SEGUNDA LEITURA

Justiça francesa é bom exemplo de especialização

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

4 de abril de 2010, 6h22

A França é um país com 62,3 milhões de habitantes, que ocupa um território de 543.965 km2, situado na parte continental da Europa e em outros continentes, como a América do Sul, com a Guiana Francesa (território ultramarino). É um dos países mais adiantados do mundo, membro do G7 e com uma rica cultura, exteriorizada na literatura, cinema e música.

No regime imperial, os juízes eram mal vistos na França. O cargo era comprado, hereditário, havia muita corrupção e as críticas eram constantes. Com a Revolução Francesa (1789), foram extintos todos os cargos de juízes, e determinada a realização de eleições. A iniciativa não deu certo e, depois de dez anos, foi extinta.

Em 1799, criou-se a atividade judicial como função de Estado. No seu Império, Napoleão Bonaparte organizou a magistratura em carreira, hierarquizada e obediente à lei. O Executivo tinha o domínio da magistratura, nomeava oficiais, funcionários e juízes (www.culturabrasil.org/napoleao.htm).

Atualmente, a Constituição francesa (arts. 64-66) não considera o Judiciário um Poder de Estado, mas sim uma função judicial. O controle de constitucionalidade é exercido com exclusividade pelo Conselho Constitucional, criado em 1958 e composto por nove membros.

O Conselho Constitucional pode agir: a) preventivamente, quando é dado um parecer vinculativo que impede a promulgação da lei por inconstitucionalidade; e b) declarando a inconstitucionalidade, quando é provocado por algum Tribunal a manifestar-se sobre a chamada “prioridade de constitucionalidade” (http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-question-prioritaire-de-constitutionnalite/12-questions-pour-commencer.47107.html#8, item 5). Além disso, em 1º de março de 2010, seguindo uma reforma de 2008, os cidadãos franceses foram autorizados a pedir ao Conselho Constitucional para decidir se uma determinada lei que está sendo aplicada viola a Constituição (http://en.wikipedia.org/wiki/Constitutional_Council_of_France).

A Justiça francesa divide-se em dois grandes ramos, absolutamente independentes: Justiça Administrativa e Justiça Judiciária. Para julgar os conflitos de jurisdição entre estas duas Justiças, há o Tribunal de Conflitos, formado por oito juízes, com mandato de três anos.

A Justiça Administrativa tem, na cúpula, o Conselho de Estado que, segundo ensina Luiz Guilherme Marques na excelente obra “A Justiça na França – Um Modelo em Questão”, LED, p. 132: “tem duas funções: a) ajudar na redação de projetos de leis, ordenanças e decretos do Conselho de Estado e interpretação dos textos administrativos; b) julgar as causas em que a Administração é parte (contencioso administrativo)”. O Conselho de Estado conta com 330 membros, dos quais parte são magistrados (http://www.conseil-etat.fr/cde/fr/chiffres-cles).

Na segunda instância, são oito Cortes Administrativas de Apelação e, no primeiro grau, 42 Tribunais Administrativos (http://www.conseil-etat.fr/cde/fr/organisation-2/). Os juízes administrativos decidem questões de grande relevância (p. ex., as causas ambientais envolvendo o Estado), gozam de total independência e suas sentenças não são submetidas aos juízes dos Tribunais ordinários. Não há nada semelhante no Brasil.

A Justiça Judiciária tem na Corte de Cassação o seu órgão de cúpula. Criada em 1790 como órgão do Poder Legislativo, ela é composta de 87 Conselheiros, que não julgam matéria de fato, mas apenas de Direito. Ao reformar um acórdão de Tribunal de Apelação, a Cassação não reexamina o mérito da matéria, mas apenas determina a outro Tribunal que julgue novamente a apelação. A Corte de Cassação, como de resto a Justiça francesa, é conservadora. Um exemplo disto é a anulação, em 13 de março de 2007, de um casamento de homossexuais (http://noticias.uol.com.br/ultnot/afp/2007/03/13/ult34u176371.jhtm).

Abaixo da Corte de Cassação encontram-se 35 Cortes de Apelação, constituídas por magistrados de carreira. Na primeira instância atuam os chamados Tribunais de Grande Instância (TGI), que decidem de forma colegiada (3) e os Tribunais de Instância, em que o juiz julga sozinho. Há, ainda, muitos Tribunais especializados, como do Comércio e de Incapazes.

O ingresso na magistratura, como ensina Pierre Truche “se dá através de três concursos, reservados respectivamente aos estudantes titulares de um diploma de direito, aos funcionários após quatro anos de serviço e a pessoas que comprovem oito anos de atividades profissionais, de exercício de certos mandatos eletivos ou de uma atividade jurisdicional não profissional” (http://www.artnet.com.br/~lgm/judfran.doc). Como se vê, o sistema procura ter juízes de origens e experiências distintas.

A Escola Nacional da Magistratura, fundada em 1959, encarrega-se da formação dos juízes e agentes do Ministério Público (excluídos os Juízes Administrativos, que têm escola própria). Sediada em Bordeaux, ela é presidida pelo Presidente da Corte de Cassação. A ENM da França influenciou diretamente a Escola da Magistratura de Portugal e, indiretamente, todas as escolas de magistrados brasileiras.

O controle externo dos juízes e membros do Ministério Público é feito pelo Conselho Superior da Magistratura, órgão de composição mista, bem aceito pelos magistrados e respeitado pela sociedade. O Conselho é constituído de sete magistrados e cinco operadores do Direito vinculados à classe política.

Na área criminal, a França mantém o Tribunal de Polícia, para delitos menores, o Tribunal Correcional e o Tribunal do Júri, este composto por 12 jurados, nove leigos e três juízes togados. A investigação é feita pela Polícia Judiciária sob a supervisão do agente do MP. O procurador da República pode aplicar o princípio da oportunidade das diligências e não o de legalidade. Se o caso for complexo, será designado um Juiz de Instrução, que colherá as provas, com amplos poderes, encaminhando os autos a outro juiz caso seja proposta a ação penal (vide o filme “Comédia do Poder”, diretor Claude Chabrol, com Isabelle Huppert).

As sentenças na França são concisas, objetivas. Quiçá por ser o francês um latino diferente. Discreto, lê muito e fala pouco. O sistema judicial francês, atualmente respeitado, é muito diferente do brasileiro, muito embora ambos sejam da “Família Romana”. Conhecê-lo e aproveitá-lo, no que for possível, pode ser de utilidade na busca de efetividade da Justiça brasileira.

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