Em ano eleitoral

Redução da jornada de trabalho é estratégia política

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3 de abril de 2010, 7h21

A pauta do dia é a redução da jornada de trabalho. Encontra-se em trâmite no Congresso Nacional, em pleno ano eleitoral, uma Proposta de Emenda Constitucional que tem como objetivo alterar o dispositivo constitucional que prevê uma jornada máxima semanal de 44 horas.

O interesse visível da alteração tem como foco o desdobramento reflexivo que ela proporciona, ou seja, um significativo aumento de postos de trabalho. Os números apresentados impressionam. Fala-se da ordem de quase quatro milhões de empregos, frutos da imediata necessidade de contratação de mão-de-obra pela redução, e da sua natureza mediata, derivada do impacto que terá, como uma espécie de freio, perante as horas extras atualmente praticadas.

O momento da discussão em ano eleitoral, em que participarão das eleições não somente membros do Executivo, na corrida pela Presidência da República, mas, também e principalmente, concorrentes às cadeiras do Congresso Nacional, deixa evidente qual o real interesse que se encontra por trás da referida discussão, o chamado interesse invisível: o político!

Estamos diante daquilo que o doutrinador Norberto Bobbio chama de contraste entre moral e política, explicando que ambas não são coincidentes. Uma ação moralmente boa é uma ação que foi praticada com base no respeito a certos princípios universais (duas máximas universais, por excelência, que bem representam esse viés são: “não matarás” e “não mentirás”). De outro lado, uma ação politicamente boa é uma ação que teve sucesso, alcançando o objetivo que o interessado se havia proposto. Algo como há muito Maquiavel já havia afirmado em célebre passagem em seu livro. “O Príncipe” deve usar da esperteza e da força, ou seja, para além da metáfora, deve saber mentir e matar.

Cumpre, portanto, aqui, diante desta ação política que está, diuturnamente, sendo-nos imposta à aceitação, à vista da efemeridade temporal para sua aprovação e colheita dos seus frutos políticos, não se render à cantiga melódica que dela emana e que serve de justificativa a tudo e todos, como no sentido expresso na antiga canção de ninar prussiana: “Por falta de um prego, perdeu-se a ferradura/Por falta de uma ferradura, perdeu-se o cavalo/Por falta de um cavalo, perdeu-se o cavaleiro/Por falta do cavaleiro, perdeu-se a batalha/Por falta de uma batalha, perdeu-se o reino/E tudo por falta de um prego de ferradura”.

Temos, ao contrário, que demonstrar, ainda que mediante apontamentos pequenos – diante das gigantescas e midiáticas armas intentadas pelos atores políticos de plantão -, a uma, a ação política que esse debate representa e, a duas, a absoluta insuficiência e pobreza de propósitos que daí resultam. Lembremos que a floresta morre sem o húmus biológico das pequenas plantas.

Dizer e defender que a simples mudança de jornada implicará um crescimento exponencial de empregos, de uma só vez e ao impacto de uma singela “canetada”, é querer esconder a verdade das pessoas. Como Gabrile Naudé, um dos mais notáveis escritores maquiavélicos, sentenciou:Não há nenhum príncipe tão débil e desajuizado que perca o senso e submeta à opinião pública aquilo que a duras penas permanecerá secreto se confidenciado a um ministro ou a um favorecido”.

Se o assunto é tempo (os efeitos benéficos da redução da jornada de trabalho na vida do trabalhador), devemos antes nos perguntar:

– O que tem sido feito (quais as reais e efetivas medidas públicas) para melhorar o transporte público ou desobstruir o caótico trânsito das grandes capitais? (Redução de IPI para automóveis não se presta para isso…);

– Aqueles que “simplesmente defendem a redução de jornada” como elixir mágico sabem que o trabalhador gasta mais de um terço do dia em deslocamentos casa-trabalho/ trabalho-casa?

– Quais as medidas e ações que têm sido feitas visando a dar ao trabalhador e sua família mais espaços de lazer e segurança, para que possa desfrutar do chamado “ócio criativo” (dentro e fora da sua jornada de trabalho)?

– Em vez de “aumentar” paliativamente os salários, pela via de redução horária, não seria mais justo, moral e inteligente se pôr em prática políticas reais de acesso ao conhecimento e educação?

– Quais as políticas e ações desenvolvidas pelos sindicatos para acessibilidade dos trabalhadores a carreiras efetivas, conhecimentos, desenvolvimento profissional, informações sobre a gestão e política de negócio das empresas, participação na administração e conselhos das empresas, a fim de criar sinergia participativa e mecanismos de defesas para os trabalhadores, quanto à manutenção e criação de empregos e políticas ligadas à saúde e segurança, têm sido realizadas?

– Quais as ações e políticas desenvolvidas pelos sindicatos para buscar equilíbrio junto à alta carga tributária e excessiva máquina burocrática que orbitam as relações de trabalho?

– Quais as políticas e ações desenvolvidas ou propostas pelos sindicatos, na busca de alternativas de trabalho, não limitadas apenas ao chamado “emprego com carteira assinada”?

– Quais as medidas, políticas e ações desenvolvidas pelo Governo e pelos sindicatos no sentido de entender, regular e formatar tipos modernos de emprego, como trabalho à distância, teletrabalho, banco de idéias etc.?

– O que se tem feito para customizar o trabalho, como condomínios de empresas ou outras práticas coletivas de racionamento de despesas de divisão de responsabilidades?

– O que efetivamente se tem efeito, mediante políticas afirmativas para enfrentamento da automação (preparação para inserção de trabalhadores em funções mais nobres e consentâneas com essa nova realidade)?

Enfim, não enfrentar esses desafios e substituí-los pelo fácil discurso da redução de jornada, como solução universal de todos os problemas e como remédio eficaz à criação de milhões de empregos, parece um método científico inadequado, a exemplo daqueles contidos nas histórias que os cientistas gostam de contar. Ilustrativo é o recontado pelo filósofo Jean-Claude Carrière, a respeito da pulga: “Um cientista examina uma pulga que veio se instalar perto dele. Ele lhe ordena: ‘Pule! ’, e a pulga pula. O cientista escreve numa folha de papel: ‘Quando dizemos a uma pulga para pular, ela pula’. Então, ele pega a pulga e arranca, cuidadosamente, as suas patas. Coloca-a perto dele e ordena: ‘Pule’! A pulga não se mexe. O cientista anota na folha de papel: ‘Quando arrancamos as patas da pulga, ela fica surda.”

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