspectos da absurdez da Lei Ficha Limpa.

E o prazo de inelegibilidade ficará a depender da celeridade de cada processo, a implicar em flagrante violação ao princípio da isonomia. Por uma mesma acusação de ilícito penal ou de improbidade, em decorrência de fatos distintos, em processos diferentes, pela Lei Ficha Limpa, cidadãos poderão ter prazos distintos de inelegibilidade a depender do humor do processo de cada um. Se, entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado, um processo demorar três anos e, o outro, oito anos, os prazos de inelegibilidade para um será de 11 anos e para o outro 16 anos.

Além do princípio da igualdade, resta vulnerado o próprio § 9° do artigo 14, que é o esteio para os defensores da Lei Ficha Limpa, pois é o próprio dispositivo que determina que as hipóteses de inelegibilidade deverão ter prazo de cessação, e este não pode ser distintos para situações iguais e muito menos pode ser um prazo em aberto.


E o próprio § 9° do artigo 14 não pode ser interpretado desgarrado do sistema, sobretudo do Título II, Capítulo I, e, em particular, do Capítulo IV, onde está situado o dispositivo e o art. 15 que expressamente preceitua que o “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: (…) condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; (…) improbidade administrativa (…)”.

Em obediência à Constituição da República é que a Lei 8.429/92, no artigo 20, preceitua, em decorrência de improbidade, que “A perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória”.

Sem razão as alegações de que o § 9º do artigo 14 estaria a autorizar as novas hipóteses de inelegibilidade da Lei Ficha Limpa.

E como não dizer que as inelegibilidades criadas pela Lei Ficha Limpa não são sanções?

Um dos fundamentos da República é a cidadania, e esta tem dois pólos, é o ativo e o passivo. E o que é o direito passivo da cidadania? É o direito de ser votado. E o que é sanção? Sanção é subtrair algo de alguém. Se é sanção criminal, se subtrai o direito de ir e vir, se estabelece restrições a direitos ou se impõe multa. Se é sanção administrativa, gera demissão do servidor, multa, impedimento de progressão, impedimento de contratar com o poder público etc. Se é sanção civil, vai-se ao patrimônio da pessoa.Tudo isso é sanção.

E as inelegibilidades de que cuida a Lei Ficha Limpa são sanções que afetam diretamente um dos fundamentos da República, a cidadania, o pólo passivo desse direito.

A Lei cria, efetivamente, sanções graves, por que implicam na subtração – sem razão de ser concreta e definitiva – de prerrogativa de direito cívico, a elegibilidade, a capacidade eleitoral passiva. Por isso é sanção, por que subtrai e restringe direito inerente à cidadania.

E como não concluir que isso também não atinge a dignidade da pessoa humana, outro fundamento da República, se a idéia é impor ao cidadão uma sanção por um processo que eventualmente poderá ser julgado, em definitivo, procedente? Julgado improcedente a pretensão, a dignidade, pelo período de duração do processo, estará submetida a sanção político-moral gravíssima sem nenhuma razão de ser.

A Lei Ficha Limpa é a afirmação de um ato truculento, pois, sem a certeza absoluta da condenação, quer-se suprimir direito político-constitucional de poder ser votado. Verdadeira cassação do direito político de ser votado sem nenhuma razão definitiva.

É como se o cidadão ficasse a ostentar a condição de cidadania pela metade em razão de uma eventual condenação, a resultar na declaração: “Você é cidadão pela metade porque supostamente é culpado”.

A regra da civilidade é que todos são “supostamente inocentes” e, dizer o contrário, é um rompimento unilateral com o fundamento “soberania popular”.

De outro lado, a Lei é absolutamente contrária aos postulados das “declarações de direitos”, a saber: Declaração Universal dos Direitos do Homem” (“a vontade do povo será a base da autoridade do governo”), “Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos”, dentre tantas outras ratificadas pela República Federativa do Brasil.

Para ficar apenas numa delas, cite-se o Pacto de San José da Costa Rica que preceitua que

"Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se.”

"Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.”

Artigo 23 – Direitos políticos

1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades;

2. de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representante livremente eleitos;

3. de votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a livre expressão da vontade dos eleitores; e

4. de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país;

5. A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades, a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivo de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competentes, em processo penal.”

Além da Convenção Americana de Direitos Humanos, faltou a Lei Ficha Limpa declarar que não mais se aplica no Brasil o artigo V e a segunda parte do artigo XI da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pois naquela está dito que “ninguém será submetido (…) a tratamento (…) desumano e degradante” e, neste, “Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.”.

Walter Rodrigues, probo e brilhante jornalista, lamentavelmente falecido em data recente, em seu blogue (www.walter-rodrigues.jor.br), na data de 15.07.2008, quando em voga a tese da vida pregressa, hodiernamente concretizada na Lei Ficha Limpa, publicou o artigo “Maluqueiras 2008” que bem resume a questão. Veja-se parte do texto que interessa no presente:

“15/7/08

Maluqueiras 2008

Não é só a “tolerância zero” da lei seca que procura atalhos delirantes para resolver problemas reais.

Informam as agências de notícia que 17 dos 27 tribunais regionais eleitorais são a favor da inelegibilidade de pessoas condenadas em primeira instância, por improbidade administrativa e delitos afins.

Uma pá de promotores e procuradores têm a mesma “opinião”, alguns chegando a dizer que não precisa a condenação, basta o recebimento da denúncia do Ministério Público. Esta última novidade é bem velhinha. Recupera a ciência das leis de exceção da ditadura militar. Quem fosse denunciado pelo MP por “crime contra a segurança nacional” ficava automaticamente inelegível.

Demagogos dizem que se trata de defender a moralidade e combater a impunidade. Mentira. As leis atuais incorporam a inelegibilidade dos condenados por improbidade, corrupção eleitoral, peculato e crime de responsabilidade, entre outros. Apenas exigem que sejam de fato condenados, isto é, por sentença definitiva.

Parte dos crimes nunca são denunciados porque promotores se omitem. Noutros casos, juízes sentam nos processos uma vida inteira, até que os delitos prescrevam, não raro com a conivência silenciosa de representantes do MP. Noutros ainda, liminares ou sentenças arbitrárias inocentam os delinqüentes.

Quando promotores e juízes agem em defesa da lei, esbarram às vezes nas próprias complexidades da legislação, cujas brechas ocultas podem ter sido feitas exatamente para favorecer quem tem dinheiro para contratar o advogado certo.

Tudo isso pode ser reformado sem ferir os princípios básicos da justiça e da democracia. Mas o que essa gente quer é introduzir no nosso direito o princípio bárbaro de que alguém deve sofrer sanções antes de ser condenado pelo crime que supostamente as justifica. Se depois for absolvido no 2o grau ou até no Supremo, azar dele. Isso enquanto deixarem que haja recurso.

É o caso de perguntar se juízes e promotores, nas raríssimas ocasiões em que se consegue condenar um deles, também deveriam começar a pagar antes que a sentença transitasse em julgado.”


Os defensores da Lei Ficha Limpa evocam o “clamor da opinião pública pela moralização da política”. Sobre essa alegação, cabe “como luva” lembrar Vicent Moro Giaferri que, em resposta a Cesar Campinchi que invocava a opinião pública em seu favor, disse: “Maître Campinchi vos dizia a toda hora que a opinião pública estava sentada entre vós, deliberando a vosso lado. Sim! A opinião pública está entre vós. Expulsai-a, essa intrusa. É ela que ao pé da cruz gritava: ‘Crucifica-o’. Ela, com um gesto de mão, imolava o gladiador agonizante na arena. É ela que aplaudia aos autos da fé da Espanha, como ao suplício de Calas. É ela enfim que desonrou a Revolução francesa pelos massacres de setembro, quando a farândola ignóbil acompanhava a rainha ao pé do cadafalso. A opinião pública está entre vós, expulsai-a, essa intrusa … Sim, a opinião pública, esta prostituta, é quem segura o juiz pela manga”.

Nada tem de popular a origem dessa lei complementar, porquanto resulta do entrelaçamento de teses e teorias medievais de entidade religiosa e associações de determinadas classes, uma entidade sem personalidade jurídica e os dirigentes da OAB Nacional, teorias que, no fundo, representam um retrocesso ao atual estágio de civilidade.

Digo dirigentes da OAB por que, como advogado, nunca fui consultado e nem passei procuração para a defesa da Lei Ficha Limpa, como é fácil constatar por este artigo.

A lei, a bem da verdade, busca uma nova espécie de criatura humana, os imaculados.

Vou estudar a hipótese de encontrar um meio de me declarar impedido de votar, sem as sanções que isso implica, e de não ser candidato, pois não voto para santos (só os santos devem ser imaculados) – nem acredito que eles existam na terra – e não tenho perfil apropriado para disputar eleição com imaculados, afinal, tal qual os normais, posso errar sem dolo; mesmo inocente posso ser acusado sem dolo e, pior, posso ser acusado com dolo de quem acusa.

A Lei Ficha Limpa é temerária porque será o alimento de outras leis semelhantes e outras ameaçadoras para as liberdades e garantias. Não tardará para que alguém, por exemplo, cogite da hipótese de proibir o exercício da profissão para jornalistas que são processados por crimes de calúnia, difamação ou injúria ou, quiçá, invente-se uma censura prévia para evitar que os jornalistas processados não sejam tão processados. Enfim, o cardápio é variado e somente alimenta o arbítrio.

A Lei Ficha Limpa tem a marca, em relevo, dos regimes totalitários. É uma forma “amena” de suprimir direitos, não só dos que querem ser candidatos, mas, sobretudo, de quem tem o direito de escolha, diga-se, livre, direta e secretamente.

O quadro desenhado pela Lei é muito perturbador, pois foi assim que, em nome da tutela dos povos contra os “maus”, que foi possível ocorrer a Santa Inquisição, o fascismo, o nazismo, o golpe de 64 e tantas outras brutalidades cometidas contra os povos.

As novas hipóteses de inelegibilidade implicam na execração pública antecipada de quem somente eventualmente poderá ser culpado, afinal, tal qual os normais, repita-se, qualquer um pode errar sem dolo; mesmo inocente pode ser acusado sem dolo e, pior, pode ser acusado com dolo de quem acusa e julga.

E as hipóteses de inelegibilidades criadas pela Lei não podem e nem deveriam ser objeto de lei, pois nem sempre quem é processado por ter cometido uma ilegalidade ou irregularidade deve ser condenado. E isso ocorre frequentemente, sobretudo os agentes públicos.

Interessante notar é que os representantes da sociedade que querem excluir os “processados sem trânsito em julgado” do processo eleitoral não adotam a prática que pregam. Quantos padres acusados de pedofilia a CNBB proibiu, antecipadamente, de ministrar a catequese às crianças católicas? Quantos delinqüentes, estelionatários etc. que advogam a OAB suspendeu preventivamente?

Fico com a causa dos “processados”, dos de “vida pregressa”, e, definitivamente, não embarco na nau que navega para a escuridão da execração pública antecipada de quem somente eventualmente poderá ser culpado.

Criou-se a ditadura dos imaculados.

Repita-se: a hipótese cuida de aplicação, sem juízo definitivo, de sanção político-moral.

É o exercício pleno da cidadania a depender do humor dos promotores, das assembléias, das câmaras etc. e, quando isso ocorre, já é de todos sabido as conseqüências. SAULO RAMOS, no artigo Arquivos da Ditadura, Publicado na Coluna IN VOGA (Revista Jurídica Consulex, ano IX, n°. 192, 15 de janeiro de 2005), dar depoimento que merece referência no presente caso, in verbis:

“Neste abre e não abre os arquivos do governo militar, as entrevistas dos governantes atuais advertindo que os perseguidos, isto é, as vítimas serão mais comprometidas do que os perseguidores, esquerdistas dedos duros, a decisão de um tribunal convocando reunião de ministros e comandantes militares para indicarem onde estão os corpos de guerrilheiros assassinados pelo batalhão Heróis do Jenipapo, pessoas pedindo transferência, militares achando que começou o revanchismo, a lei de anistia foi para os dois lados, gente pedindo paz, deixa disto, já passou, somos irmãos – em toda essa fervura, ninguém diz uma palavra sobre o que mais terrível tivemos naqueles anos de chumbo, segundo definição de um historiador, o Ministério Público.

Quietinho, hoje mais ou menos herói nacional, sem jenipapo, com reais serviços prestados à sociedade e à lei, o Ministério Público não deve desejar que remexam no passado, porque, mais que os militares, seus membros, em grande parte, foram, na época, inquisidores fanáticos, arbitrários, subservientes, submissos à ditadura, terríveis.

Os militares abriam o IPM (Inquérito Policial Militar) e faziam barbaridades sustentadas pelo respaldo jurídico do respectivo Ministério Público. Depois as peças do IPM eram remetidas à Justiça Comum (quando acabaram as auditorias de guerra) e caiam na mão do Ministério Público Estadual, devidamente orientado e instruído pelo militar da área. Denúncias por ter assistido filme da Checoslováquia, por ter lido um livro de conotações esquerdistas, por ser amigo de um primo de um sujeito que era parente de um comunista.

Criaram a doutrina do medo, que até hoje existe de certa forma: ameaçavam os juízes com cassação sem aposentadoria. Atualmente não existe mais a cassação, mas os juízes, por tradição, conservaram o medo. Sobretudo, os federais. Sempre ressalvadas as honrosas exceções.

No caso do assassinato de Wladimir Herzog, nas masmorras do Dói/Codi, o Ministério Público sustentou a tese de suicídio com o maior cinismo. E fez mais: quando foi datilografada a sentença na ação proposta pela viúva, Sra. Clarice Herzog, o Ministério Público requereu mandado de segurança contra o juiz para impedi-lo de ler a sentença no dia marcado. No Tribunal Federal de Recursos um Ministro deu a liminar e me contou, depois, ou a liminar ou a cassação.

A liminar foi mantida até a aposentadoria do juiz, um mês depois. O Procurador da República envolvido ficou uma fera, porque o juiz substituto prolatou a sentença em favor de Dona Clarice. Não teve medo algum.

No caso Panair, o Ministério Público executou a intervenção decretada pelos militares e acabou com a companhia. Praticou todas as ilegalidades possíveis. Quando era muito acintoso o ato contrário à lei vigente, providenciava para que fosse feita outra e os militares baixavam decreto-lei atendendo ao pedido do fiscal da ordem jurídica. Quando a Panair, em processo de falência, demonstrou que seus ativos eram maiores que o passivo, requereu concordata suspensiva para evitar a dilapidação de seu patrimônio entregue ao Ministério Público. A pedido da nobre instituição, o governo baixou o Decreto-Lei n° 669. de 3 de junho de 1969, dispondo que “não podem impetrar concordata as empresas que, pelos seus atos constitutivos, tenham por objeto, exclusivamente ou não, a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou infra-estrutura aeronáutica”. Na medida exata.


Felizmente as nova geração do Ministério Público, tanto o federal, como dos estaduais, melhorou muito, aprendeu um pouco de democracia, acabou entendendo o que é Estado de Direito, tem se conduzido com austeridade no combate ao crime. Mais ainda cai em tentação política quando abusa de suas competências em ações civis públicas e alguns, poucos é verdade, servem a interesses que nada têm que ver com a defesa da lei. O arquivamento dos casos de abusos de policiais militares, noticiados pela Folha, faz, de certa forma, lembrar os velhos tempos. Pode ser que sim, pode ser que não.

Mas se abrirem os arquivos da ditadura, a surpresa maior para os historiadores e famílias das vítimas será a atuação dos Procuradores da República e dos promotores públicos. Os militares, sobretudo os antigos e velhos, são aquilo que nós conhecemos. Gostavam de golpe legal, chamavam juristas para fundamentar seus atos arbitrários, acreditavam piamente estar defendendo a Pátria contra os comunistas e subversivos, que era ético matar a liberdade em nome da segurança contra a ameaça soviética, tinham a cabeça feita pelos Estados Unidos e queriam que tudo fosse praticado dentro da lei, inclusive a tortura e as mortes, embora não tivéssemos lei que as autorizasse. O Ministério Público interpretava a lei de acordo com esse desejo para que a consciência da ditadura dormisse em paz. Se abrirem os arquivos da ditadura, todos vão ter surpresas, menos nós os velhos advogados.

Saulo Ramos
é advogado, foi consultor-geral da República e Ministro da Justiça”

O que torna mais grave a inconstitucionalidade da Lei Ficha Limpa é que ela manda aplicar, sem juízo definitivo, sanção político-moral de subtração de direito fundamental inerente à cidadania.

E a Lei, para piorar tudo do que já é muito ruim, trouxe embutido a criação de um Supremo Tribunal da Execração e da Ignorância com competência para patrulhar os desafetos da Lei Ficha Limpa.

A primeira vítima do Tribunal, como é fácil constatar, foi a Constituição da República.

E alguns membros do Tribunal já foram apresentados ao grande público. A OAB indicou Ophir Cavalcanti; a Rede Globo, Arnaldo Jabor. Faltam as indicações do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – MCCE, da CNBB, da ABRACCI, associações de juízes e de membros de ministério público etc.

Um dos aspectos mais sórdidos e desumanos da Lei Ficha Limpa é que se determina que ela se aplica a fatos passados e possibilita sejam abertos julgamentos já consumados.

Cogitar que isso ocorra é desafiar a Constituição da República, é mutilar a atual constitucional, sobretudo por que a Lei da Ficha Limpa está em sentido oposto aos princípios e garantias constitucionais do devido processo legal substantivo, irretroatividade da lei, da coisa julgada material, do ato jurídico perfeito, princípio da não-surpresa, princípio da confiança, da segurança jurídica, da proporcionalidade e da razoabilidade e da garantia constitucional de que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem sanção sem prévia cominação legal”.

A aplicação da Lei a casos concretos implica que pessoas que cometeram ilícitos penais, civis e administrativos e já “reabilitados” terão os seus processos reabertos tão-somente para acrescentar a sanção de inelegibilidade.

O cidadão se submete a um julgamento, a lei vigente diz que a sanção é apenas a cassação do registro e depois vem uma lei nova e diz: por aquele ato praticado no passado, do qual não decorreu apenas a cassação do registro, agora será aplicada restrição ao direito de cidadania plena. Seria como se o Estado, frente ao cidadão, dissesse: “É o seguinte otário. Agora não vai mais a regra antiga. A regra do jogo mudou, por que a coisa julgada, o ato jurídico perfeito, a Constituição da Republica etc. não valem mais para o teu caso e dane-se”.

Imagine-se um caso concreto ocorrido há mais de dois anos no qual o cidadão foi condenado por captação de sufrágio, com trânsito em julgado a decisão. Nesse caso se cuida de situação fático-jurídica já consolidada, ou seja, ela é imutável até pela via rescisória, seja pela preclusão, seja pela inadmissibilidade de ação rescisória eleitoral (por que incabível esta ação contra decisão que não versa inelegibilidade), seja por que, até a edição da Lei Ficha Limpa, captação ilícita de sufrágio, mesmo com cassação de registro ou candidatura, não implicava em inelegibilidade. Revolver a situação – que não implicou nenhuma outra conseqüência gravosa senão a cassação de registro e multa – para transmudá-la em caso de inelegibilidade é uma espécie de “pegadinha” jurídica teratológica. Verdadeira aberração jurídica se se considerar a atual ordem constitucional.

A Lei Ficha Limpa não pode sobrepor-se aos preceitos da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), até por que todos eles também estão abrigados no texto da Constituição da República, que estatuem que “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior” (art. 2. § 2º. da LICC); que “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.” (art. 5º. da LICC); que “A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada” (art. 6º. da LICC); e que “Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou” (art. 6º., § 1º., da LICC).

A não ser que tenha implicitamente revogado a LICC, a Lei Ficha Limpa também é incompatível com essa norma.

Expressa o ministro Marco Aurélio: “Aprendi desde cedo que no sistema brasileiro o direito posto visa a evitar que o cidadão tenha sobre a sua cabeça uma verdadeira espada de Dâmocles. Aprendi que a lei não apanha fatos passados”.

Miguel Reale ensina que “(…) nada mais errôneo do que, tão logo promulgada uma lei, pinçamos um de seus artigos para aplicá-lo isoladamente, sem nos darmos conta de seu papel ou função no contexto do diploma legislativo. seria tão precipitado e ingênuo como dissertamos sobre uma lei, sem estudo de seus preceitos, baseando-nos apenas em sua ementa …”.

O ministro Eros Grau arremata: “(…) não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços. Tenho insistido em que a interpretação do direito é interpretação do direito, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se interpreta textos de direito, isoladamente, mas sim o direito – a Constituição – no seu todo.” (Voto proferido na ADI 1.923).

É impossível não afirmar, como tem atestado alguns doutrinadores, que fazer a Lei Ficha Limpa alcançar fatos passados é antirrepublicano, antidemocrático, porquanto a regra é a irretroatividade de normas punitivas, além, evidentemente, de vulnerar, “sem mais não poder”, o devido processo legal substantivo (falta de proporcionalidade e razoabilidade de medidas gravosas).

Da mesma forma não há como afastar a incidência dos princípios da confiança, da segurança jurídica e da não-surpresa. Não há como tornar efetivo e presente sanção eleitoral grave, a inelegibilidade, aquilo que não era ao tempo do ocorrido.

Ademais, embora despiciendo alegar, não se pode deixar de considerar que os casos concretos já julgados cuidam de situação fático-jurídica fechada, ou seja, não é um processo que está em andamento, aberto.

Repita-se: tais casos cuidam de situação jurídica material e processualmente estabilizada, sem possibilidade de alteração do conteúdo da decisão transitada em julgado.

E se for para reabrir casos passados outra conclusão não será a de que isso ocorrerá, evidentemente, por cima da Constituição da República, porquanto em desarmonia com os princípios do devido processo legal substantivo, irretroatividade da lei, da não-surpresa, da confiança, da segurança jurídica, da proporcionalidade, da razoabilidade e das garantias constitucionais da coisa julgada material, do ato jurídico perfeito e de que “não há ilícito sem lei anterior que o defina, nem sanção sem prévia cominação legal”.


Em desarmonia, outrossim, com os princípios da intervenção mínima e da preponderância dos direitos humanos.

E como compatibilizar a Lei Ficha Limpa com a segunda parte do artigo XI da Declaração Universal dos Direitos Humanos que preceitua que “Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.”?

A essa altura, para que eu não me sinta um lunático, vale lembrar algumas ponderações do ministro do STF na decisão vinculante ADPF 144:

Celso de Mello
“A repulsa à presunção de inocência mergulha suas raízes em uma visão incompatível com o regime democrático”
 

“Todos são culpados até que se prove o contrário é um postulado de mentes autoritárias”

Gilmar Mendes
“Cada vez mais nós sabemos que o Direito deve ser achado na lei e não na rua”

“A população passa a acreditar que a lista (com os nomes dos candidatos que respondem a processos) será a solução de todas as mazelas, mas a missão dessa Corte constitucional é aplicar a Constituição ainda que essa decisão seja contrária ao pensamento da maioria”

“Essa fórmula mágica produziria uma hecatombe, injustiças em série”

“Isso era contrário do que se pressupõe na democracia crítica, porque (aquela democracia) era totalitária e instável, portanto extremista e manipulável”

Cezar Peluso
“A humanidade não ganha coisa alguma com a condenação de um inocente”

“A pecha de criminalidade é a mácula mais grave que se pode imputar a uma pessoa, todas as outras são toleráveis em certos limites” 

“Neste caso, nós decaímos do terreno da juridicidade e entramos naquele terreno, em que se chama do conflito entre a racionalidade jurídica e a irracionalidade da opinião pública, que é guiada por pulsões primitivas incendiadas por veículos de mídia, ávidos do sensacionalismo”

“Dependendo da pessoa do juiz, da sua cultura, das suas circunstâncias históricas, dos seus antecedentes, do seu bom humor, tudo aquilo, enfim, que compõe a subjetividade que a Constituição não pode suportar”.

Marco Aurélio
“Deram uma esperança vã à população leiga e, sobretudo, muito trabalho ao relator deste processo”

“Talvez a própria AMB pudesse evitar o fenômeno (da esperança vã na população leiga). Veio a juízo, quem sabe, para ter uma consagração maior”

“A Constituição colou a necessidade de disciplina mediante lei complementar”

“Há um compromisso muito sério do STF com princípios, com a arte de afastar o justiçamento”.

Eros Grau
“O que caracteriza o direito moderno é a substituição do subjetivismo pela objetividade, dos valores pelos princípios. A ética do direito moderno é a ética da legalidade”

“O estado de sítio instala-se entre nós no momento em que recusamos aos que não sejam irmãos, amigos e parentes o direito de defesa, o direito de ser eleito, combatendo-os como se fossem parcelas fora da Constituição”

Carmen Lúcia
“Somos escravos da Constituição”

Menezes Direito
“Uma ordem normativa justa é aquela em que os indivíduos impuseram a eles mesmos essa ordem”

É pertinente lembrar os ensinamentos do ministro Celso de Mello de que os princípios constitucionais irradiam para todo o sistema normativo.

Não extrai outra conclusão senão a de que a Lei Ficha Limpa é incompatível com artigo 1°., caput, II, III e V, e parágrafo único; artigo 3°., IV; artigo 4°., II; artigo 5°., caput, incisos III, X, XXXVI, XXXVII, XXXIX, XL, XLI, LIV, LV e LVII; artigo 14; artigo 15, incisos III e V, e os princípios do devido processo legal substantivo, irretroatividade da lei, da não-surpresa, da confiança, da segurança jurídica, da proporcionalidade, da razoabilidade e das garantias constitucionais da coisa julgada material, do ato jurídico perfeito e de que “não há ilícito sem lei anterior que o defina, nem sanção sem prévia cominação legal”, todos da Constituição da República.

Desgraçada, lastimável e miseravelmente a Lei Ficha Limpa rompeu o controle dos poderes legislativo e executivo da União. É esperar que o Supremo Tribunal Federal cumpra a missão de guardião da Constituição da República.

Finalmente, por absoluta incompetência de expressar o mal que representa a Lei Ficha Limpa para o Estado Democrático de Direito e para a cidadania, e na esperança e certeza que o Supremo Tribunal Federal não permitirá que parte da Constituição da República seja mutilada e revogada pela Lei Ficha Limpa, lança-se mão da poesia de Eduardo Alves da Costa e Bertold Brechet:

Eduardo Alves da Costa
“(…)
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
(…)”

Bertold Brechet
“Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro.

Em seguida levaram alguns operários
Mas eu não me importei com isso
Eu também não era operário.

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável.

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei.

Agora estão me levando
Mas já é tarde
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.”

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