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Aasp pede veto de projeto que reorganiza Defensoria

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30 de setembro de 2009, 3h56

A Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp) é contra o projeto de lei complementar que reorganiza a instituição da Defensoria Pública. Para o presidente da entidade, Fábio Ferreira de Oliveira, as novas atribuições, se aprovadas, poderão fazer com que a Defensoria tome competência exclusiva do Ministério Público. Em ofício encaminhado ao ministro da Justiça, Tarso Genro, a Aasp pede o veto de dispositivos do PLC 28/07, que aguarda sanção do presidente Lula.

De acordo com o documento (leia no final do texto), a Aasp entende que o projeto transforma a Defensoria Pública “numa espécie de guardiã de direitos difusos e coletivos em geral, como se fosse desdobramento do Ministério Público, com cujas competências acaba até por colidir”. Além de trombar com as atribuições do MP, segundo a Aasp, o “extravasamento” das competências da Defensoria atrita com a própria Constituição Federal.

Leia o ofício

Doc. nº 1112/09

São Paulo, 24 de setembro de 2009.

Excelentíssimo Senhor,

Tendo tomado conhecimento de que o Senado Federal encaminhou à sanção o Projeto de Lei Complementar nº 28/2007, que reorganiza a Defensoria Pública da União, dos Estados e dos Municípios, através da alteração de diversos dispositivos da Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, a Associação dos Advogados de São Paulo – entidade que congrega mais de 88.000 associados – vem por meio desta solicitar que Vossa Excelência, no uso das atribuições conferidas pelo art. 66, § 1º, da Constituição Federal, vete os incs. V, VII, VIII, XI, XV, XVII e XVIII e o § 7º que o Projeto de Lei em questão, através de seu art. 1º, pretende introduzir no reformulado art. 4º da Lei Complementar nº 80/1994.

As razões que nos levam a solicitar o veto de tais dispositivos são, em parte, as mesmas razões que, no passado, levaram a Presidência da República a vetar vários preceitos da Lei Complementar nº 80/1994 (cópia anexa) e são, também em parte, as mesmas razões expostas em nota técnica encaminhada pelo Conselho Nacional de Justiça ao Congresso Nacional (cópia anexa).

A Defensoria Pública, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, de acordo com a conformação que lhe foi expressamente dada na Constituição Federal de 1988 e que, mesmo após a Emenda Constitucional nº 45/2004, continua inalterada, tem a relevantíssima missão constitucional de promover “a orientação jurídica e a defesa dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV” (CF, art. 134, caput). Embora não se trate de missão constitucional privativa a tal órgão — porquanto, evidentemente, a assistência jurídica aos necessitados é, e continua a ser, não apenas uma tradição da Advocacia, mas, acima de tudo, um imperativo ético-social que descende do princípio constitucional da solidariedade (CF, art. 3º, I)[1] —, a defesa dos necessitados constitui, para a Defensoria Pública, a sua missão, a sua função, que preordena e, ao mesmo tempo, limita a sua atuação.

Vale dizer, a defesa dos necessitados preordena a atuação da Defensoria Pública para tal fim e, ao mesmo tempo, a impede de agir para além de tal mister. É que, segundo lição cristalizada no direito público, toda outorga de poderes implica, ao mesmo tempo, numa concessão e numa limitação. Subjacente a tal idéia está, pois, a própria noção de função pública: “função, para o Direito, é o poder de agir, cujo exercício traduz verdadeiro dever jurídico, e que só se legitima quando dirigido ao atingimento da específica finalidade que gerou sua atribuição ao agente”[2].

Dito isso, vale então observar que o Projeto de Lei submetido à sanção presidencial pretende, indevidamente, ampliar a área de atuação da Defensoria Pública, com total alheamento de sua missão constitucional (CF, art. 134), transformando-a numa espécie de nova guardiã de direitos difusos e coletivos em geral, como se fosse desdobramento do Ministério Público (CF, art. 129), com cujas competências acaba até por colidir. Para além de ser inoportuno dito transbordamento de competências — eis que a prática diuturna revela que “quem tudo quer, nada faz” —, fato é que esse extravasamento atrita claramente com a Constituição Federal.


O vício em questão torna-se ainda mais evidente quando se observa que, em alguns dos novos incisos que o Projeto de Lei em questão pretende introduzir no art. 4º da Lei Complementar nº 80/1994, alude-se especificamente à situação dos necessitados, o que é correto, e, noutros, tal condicionamento desaparece.

Normas com tais vícios são, dentre outras, especialmente aquelas dos incs. V, VII, XI, XV, XVII e XVIII que o Projeto de Lei em questão pretende introduzir no reformulado art. 4º da Lei Complementar nº 80/1994, com a seguinte redação:

“V — exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e o contraditório em favor de pessoas naturais e jurídicas, em processos administrativos e judiciais, perante todos os órgãos e em todas as instâncias, ordinárias ou extraordinárias, utilizando todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa de seus interesses;

VII — promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes;

XI — exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado;

XV — patrocinar ação penal privada e a subsidiária da pública;

XVII — atuar nos estabelecimentos policiais, penitenciários e de internação de adolescentes, visando a assegurar às pessoas, sob quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e garantias fundamentais;

XVIII — atuar na preservação e reparação dos direitos de pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência, propiciando o acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das vítimas;

XIX — atuar nos Juizados Especiais;”

Em nenhum dos citados incisos existe limitação à atuação da Defensoria Pública em prol dos necessitados, ao contrário do que prevê a Constituição Federal e, até mesmo, outros preceitos da Lei Complementar nº 80/1994 e do próprio Projeto de Lei, inexistindo, por outro lado, qualquer razão plausível para que, doravante, possa a Defensoria Pública atuar: (i) em favor de pessoas naturais e jurídicas em geral (inc. V), e não apenas das necessitadas; (ii) promover ações civis públicas em favor de hipossuficientes (inc. VII), grupo esse que é o gênero do qual os necessitados constituem apenas uma espécie; (iii) tornar-se defensor geral de crianças, adolescentes, idosos, mulheres e grupos vulneráveis (inc. XI), grupos esses que também não são compostos apenas por pessoas necessitadas (CF, art. 5º, LXXIV); (iv) patrocinar ação penal privada ou subsidiária da pública (inc. XV), sem qualquer limitação em relação à condição do autor; (v) atuar em estabelecimentos policiais, penitenciários e de internação de adolescentes (inc. XVII), como se fosse fiscal da lei; (vi) atuar em favor de pessoas que foram vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência (inc. XVIII), quando é evidente que nem todas as pessoas submetidas as tais infelicidades são sempre pessoas necessitadas; e, da mesma forma, (vii) atuar em Juizados Especiais (inc. XIX), sem levar em conta a exigência de que se trate de indivíduo necessitado.

Observe-se que a aposição de veto a tais dispositivos em nada prejudica a higidez e completude do Projeto de Lei, porquanto tudo o que nos incisos inquinados se poderia validamente dispor já se encontra previsto, em abundância, na própria Constituição Federal (art. 134) e nos demais incisos do reformulado art. 4º da LC nº 80/1994 — que rigorosamente tornam todo o resto supérfluo —, em especial nos novos incs. I e X, in verbis:

“I — prestar orientação jurídica e exercer a defesa dos necessitados, em todos os graus;”

“X — promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela;”


Por fim, pede-se também o veto do inc. VIII e do § 7º que o Projeto de Lei pretende introduzir no novo art. 4º da LC nº 80/1994. O primeiro dispositivo, por atribuir amplíssima legitimidade ativa à Defensoria Pública na propositura de ações coletivas, em contraste com as próprias atribuições do Ministério Público (CF, art. 129), conforme isso encontra-se bem acentuado na nota técnica do Conselho Nacional de Justiça. O segundo – que prescreve que “aos membros da Defensoria Pública é garantido sentar-se no mesmo plano do Ministério Público” – por não haver qualquer razoabilidade no preceito e, mais do que isso, por criar situação de quebra absoluta do primado da isonomia em relação aos Advogados em geral, sem que haja qualquer discrímen válido a autorizá-la: Defensores Públicos são, antes de mais nada, Advogados (tanto assim que devem ser bacharéis inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil e, como tais, também concorrem ao preenchimento de vagas pelo quinto constitucional nesta condição), não podendo receber tratamento diverso daquele que aos demais Advogados é legalmente dispensado, sob pena de criar-se para estes situação de clara desvantagem e discriminação, sem qualquer razão plausível a ampará-la.

Por tais razões, considerando que a Defensoria Pública tem uma missão constitucional claramente estabelecida (CF, art. 134), da qual não pode se desviar ou dela extravasar, considerando que o Projeto de Lei submetido a sanção desborda, claramente, dos limites constitucionalmente definidos para o órgão e considerando, por fim, que, no direito constitucional, toda outorga de poderes implica, ao mesmo tempo, numa concessão e numa limitação, a Associação dos Advogados de São Paulo pede, respeitosamente, que, pelas razões ora expostas e também pelas razões suscitadas na nota técnica do Conselho Nacional de Justiça, Vossa Excelência, no uso do poder-dever que lhe confere o art. 66, § 1º, da Constituição Federal, vete os incs. V, VII, VIII, XI, XV, XVII e XVIII e o § 7º que o Projeto de Lei em questão pretende introduzir no reformulado art. 4º da Lei Complementar nº 80/1994, sem prejuízo de outros vetos que também se façam necessários e que foram devidamente indicados na nota técnica do Conselho Nacional de Justiça.

A aposição dos vetos ora solicitados em nada prejudicará o texto legal; a sua sanção integral, por outro lado, virá não apenas a redundar na edição de texto legal eivado de inconstitucionalidade, como, sobretudo, poderá, em última análise, comprometer o próprio atendimento dos necessitados, por efeito do extravasamento de atribuições a tirar o foco do órgão para aquilo que é a sua essência e sua específica e constitucional razão de ser.

É o que a nossa Entidade sinceramente aguarda, renovando, ao ensejo, os seus protestos de estima e consideração.

Fábio Ferreira de Oliveira

Presidente

Associação dos Advogados de São Paulo


 

[1] 1 CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO lembra que, ao lado das Defensorias Públicas, “são chamadas a cooperar a Ordem dos Advogados do Brasil e as organizações voluntárias que disponham a prestar esse serviço público” (Instituições de direito processual civil, vol. II, 5ª ed. SP : Malheiros, 2005, nº 768, p. 683).

[2] CARLOS ARI SUNDFELD, Fundamentos de direito público, 4ª ed. – 9ª tir. SP: Malheiros, 2008, nº 21 p.163.

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