Transação penal

Discursos moralizantes dominaram audiência pública

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23 de abril de 2010, 17h07

Recentemente, os autores tiveram a oportunidade de vivenciar uma experiência profissional no mínimo curiosa e que suscitou esta breve reflexão: a participação, na condição de defensores de um cidadão, da assim denominada “audiência coletiva” para proposta de transação penal no âmbito do Juizado Especial Criminal.

Muito além dos mais variados aspectos jurídicos imbricados na questão[1], e que poderiam servir perfeitamente de objeto de artigo próprio, o que mais chamou a atenção foi o caráter descaradamente paternalista — para não dizer proselitista — do discurso de agentes públicos, principalmente da representante ministerial.

Tentar-se-á, nas próximas linhas, traçar um retrato fiel de como a audiência se desenrolou.

Naquela ocasião, o Plenário ‘10’ do complexo criminal Min. Mário Guimarães, no bairro da Barra Funda (SP) apinhou-se de mais de cinquenta “autores do fato”, acompanhados (apenas alguns) de seus respectivos advogados. Estavam presentes, também, funcionários, Defensores Públicos e representantes de diversas instituições de recuperação de dependentes químicos.

Ali, pouco importavam as circunstâncias do crime supostamente cometido, a quantidade da droga apreendida ou até mesmo o tipo de substância com que o “viciado” tinha sido flagrado. Para fumadores de maconha, cheiradores de pó e usuários de crack, a proposta era a mesma: dois meses de comparecimento a reuniões em instituições que combatem socialmente o uso de entorpecentes.

Interessante notar, inclusive, que acompanhávamos um rapaz surpreendido com uma ponta de cigarro de maconha no bolso (0,1g – um decigrama!) e, ao nosso lado, uma garota que teria plantado um pé de cannabis em sua residência também aguardava junto de seu advogado. A proposta? Exatamente a mesma.

Logo na entrada, antes de se iniciar os trabalhos, panfletos foram distribuídos conscientizando a todos, inclusive os advogados, de que drogas fazem mal.

Passados alguns minutos, a Promotora de Justiça ali oficiante se levanta, pega o microfone, olha para o seu rebanho e solta: “Deus me colocou na vida de vocês”. Explicou que seria feita uma proposta de transação penal aos ali presentes, explicou os efeitos jurídicos da aceitação ou não daquele “benefício”, explicou até que a sua aceitação não era sinônimo de culpa, mesmo porque as reuniões propostas seriam engrandecedoras para qualquer um. Até sua história de vida, com um parente viciado em drogas que se salvou graças a ela ganhou destaque. E passou o microfone.

Um ex-adicto veio e contou sua triste e emocionante história de queda e superação. Após, uma ex-adicta explicou como sua vida mudou depois que conheceu o “narcóticos-anonimos”. Outra apareceu e comoveu ao contar sua biografia como mãe de um usuário. E assim foi, um a um, no total de salvo engano sete auto-biografias.

Para completar, outro choque: um senhor alertou a todos que beber faz mal, e que as reuniões serviriam inclusive para tabagistas inveterados. Sim, cigarro! Foi efusivamente aplaudido. A representante do Ministério Público até se levantou para ovacioná-lo de pé.

Cabe salientar que a longa palestra foi dirigida não apenas aos “autores do fato”, senão a absolutamente todos os presentes, incluindo os advogados e o público em geral.

Dada a palavra à Defensora Pública ali oficiante, com um discurso bonito, incentivou a aceitação da transação. Tranquilizou, inclusive, aqueles que estavam sem advogado ao dizer que a Defensoria havia lido todos os processos e, em todos eles, havia suporte para uma ação penal. Se leu ou não, impossível dizer, até porque, no caso específico de nosso cliente — antes mesmo de haver advogado constituído —, ao que parece, não constava de nenhuma folha qualquer manifestação, ou vista sequer, à Defensoria.

E começou-se a chamar um a um, ou melhor, número a número, já que senhas haviam sido distribuídas anteriormente, para assinarem o termo que dizia que aceitavam o benefício proposto pela benevolente representante do povo. E de D’us.

Sim, somente após todos os discursos e ensinamentos morais e cristãos é que se abriu a possibilidade para nosso constituinte, número 42, manifestar seu desejo por não aceitar a transação penal.

Afora o despautério da “audiência coletiva” em si, o que mais impressionou foi seu nítido caráter paternalista. A prática que até então era utilizada, ainda que com austeridade, por determinados representantes do Poder Executivo (Secretarias Anti-Drogas, Conselhos de Entorpecentes etc.), passou a ser usada também por membros do Poder Judiciário, agora direcionada aos jurisdicionados.

Por um lado, tem-se a certeza de que as investiduras proselitistas não tiveram como escopo a angariação de votos. Foram feitas com base no verdadeiro entendimento e fé da Representante do Parquet. Por outro, é preocupante que palavras como “atipicidade”, “insignificância”, “individualização” e “imputabilidade” tenham dado lugar a longas palestras ministradas de forma compulsória a todos os presentes antes mesmo de oferecida — e aceita — a transação penal.

Isso sem falar no preocupante discurso de se inculcar comportamentos politicamente corretos — como o combate ao fumo ou ao álcool (substâncias lícitas, diga-se de passagem) — justamente num local onde se deveria solucionar conflitos de interesses (Judiciário).

Não se ignora o nítido caráter de Justiça Terapêutica que a Lei 11.343/06 buscou instituir ao tratar a questão do usuário de drogas. No entanto, nos parece que há certa extrapolação do papel dos agentes do sistema judiciário ao promoverem tais palestras. Ainda mais quando se aproveita a ocasião para despejar sobre os ouvintes palavras de ordem moralistas e até religiosas, num ambiente que se reputa laico.

 

 


[1] Conforme já reconhecido pela doutrina: a apresentação de uma proposta única para todos os mais de cinquenta autores do fato ali reunidos; a ausência de análise das especificidades de cada caso concreto; cota ministerial e despacho de designação de audiência exarados de forma padronizada, sem qualquer exame da tipicidade objetiva; a discutível constitucionalidade de uma norma jurídica que prevê a aplicação de uma pena sem processo, a transformação da persecução penal, no perdão da palavra, em verdadeiro “mercado de peixe”, entre tantos outros.

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