Organização criminosa

Convenção de Palermo não criou novo tipo penal

Autor

  • Jiskia Sandri Trentin

    é promotora de Justiça integrante do Gaeco-MS (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) e do GNCOC (Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas).

12 de abril de 2010, 15h54

A sociedade tem assistido a inúmeros expedientes que, sob o disfarce de um tal “garantismo penal”, querem, na verdade, colocar no chão, fazer cair por terra, ver desmoronar direitos arduamente conquistados ao longo dos anos, especialmente com o advento da Constituição Cidadã de 1988 e das leis ordinárias que se lhe seguiram.

Um deles é o da privatividade da Ação Penal a cargo do Ministério Público, o qual, para ser concretamente efetivado e não se tornar um mero enfeite de letras na Carta Magna, não deve se dissociar da possibilidade de a investigação criminal ser encabeçada pelo parquet quando necessário, especialmente em decorrência da teoria dos poderes implícitos que lhe dá fundamento. Sobre esse tema, o Supremo Tribunal Federal tem cada vez mais se aproximado de resolver a pendenga, concluindo pela inexistência de monopólio da Polícia Judiciária e pela possibilidade de o Ministério Público promover investigações nessa seara, o que nos parece ser um alívio. Entretanto, não se pode baixar a guarda: insuficiente permitir que o Ministério Público investigue, pois também é preciso legitimar seu trabalho nas apurações criminais que ele realiza, e é aí que entram em cena as investigações de crimes praticados por organizações criminosas, grande mote da atuação ministerial quando se trata dessa temática.

No ano de 2002 foi criado pelo Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça o Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas (GNCOC), a partir de um antecedente histórico lamentável, que foi a morte do colega promotor de Justiça do estado de Minas Gerais Francisco José Lins do Rego Santos, assassinado a mando de um grupo criminoso que atuava na adulteração e em outras fraudes relacionadas à fabricação, distribuição e comercialização de combustíveis naquele estado.

Na senda da tragédia despertou o Ministério Público Brasileiro!

Ficou patente a necessidade de a instituição que se propala una e indivisível se “armar” de profissionais especializados e que efetivamente se unissem para fazer frente a esse tipo de criminalidade mais aprimorada, de color empresarial, cujas características podem ser encontradas em uma série de manuais, monografias e artigos relacionados ao tema “Crime Organizado”: estrutura piramidal, divisão de tarefas, caráter interestadual ou internacional, objetivo de lucro, corrupção estatal etc. Por essa razão se deu a criação do GNCOC, através do qual foram criados grupos de atuação especial nos diversos Ministérios Públicos dos Estados e da União, que têm trabalhado incansavelmente na mira da criminalidade organizada, experta na prática dos mais diversos crimes — da sonegação fiscal ao tráfico de entorpecentes — escudando-se na mescla de atividades lícitas e ilícitas, contando com forte aparato do poder econômico que ostenta, o que lhe permite dotar-se de altíssima tecnologia, sem contar que ainda encontra amparo na simpatia do poder político, patrocinado, não raras vezes, por essas organizações, quando dela não fazem parte.

Portanto, em todo o Brasil, e há vários anos, existem grupos do Ministério Público criados para investigar o crime organizado e as organizações criminosas — para aqueles que fazem questão de diferençar um e outro.

E não é só isso.

Também foram criadas Varas Especializadas em Lavagem de Dinheiro e em Crime Organizado (VELD), sendo que o artigo 1º da Resolução 517/2006 do Conselho de Justiça Federal foi expresso ao afirmar que os Tribunais Regionais Federais, na sua área de jurisdição, poderiam especializar varas federais criminais com competência exclusiva ou concorrente para processar e julgar os crimes praticados por organizações criminosas, independentemente do caráter transnacional ou não das infrações, o que de fato ocorreu em várias capitais do Brasil. O parágrafo único da citada Resolução ainda complementa que os juízos especializados deverão adotar os conceitos previstos na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, promulgada pelo Decreto 5.015, de 12 de março de 2004.

Inobstante toda essa preocupação com a criminalidade organizada, a nova onda do STF que, lamentavelmente, tem feito inquietar membros do Ministério Público, especialmente os que se dedicam a esse combate, é afirmar a atipicidade do artigo 1º, VII, da Lei 9.613/98, por não haver no ordenamento jurídico brasileiro o tipo “organização criminosa”, no conhecido caso da Igreja Renascer, HC 96.007-SP, rel. min. Marco Aurélio, j. 10.11.2009, cujo placar já está em dois a zero.

De acordo com os ministros Marco Aurélio(relator) e Dias Toffoli, a Convenção de Palermo, aprovada pelo Congresso Nacional pelo Decreto 231, de 30 de maio de 2003, e ratificada pelo Poder Executivo através do Decreto 5.015, de 12 de março de 2004, não pode tipificar crime, de modo que a conduta dos pacientes deve ser considerada atípica.

Nesse mesmo sentido, com um poder de convencimento bastante proeminente, é o pensamento de Luiz Flávio Gomes, para quem os tratados e convenções centrípetos — contendo normas de aplicabilidade interna no país — não teriam o condão de criar norma penal incriminadora, por ofensa ao princípio da legalidade, e, não havendo definição nas Leis 9.034/95 e 10.217/2001 sobre o que venha a ser organização criminosa, a Convenção de Palermo não pode ser aplicada para defini-la.

Ousamos discordar, com todo o respeito, dos entendimentos que se inclinam para o reconhecimento de não ser possível considerar a definição dada pela Convenção de Palermo ao fenômeno da “organização criminosa”. É que não se pretende sustentar a existência do Crime ou Tipo de “organização criminosa” no Brasil, porque ele de fato não existe, havendo, quando muito, o enquadramento da conduta associativa estável de pelo menos quatro pessoas ao tipo descrito no artigo 288 do Código Penal, desde que satisfeitos os seus requisitos.

A definição dada pela Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, conhecida por Convenção de Palermo ou United Nations Convention Against Transnational Organized Crime, acolhida em nosso ordenamento jurídico com status de lei federal ordinária pelos meios tradicionais de ingresso de normas oriundas de tratados e convenções internacionais, serve apenas como complemento a uma norma penal em branco, que estabelece como crime antecedente ao de lavagem de dinheiro a prática de crimes — quaisquer CRIMES — por organização criminosa, e não a associação em organização criminosa. Uma coisa é bem diferente da outra.

O sujeito não vai ser responsabilizado porque se associou em organização criminosa, mas porque praticou crimes em situação de associação.

Sem dúvida alguma, trata-se de um tipo penal aberto, ou seja, cuja descrição não se encontra completa no texto do tipo, e, em razão disso, pende de uma valoração jurídica do seu conceito. A par disso, a expressão “organização criminosa” é um elemento normativo do tipo, que, assim como se dá com outros tipos penais, como “dignidade e decoro” (artigo 140 do CP), “sem justa causa” (artigos 153, 154, 244 e outros do CP), não precisa ser estabelecido por outra lei penal, mas pode ser colhido através de juízo de valor. Esse o entendimento dos estudiosos Márcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim, para quem a definição de “organização criminosa”, antes do advento da Convenção de Palermo, já podia ser colhida tanto da doutrina quanto da jurisprudência, até porque não é habitual que os ordenamentos jurídicos, mesmo de países mais avançados, contenham a definição do que seja “organização criminosa”, pena de engessamento diante das mais variadas facetas que ela pode adotar.

Assim, a definição de “organização criminosa” trazida pela Convenção de Palermo pode e deve ser utilizada para valorar o tipo descrito no artigo 1º, inciso VII, da Lei 9.613/98, muito embora existam doutrinadores, como Rodolfo Tigre Maia, que entendem ser suficiente a descrição do artigo 288 do Código Penal para conceituar “organização criminosa”, desde que os agentes se encontrem associados à efetiva prática de pelo menos um crime, nos moldes do que explicita o artigo 1º da Lei 9.034/95, com a nova redação dada pela Lei 10.217/2001.

A utilização da Convenção de Palermo para o complemento do tipo aberto descrito no artigo 1º, inciso VII, da Lei 9.613/98, inclusive para aplicação das técnicas especiais de investigação previstas na Lei 9.034/95, com as alterações dadas pela Lei 10.217/2001, Lei Complementar 105/2001 e onde mais apareça a figura da “organização criminosa” em nossa legislação, é recomendável até mesmo sob a ótica da garantia de direitos individuais e da segurança jurídica, já que não bastará o mero enquadramento no artigo 288 do Código Penal, mas também serão necessários requisitos adicionais, tais como a demonstração da existência de um grupo estruturado, de pelo menos três pessoas, que atua concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves — assim consideradas aquelas cuja pena máxima não seja inferior a quatro anos de reclusão ou detenção — ou enunciadas na Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, algum benefício econômico ou material, o que é assaz mais complexo e trabalhoso para demonstrar.

Além disso, para se servir da definição dada pela Convenção de Palermo, não é preciso que ela tenha sempre caráter transnacional, embora a convenção traga tal nomenclatura, pois o seu âmbito de aplicabilidade é mais abrangente, como se observa das hipóteses expressamente previstas no seu artigo 3º, em que ela é aplicável, “salvo disposição em contrário”, à prevenção, investigação, instrução e julgamento de “a) infrações enunciadas nos artigos 5 (participação em grupo criminoso organizado — fato ainda atípico no Brasil), 6 (lavagem do produto do crime), 8 (corrupção) e 23 (obstrução à justiça); e de b) infrações graves, na acepção do artigo 2 da presente Convenção, sempre que tais infrações sejam de caráter transnacional e envolvam um grupo criminoso organizado”.

Portanto, quanto às infrações explicitadas na alínea “a”, não se exige que sejam de caráter transnacional.

Observe-se, por fim, que no caso de se evidenciar, numa situação concreta, a existência de organização criminosa composta por apenas três pessoas, embora seja possível a sua valoração com base na Convenção de Palermo, desde que atendidos aos requisitos nela insertos, não será possível a capitulação de conduta no artigo 288 do Código Penal, porque este exige a presença associativa de pelo menos quatro pessoas.

Conclusões
1) O Ministério Público Brasileiro, embora não tenha função prioritária de investigar crimes, está legitimado a fazê-lo como corolário da “Teoria dos Poderes Implícitos” e por força de dispositivos constitucionais e legais, especialmente quando se tratar de crime organizado ou praticado por organização criminosa, sendo que existe um grupo nacional do Ministério Público, desde o ano de 2002, denominado GNCOC, responsável por uma série de ações no enfrentamento à criminalidade organizada;

2) Os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio e Dias Tófolli, no HC 96.007-SP, j. 10.11.2009, no sentido da atipicidade do artigo 1º, VII, da Lei 9.613/98, entendendo não haver no ordenamento jurídico brasileiro definição do que seja “organização criminosa”, representa um perigo para a sociedade, pois pode invalidar uma série de processos em que figuram como réus integrantes de organizações criminosas;

3) A Convenção de Palermo não criou um novo tipo penal de “organização criminosa” — esse tipo penal ainda não existe no Brasil —, apenas forneceu um conceito ao fenômeno, sendo plenamente possível e recomendável que os operadores do Direito dele façam uso quando se depararem com a prática criminosa descrita no artigo 1º, inciso VII, da Lei 9.613/98, pois a Convenção em referência ingressou no nosso ordenamento jurídico com força de lei ordinária e serve de parâmetro para o complemento do tipo penal aberto descrito no artigo 1º, inciso VII, da Lei 9.613/98 e dos demais preceptivos legais onde aparece a figura da “organização criminosa”;

4) A adoção da definição de “organização criminosa” dada pela Convenção de Palermo é mais benéfica aos acusados, pois exige do Ministério Público maior esforço para demonstrar a sua existência, em razão da gama de requisitos que deve preencher para sua configuração, quando confrontados com os do artigo 288 do Código Penal, os quais, segundo parte da doutrina e da jurisprudência, bastariam para caracterizar uma “organização criminosa”;

5) A definição de “organização criminosa” fornecida pela Convenção de Palermo merece aplicabilidade mesmo quando ela não tenha caráter transnacional, desde que se encaixe em um dos delitos especificados na alínea “a”, do parágrafo primeiro, do artigo 3º, da referida Convenção, a saber: participação em grupo criminoso organizado (fato ainda atípico no Brasil), lavagem de dinheiro (artigo 1º da Lei n. 9.613/98), corrupção (artigos 312, 316, 317, 319 e outros do Código Penal) e obstrução à Justiça (artigo 344 do Código Penal);

Em arremate, sendo o Brasil signatário de uma Convenção Internacional que preconiza a adoção de medidas concretas para, num esforço mundial, enfrentar o crime organizado, inexiste sintonia entre esse anseio global e o pensamento que começou a tomar forma na mais alta corte do país. Espera-se que, da disputa entre as organizações criminosas e o “cidadão de bem”, este saia vencedor, legitimando a atuação funcional de anos de trabalho do Ministério Público e de outras instituições de igual valor, como as polícias Civil e Federal, a magistratura e órgãos de inteligência, que labutam em área tão sensível e de alto risco, na defesa dos interesses e valores mais caros da sociedade.

Autores

  • Brave

    é promotora de Justiça, integrante do Gaeco-MS (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) e do GNCOC (Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!