Decisão iminente

Julgamento sobre Lei de Anistia tem novas partes

Autor

28 de abril de 2010, 5h06

A lei que perdoou, em 1979, crimes políticos cometidos durante os anos do regime militar no Brasil, está na pauta desta quarta-feira (28/4) no Supremo Tribunal Federal. O ministro Eros Grau, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, leva seu voto sobre a Lei 6.683, a Lei de Anistia, sob a visão da atual Constituição Federal. A ação, proposta em 2008 pela Ordem dos Advogados do Brasil, questiona se o perdão de que fala a norma pode se aplicar a crimes comuns — sequestros, torturas, estupros e assassinatos — praticados por agentes do Estado nos porões da ditadura.

No último dia 12 de abril, a Associação Democrática e Nacionalista de Militares teve aprovado o pedido de ingresso na ação como amicus curiae, e terá direito a fazer sustentação oral no Plenário do Supremo, como “amiga da parte”. Apesar de serem agentes das Forças Armadas os principais alvos a serem atingidos se aprovada a revisão, a entidade defende a não inclusão de crimes comuns entre os anistiados pela lei de 1979. A associação se diz representantes de militares que discordaram do golpe militar de 1964 e foram punidos por isso. 

Dois dias antes, foi a vez da Associação Brasileira dos Anistiados e do Centro pela Justiça e o Direito Internacional serem aceitos no posto. Em fevereiro, a Associação dos Juízes para a Democracia ganhou o mesmo direito. A entidade colheu em seu site, até o último dia 23, 17.944 assinaturas contrárias à anistia aos militares.

A Anistia Internacional também está acompanhando o julgamento. Em manifesto, a entidade, sediada em Londres, afirma esperar que "o Supremo Tribunal do Brasil reconheça que investigar e julgar os responsáveis por esses crimes é algo essencial para que se assegure a justiça, a verdade e a reparação para as vítimas e para seus familiares, além de colocar o país em sintonia com os diversos tratados internacionais dos quais é parte".

Em discurso feito nesta segunda-feira (26/4) no Senado federal, o senador Pedro Simon (PMDB-RS) defendeu a opinião da OAB, de que os crimes cometidos por militares não foram políticos, mas comuns, o que torna os agentes culpáveis perante a Justiça. “O Brasil é o único país da América Latina que ainda não julgou criminalmente os homens que se excederam na ditadura, torturando e matando”, disse. “São crimes que não podem, portanto, ser objeto de anistia ou autoanistia.”

Segundo ele, o fato de muitos dos agentes serem já aposentados não acaba com a necessidade de pagarem pelos crimes. “Não é pelo prazer da caça, mas pelo dever moral que a civilização tem de lembrar a todos que os seus crimes não se apagam, não se perdoam”, disse, lembrando dos julgamentos de nazistas feitos pelo Tribunal de Nuremberg, após o fim da Segunda Guerra. O tribunal, que puniu apenas criminosos do lado perdedor, não julgou nenhum responsável norteamericano pelo lançamento de duas bombas atômicas sobre território japonês, que mataram milhares de civis.

Clique aqui para ler o pedido da Associação de Militares.
Clique aqui para ler o manifesto da Anistia Internacional.

Leia o discurso do senador Pedro Simon

Senhor Presidente,

Senhoras Senadoras e Senhores Senadores:

Em janeiro de 1975, a polícia política do Chile prendeu uma jovem médica pediatra de 24 anos.  

Eram tempos difíceis. As tropas do general Pinochet tinham derrubado o governo constitucional de Salvador Allende dois anos antes.

No ano seguinte, o pai da jovem médica, um brigadeiro leal ao presidente deposto, tinha sido preso e, ainda detido, morreu do coração, ao não resistir ao sofrimento de tantos camaradas.

A jovem médica sobreviveu ao pai, à prisão e às torturas que lá sofreu, durante um ano, até se exilar na Austrália.

Essa mesma jovem médica estudou mais, aperfeiçoou seus conhecimentos, e retornou ao Chile de Pinochet, o homem que levou seu pai à morte, e engajou-se na política, na luta pela democracia.

Ela venceu. E tanto convenceu que, 31 anos após sua prisão e as torturas que sofreu, Michelle Bachelet, a jovem médica, tornou-se presidente do Chile por vontade soberana do povo chileno.          

Apesar de tanto sofrimento, tanta dor, Bachelet nos legou uma frase de profunda sabedoria, de elevado teor humanista:  "Só as feridas lavadas cicatrizam".

Senhor Presidente,

Senhoras Senadoras e Senhores Senadores:  

Na próxima quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal terá uma oportunidade de reconciliar o país com sua história, de ajustar a memória à verdade, de reafirmar a autoestima de uma Nação que respeita seu passado sem medo de seu futuro.

A Suprema Corte brasileira terá, enfim, a chance de lavar nossas feridas e permitir a cicatrização de uma chaga que ainda sangra, dói e machuca.

Após dois anos, o STF julgará, enfim, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 153, proposta em outubro de 2008 pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

O que pede a OAB é simples: que o STF interprete o Artigo 1° da Lei da Anistia, declarando, de forma clara e definitiva, que a Anistia não se aplica aos crimes comuns praticados por agentes da repressão durante o regime militar que manteve o país sob ditadura entre 1964 e 1985.

Tortura, assassinato e desaparecimento forçado são crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis, conforme tratados internacionais assinados pelo Brasil e nunca colocados em prática aqui dentro.

São crimes que não podem, portanto, ser objeto de anistia ou autoanistia.

Não são crimes políticos e nem conexos, e assim não podem se nivelar às punições dadas a tantos brasileiros que, condenados às prisões ou ao exílio, acabaram beneficiados em 1979 pela Lei de Anistia que os abrigava.

Lei nenhuma, porém, no Brasil ou no mundo, acolhe a tortura, ou a reconhece.

O Brasil é o único país da América Latina que ainda não julgou criminalmente os homens que se excederam na ditadura, torturando e matando.

Ao longo de 21 anos de regime autoritário, vicejou aqui um sistema repressivo estimado em 24 mil agentes que, por razões políticas, prendeu cerca de 50 mil brasileiros e torturou algo em torno de 20 mil pessoas — uma média de três torturas a cada dia de ditadura. Que não foi branda, nem curta, nem clemente.

"Anistia não é amnésia", disse o presidente da OAB, Cezar Britto, que apresentou a ação ao Supremo.

Líderes de várias correntes políticas reconhece que tortura não é crime político.

É muito pior do que isso: é um grave atentado à dignidade da pessoa humana, ontem, hoje e sempre. Torturadores e criminosos que atentaram contra a vida e a dignidade não são esquecidos em todos os lugares, em todos os tempos.

É por isso que, até hoje, um ou outro criminoso de guerra nazista ainda é caçado e preso, embora tenha 80 ou 90 anos de vida. Não é pelo prazer da caça, mas pelo dever moral que a civilização tem de lembrar a todos que os seus crimes não se apagam, não se perdoam.

O Tribunal de Nuremberg, no julgamento de criminosos da Segunda Guerra, ouviu 240 testemunhas em 285 dias de julgamento, gerando um sumário de 4 bilhões de palavras para uma acusação final de 25 mil páginas contra os 18 principais chefes do Reich nazista. Os juízes negaram o argumento da defesa que eles apenas "cumpriam ordens".

O juiz americano Francis Biddle fulminou esta tese com uma frase imortal: "Os indivíduos têm deveres internacionais a cumprir, acima dos deveres nacionais que um Estado particular possa impor".

Ficou assim encravado na consciência moral do mundo que todos nós somos responsáveis pelos atos que praticamos. Ninguém é inocente para "cumprir ordens" contra a lei, a moral, a ética e a verdade.

Ninguém, neste país, tinha ordens para torturar. Nem mesmo o AI-5, a lei mais dura do período mais sangrento do regime de 64, mencionava ou liberava o uso da tortura. Os torturadores têm algo em comum: eles têm vergonha do que fizeram.

É um crime, portanto, sem pai nem mãe.

Anistia não é esquecimento, é perdão, ensinam os juristas que não escamoteiam as palavras. Não se pode esquecer o que não se conhece. Também não se pode perdoar o que não foi punido — privilégio imaculado de todos os torturadores que ainda existem no país.

O nazismo não merecia a amnésia, muito menos a anistia.

A tortura, também.

Nossos vizinhos de Cone Sul, que padeceram ditaduras tão violentas como a nossa, acertam suas contas com o passado. A Justiça argentina neste momento processa 263 militares e policiais por crimes contra direitos humanos.

Na Argentina, os generais Jorge Rafael Videla e Reynaldo Bignone cumprem longas penas de prisão pelo regime de tortura que comandaram.

No Uruguai, está preso o civil que deu o golpe em 1973,  Juan Maria Bordaberry, e o presidente da ditadura, o general Gregório Alvarez, condenado, em 2009, a 25 anos de prisão pela morte de 37 opositores. São três mortes a menos do que os 40 presos políticos mortos durante os 40 meses que o DOI-CODI da rua Tutóia foi comandado pelo major Carlos Alberto Brilhante Ustra, no Governo Médici. Hoje coronel, na reserva, Brilhante Ustra não teve os percalços de vida de seus colegas argentinos e uruguaios. Vive bem, tranquilo, aposentado, aqui mesmo em Brasília.  

O historiador americano Edward Peters, professor da Universidade da Pensilvânia, advertiu: "O futuro da tortura está indissoluvelmente ligado ao futuro dos torturadores".

No berço da tortura não punida nasceu a impunidade da violência não resolvido do Brasil, antes na ditadura, agora na democracia.

Ou seja, a impunidade do torturador acaba garantindo a perenidade da tortura e de sua filha dileta, a violência.

O Brasil que evita punir ou sequer apontar seus torturadores acaba banalizando a violência que transborda a ditadura e vitimiza o cidadão comum em plena democracia, principalmente nas duas maiores capitais, São Paulo e Rio.

O esquecimento da história é o berço da impunidade. E a impunidade é ancestral da violência. Pais cuidadosos dos delinquentes que puxam gatilhos, ou que arrastam inocentes pelas ruas, esfolados até a morte. O João Hélio, menino inocente, preso por um cinto que se diz de segurança, é, igualmente, vítima da impunidade de quem prendeu outros tantos nomes nos paus-de-araras, também em nome da segurança. Um, torturador, outro, torturado. Ambos, porém, inesquecíveis.

A política silenciosa é cúmplice, portanto, da impunidade e de seus filhos diletos: a violência, a corrupção e a barbárie. É a construção de uma cultura, que vem de longe, desde quando se torturavam escravos e se dizimavam índios, e que chega aos nossos dias, contra quem ainda não conseguiu desbravar o “novo-oeste” da globalização e do mercado.

Quem esquece a história é cúmplice nos mais de cinquenta mil assassinatos, por ano, no Brasil. Quinhentos mil numa única década! É como se uma Niterói sumisse do nosso mapa, a cada dez anos. Vítimas dos descendentes da impunidade. E dos cúmplices, que se escondem sob o manto do silêncio.

Nos 24 anos seguintes à anistia (1979-2003), armas de fogo mataram no Brasil 550 mil pessoas — 44% delas jovens entre 15 e 24 anos.

Este Brasil varonil, pacífico e cordial, viu morrer quase tanta gente quanto os Estados Unidos durante os cinco anos que lutou na Segunda Guerra Mundial (625 mil soldados).

Num único ano, 2003, segundo dados do Ministério da Saúde, assassinaram no Brasil uma população civil (51 mil pessoas) quase tão grande quanto as perdas dos Estados Unidos (58 mil) ao longo dos 16 anos da Guerra do Vietnã.

Esta mesma impunidade, que nasce nos quartéis, sobrevive hoje, portanto, nas ruas.

A tortura é verdade. A verdade sob tortura é mentira.

Esconder da história a verdade é a maior de todas as mentiras. Ou cumplicidade, se repetida a mesma história. A história é, normalmente, contada pelos vencedores. Neste caso, pelos torturadores. Quem teima em esquecer essa história, é cúmplice dela. É protagonista, do mesmo lado.

O esquecimento é uma forma de perdão. Mas, existem fatos que são imperdoáveis. Portanto inesquecíveis.

Como perdoar, por exemplo, os autores do holocausto? Esquecendo o próprio holocausto? Negando-o, como querem alguns? Como negar as fileiras e os amontoados de corpos esquálidos nos campos de concentração nazista? Ou do genocídio de Sabra e Chatila? Como haver misericórdia em tiros? Ou em gás?

É o esquecimento, artéria principal da impunidade, a razão principal da repetição.            

Punir os torturadores, de hoje e de ontem, não é revanchismo.

É uma obrigação moral e ética de um país que deve olhar sem medo, para trás, para encarar sem receios o caminho que tem pela frente.

Vamos lavar nossas feridas.

Que isso comece nesta quarta-feira, pela histórica decisão que será dada pelo STF, acatando o pedido da OAB e os clamores de um país consciente de seu passado e confiante em seu futuro.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!