Interesses econômicos

Ação Civil Pública é refém do patrimonialismo

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17 de abril de 2010, 6h00

Há cerca de dez anos, Ada Pellegrini Grinover [1], renomada jurista, advertia que a Ação Civil Pública encontra-se refém do autoritarismo brasileiro. Na época, a jurista problematizou os reflexos da edição das Medidas Provisórias 1.570 de 26.03.1997 e 1.798-1 de 11.02.1999 sobre a tutela dos direitos coletivos, alertando que essas investidas do Poder Executivo diminuíam a eficácia da Ação Civil Pública, pois limitavam o acesso à justiça, a compreensão do momento associativo e, ainda, reduziam o papel do Poder Judiciário.

Recentemente, aos 17 de março de 2010, a rejeição do Projeto de Lei 5.139 de 2009 pela Câmara dos Deputados remete-nos ao alerta outrora feito e nos impõe questionar os novos moldes do cativeiro no qual a Ação Civil Pública, bem como as demais ações coletivas, se encontra: a cooptação política.

O PL 5.139 de 2009 é fruto do trabalho de uma comissão especial [2] designada no final de 2008 para formular uma nova lei de Ação Civil Pública. Referida comissão foi presidida pelo Deputado Rogério Favreto (Secretário da Reforma do Judiciário), teve como relator Luiz Manoel Gomes Junior e contou com colaboração de outros 22 juristas, todos escolhidos dentre as várias áreas e carreiras jurídicas que atuam e estudam o direito e o processo coletivo (membros do Ministério Público, da Magistratura, da Defensoria Pública, da Advocacia Geral da União, da Ordem dos Advogados do Brasil, entre outros).

O projeto [3] foi protocolado no Ministério da Justiça em abril de 2009, onde recebeu o aval do Ministro Tarso Genro em sua íntegra. Encaminhado à Casa Civil, o anteprojeto sofreu alterações, algumas delas com o nítido propósito de limitar sua potência originária e privilegiar o Estado enquanto possível sujeito passivo em ações coletivas. Após, o anteprojeto foi encaminhado ao Congresso Nacional, onde tramitou na Câmara dos Deputados sob o número 5.139/2009, sob relatoria do Deputado Antônio Carlos Biscaia (PT/RJ). Nessa casa, o então projeto de lei foi objeto de discussão em audiência pública realizada em julho de 2009, ocasião em que foi dada oportunidade para os membros da comunidade manifestar suas respectivas opiniões.

Cumpre salientar que os deputados federais, no exercício de suas funções e, sobretudo, atuando em nome dos cidadãos que o elegeram com o único e exclusivo propósito de representação democrática, apresentaram várias emendas ao anteprojeto inicial, a partir dos quais teve início sucessivos debates na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).

A opção em editar uma nova lei de Ação Civil Pública deve-se pelo menos a um motivo: a aprovação de um código é resultado de anos de tramitação e articulação política, já a edição de uma lei ordinária é procedimento mais célere. Esse fator temporal, somado à contingência imediata de edição de uma lei voltada às nuances específicas que os conflitos metaindividuais suscitam, por si já justificariam a edição de uma nova lei.

É imperioso notar que a preocupação que medeia todos esses esforços não é outra senão a efetivação dos direitos ou interesses coletivos, através de um aprimoramento da Ação Civil Coletiva como procedimento comum coletivo, ademais, prima-se por uma oxigenação processual hábil a tutelar adequadamente essa tônica molecular de direitos. Os estudos que antecederam a tramitação legislativa do PL 5139/2009 conjugaram grandes esforços. Inúmeros estudiosos se debruçaram sobre a temática e, já nos idos de 2003, a Faculdade de Direito da USP capitaneou os debates sobre a codificação do direito processual coletivo no Brasil, sendo indiscutível ainda a colaboração do Código Modelo de Processos Coletivos para a Ibero América, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e dos estudos da UNERJ/UNESA.

Em recente artigo, Luiz Manoel Gomes Junior e Rogério Favreto analisaram os principais aspectos relacionados ao PL 5.139/2009, e cunharam a expressão que muito bem definiu o propósito da nova lei: instituir um Sistema Único Coletivo. A nova Lei de Ação Civil Pública passaria a viger como uma lei geral de ações coletivas, verdadeiro sistema a orientar a tutela dessa gama metaindividual de direitos e interesses. Segundo os autores [4] “Todas as normas que disciplinam a aplicação dos direitos coletivos […] formam um único sistema interligado de proteção dessas espécies de direitos (difusos, coletivos e individuais homogêneos). Deve assim ser reconhecida a existência de um Sistema Único Coletivo, ou seja, os diversos textos legais formam todo um sistema interligado. Havendo a lacuna ou ausência de disciplina normativa em um texto legal, aplica-se a norma de outra lei pertencente ao Sistema Único Coletivo, somente podendo ser invocado o Código de Processo Civil na ausência de qualquer disciplina específica ou caso haja expressa previsão legal”.

A proposta era tornar a Nova LACP regra geral, disciplinadora de todo o sistema único coletivo, e, salvo regra específica, terá aplicação ampla de forma integradora e sistemática.

O PL 5.139/2009 inovou ao arrolar uma principiologia [5] própria a viger sobre as ações coletivas, e também ao ampliar os direitos coletivos tuteláveis pela ACP, que passaria a abranger: I – do meio ambiente, da saúde, da educação, do trabalho, do desporto, da segurança pública, dos transportes coletivos, da assistência jurídica integral e da prestação de serviços públicos; II – do consumidor, do idoso, da infância e juventude e das pessoas portadoras de deficiência; III – da ordem social, econômica, urbanística, financeira, da economia popular, da livre concorrência, do patrimônio público e do erário; IV – dos bens e direitos de valor artístico, cultural, estético, histórico, turístico e paisagístico; além de quaisquer outros interesses ou direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos (inciso V).

Não obstante os inúmeros avanços que poderíamos citar em torno da ACP que a nova lei poderia propiciar, a mesma foi rejeitada pela Câmara dos Deputados, em votação de 17 contra 14. Segundo Ada Pelegrini Grinover, em audiência pública do Senado realizada aos 26 de março de 2010 no Tribunal de Justiça de São Paulo, a rejeição do PL foi objeto de recurso interposto por Deputados na Câmara, logrando submeter o mesmo ao plenário da Casa. Aliás, importante ressaltar que a rejeição do PL, caso confirmada em definitivo, levou a jurista a sugerir à Comissão encarregada de elaborar o anteprojeto de novo Código de Processo Civil, que considere os estudos realizados até então em termos de processo coletivo, pois trata-se de pesquisa e elaboração séria, comprometida, e realizada por juristas que exerceram com responsabilidade o múnus público de elaboração do PL.

A comissão de juristas encarregada de elaborar o Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil foi instituída pelo Ato 379 de 2009, do presidente do Senado Federal, e é presidida pelo Ministro Luiz Fux e conta com a ilustre relatoria de Tereza Arruda Alvim Wambier. Segundo o Ministro, em texto inscrito no encarte distribuído na própria audiência pública, os estudos da comissão encaminham para a propositura de um “incidente de coletivização dos denominados litígios de massa, o qual evitará a multiplicação das demandas, na medida em que o seu reconhecimento numa causa representativa de milhares de outras idênticas, imporá a suspensão de todas, habilitando o magistrado na ação primeira, dotada de amplíssima defesa, com todos os recursos previstos nas leis processuais, proferir uma decisão com largo espectro, definindo o direito controvertido de tantos quantos se encontrem na mesma situação jurídica”.

A opção em deixar o tratamento processual coletivo em instrumento legal diverso do civil parece ser a mais acertada. As aspirações, a principiologia, a legitimação, o objeto, enfim, os contornos das ações coletivas não se coadunam com o tratamento individual civil, merecendo, mesmo, tratamento apartado. Nesse sentido, a rejeição do PL 5.139/2009 configura retrocesso. Lamentável.

Não conseguimos acessar o voto vencedor [6], mas, conforme noticias veiculadas, um dos argumentos que justificaram a rejeição do projeto foi a “ausência de participação popular na elaboração do projeto de lei”. Ora, o que são os nobres deputados federais senão representantes do povo brasileiro? Em uma democracia representativa – delegativa, diga-se de passagem – os deputados e senadores atuam como representantes dos cidadãos, dos Estados. Sua atuação através das discussões suscitadas na Comissão de Constituição e Justiça não seria um veículo hábil a efetivar a participação popular?

Outro fato que não pode ser ignorado: houve audiência pública que teve por objeto a discussão do PL, o que viabilizou a discussão por vários segmentos da sociedade sobre as mudanças processuais pretendidas. Quanto à comissão que elaborou o anteprojeto original, esta contou com juristas sérios, renomados, todos preocupados com a efetividade do processo coletivo. Quantas leis foram editadas contando com tamanha preocupação democrática?

Esses fatos, somados ao de que houve uma manifestação das Confederações representativas de vários setores da indústria (interesses particulares, privados) pela não aprovação do PL, remete-nos a indagar: estarão as ações coletivas submetidas a uma nova espécie de seqüestro? Estará a ACP refém do patrimonialismo brasileiro? Será que nossas leis estão sujeitas ao crivo de um Legislativo cooptado?

Nesse sentido, as obras de Raymundo Faoro [7] e Simon Schwartzman [8] nunca se mostraram tão atuais e relevantes: notamos a latência de um legislativo que confunde seu cargo (público) com seus propósitos (privados, eleitoreiros), traço patrimonialista típico, e, ainda, a caracterização do “velho e atual” fenômeno da cooptação política brasileira. Schwartzman sugere este fenômeno refere a um sistema específico de participação política que se caracteriza por ser débil, dependente, controlado hierarquicamente ou “de cima para baixo”.

O fenômeno da cooptação é estudado por outros dois importantes autores, cuja relevância leva-nos a deles nos ocuparmos neste instante. Luiz Werneck Vianna [9] afirma refletir, a cooptação política, a lógica do “conservar-mudando”, ou seja, a dita “conservação” para bem cumprir o seu papel necessita reivindicar o que deveria consistir no seu contrário. Raymundo Faoro, por sua vez, conceitua a cooptação como sendo aquele fenômeno em que o sistema político vigente coopta as demais lideranças políticas para então colocá-las a seu serviço. Faoro vai além, afirmando que em nosso Estado a responsabilidade em celebrar a cooptação recai sobre uma classe determinada: o estamento burocrático.

É triste verificar a perpetuação do patrimonialismo brasileiro.

Não nos iludamos. O PL foi rejeitado porque não atendeu a contento os interesses econômicos predominantes em nossa sociedade. Que a participação popular nos perdoe, mas não haverá voz que entoe suas aspirações. Assistimos, pois, a continuação da marcha dos espertalhões [10].


NOTAS

[1] GRINOVER, Ada Pellegrini. A Ação Civil Pública refém do autoritarismo. In Revista de Processo. Ano 24. Out-dez/2009, nº 96. São Paulo: Revista dos Tribunais. P.28 a 36.

[2] O Ministério da Justiça instituiu pela Portaria nº2.481/08, uma Comissão Especial com a finalidade de apresentar uma proposta de readequação e modernização da tutela coletiva, com a seguinte composição: Rogério Favreto, Secretário de Reforma do Poder Judiciário, que a presidiu, Luiz Manoel Gomes Junior, encarregado da relatoria, Ada Pellegrini Grinover, Alexandre Lipp João, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, André da Silva Ordacgy, Anizio Pires Gavião Filho, Antonio Augusto de Aras, Antonio Carlos Oliveira Gidi, Athos Gusmão Carneiro, Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida, Elton Venturi, Fernando da Fonseca Gajardoni, Gregório Assagra de Almeida, Haman de Moraes e Córdova, João Ricardo dos Santos Costa, José Adonis Callou de Araújo Sá, José Augusto Garcia de Souza, Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Luiz Rodrigues Wambier, Petrônio Calmon Filho, Ricardo de Barros Leonel, Ricardo Pippi Schmidt e Sérgio Cruz Arenhart.

[3] Acesso aos 13.03.2010. Disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=432485

[4] GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; FAVRETO, Rogério. A Nova Lei da Ação Civil Pública e do Sistema Único de Ações Coletivas Brasileiras – Projeto de Lei n.5.139/2009. In Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor. Porto Alegre: Magister, ano V, n.27, jun/jul de 2009, p.5 a 21.

[5] Os princípios estão arrolados no artigo 3º do PL e enunciava, dentre outros : o amplo acesso à justiça e participação social; a duração razoável do processo, com prioridade no seu processamento em todas as instâncias; a isonomia, economia processual, flexibilidade procedimental e máxima eficácia; e a tutela coletiva adequada, com efetiva precaução, prevenção e reparação dos danos materiais e morais, individuais e coletivos, bem como punição pelo enriquecimento ilícito.

[6] O teor do voto vencedor, de rejeição do PL, não estava disponível à população no site da Câmara dos Deputados (www.camara.gov.br) até o dia 13/03/2010 e, aos 31/03/2010, quando novamente tentamos o acesso, sequer conseguimos acessar a página de tramitação do PL n.5139/2009, pois a URL acusava “Gateway inválido”.

[7] FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 9a ed. São Paulo: Globo, 1991

[8] SCHWARTZMAN, Simon. Bases do Autoritarismo brasileiro. 3a ed. São Paulo: Campus, 1988. Disponível também no site http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/

[9] VIANNA, Luiz Werneck. Caminhos e Descaminhos da revolução Passiva à brasileira. In Revista Dados, volume 39, edição n.3, Rio de Janeiro, 1996.

[10] Alusão ao texto de Cláudio Weber Abramo: A Marcha dos Espertos: por que o Poder Legislativo do Brasil foi tomado por caçadores de renda. In Carta Capital, edição n.545, ano XV, páginas 30 a 32.

BIBLIOGRAFIA

GRINOVER, Ada Pellegrini. A Ação Civil Pública refém do autoritarismo. In Revista de Processo. Ano 24. Out-dez/2009, nº 96. São Paulo: Revista dos Tribunais. P.28 a 36.

GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; FAVRETO, Rogério. A Nova Lei da Ação Civil Pública e do Sistema Único de Ações Coletivas Brasileiras – Projeto de Lei n.5.139/2009. In Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor. Porto Alegre: Magister, ano V, n.27, jun/jul de 2009, p.5 a 21.

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 9a ed. São Paulo: Globo, 1991

SCHWARTZMAN, Simon. Bases do Autoritarismo brasileiro. 3a ed. São Paulo: Campus, 1988. Disponível também no site http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/

VIANNA, Luiz Werneck. Caminhos e Descaminhos da revolução Passiva à brasileira. In Revista Dados, volume 39, edição n.3, Rio de Janeiro, 1996.

ABRAMO, Cláudio Weber. A Marcha dos Espertos: por que o Poder Legislativo do Brasil foi tomado por caçadores de renda. In Carta Capital, edição n.545, ano XV, páginas 30 a 32.

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