Fonte de renda

Ressarcimento ao SUS: um novo ônus para o cidadão?

Autor

  • Henrique Freire

    é advogado diretor jurídico da Amil LLM pela Golden Gate University e M.A. pela Universidade da Califórnia (Davis) especialista em Direito Privado (UFF) em Direito Econômico (UFRJ) e em Direito Civil Constitucional (UERJ) professor contratado da UERJ e membro da Inter-American Bar Association e da World Association for Medical Law

28 de setembro de 2009, 7h00

Tem estado sempre presente na mídia a discussão relativa ao chamado Ressarcimento SUS, ou seja, a obrigação inserta no artigo 32 da Lei Federal 9.656/98 que impõe às empresas operadoras de plano de saúde o dever de ressarcir o SUS sempre que este atender cidadãos que sejam, também, beneficiários daquelas.

As discussões aqui são várias, acaloradas e extremadas e acabam, na prática, por trazer uma enorme insegurança e ônus para todas as partes envolvidas. Nessas discussões, e sem querer esgotar o tema, basicamente uns sustentam a absoluta constitucionalidade dessa cobrança, enquanto outros, a sua absoluta inconstitucionalidade.

Os que sustentam a constitucionalidade veem o ressarcimento ao SUS como sendo de competência da União e a atuação da União como sendo uma forma de evitar o enriquecimento sem causa das operadoras de planos de saúde: se a operadora está recebendo a mensalidade, não seria justo o Estado prestar o atendimento médico aos beneficiários da operadora sem nada receber.

Por outro lado, os que sustentam a inconstitucionalidade do ressarcimento ao SUS, veem essa cobrança ora como tendo natureza tributária, ou ora como sendo uma negativa expressa do artigo 196 da Constituição Federal que determina que “a saúde é um direito de todos e um dever do Estado”; mais do que isso, entendem ser essa cobrança um mecanismo gerador de injustiça social, por ser uma maneira disfarçada de se obter uma nova, e indevida, fonte de renda para o SUS, sufocando ainda mais a classe média e os empresários que desejam conceder tal benefício aos seus empregados.

Outro enfoque, distante desses dois extremos, deve ser visto aqui; e, por ele, talvez fosse possível alcançar-se uma situação mais ética e justa.

A boa doutrina ensina que de um mesmo enunciado normativo (ex: o texto do artigo 32) podem ser obtidas várias normas: sejam elas constitucionais ou não; devendo ser afastadas as inconstitucionais. Assim, do enunciado do artigo 32 (“Serão ressarcidos pelas operadoras (…) os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde — SUS”), pelo menos duas normas poderiam ser obtidas: (a) Uma entendendo o ressarcimento ao SUS como decorrência de um ilícito contratual praticado pela operadora; ou seja, o Estado deveria ser ressarcido na medida em que o consumidor somente procurou o SUS em razão de ter a operadora se negado a cobrir, ilicitamente, algo que estava previsto na lei ou no contrato; e, (b) Outra, vendo o ressarcimento ao SUS não ligado a um ilícito contratual praticado pela operadora e, sim, como um mecanismo genérico de obtenção de receita fundado no atendimento feito pelo SUS a cidadãos que sejam também beneficiários de planos de saúde, sob o argumento também genérico de se evitar o enriquecimento sem causa.

Em suma: enquanto na primeira norma o ressarcimento tem como pressuposto e condição básica um comportamento anterior e ilícito por parte da operadora, na segunda norma pouco importa a conduta da operadora ou do cidadão.

Embora distintas as situações, as decisões judiciais não vêm fazendo tal distinção, o que não parece ser o melhor entendimento.

Hoje, a primeira norma seria a que melhor se adequaria ao sistema jurídico nacional; e o raciocínio é simples:

(1) Conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, os artigos 196 e seguintes da Constituição obrigam o Estado e concedem direitos a todo e qualquer cidadão a ter acesso universal e integral ao sistema público, entendimento esse reforçado pela Lei Federal 8.080/90 (dispõe sobre o SUS). Assim, qualquer atendimento realizado pelo SUS é um atendimento devido e significa uma concretização dos direitos do cidadão.

(2). Ao mesmo tempo em que o atendimento gratuito pelo SUS é um direito do cidadão, a operadora, por definição legal (art 1º, § 1º, I da LF 9.656/98), ao atuar na cobertura de custos médicos e hospitalares de seus beneficiários, somente estaria obrigada a pagar o atendimento se o consumidor também estivesse obrigado à pagá-lo;

(3) Assim, o simples fato de um cidadão possuidor de um plano de saúde ser atendido pelo SUS (um direito fundamental do cidadão) sem a realização de qualquer ato ou fato pela operadora, não poderia dar ensejo a qualquer ressarcimento, não havendo sequer espaço para se falar em enriquecimento sem causa da operadora.

(4) Entretanto, diferente seria aquela situação na qual uma operadora, por se negar a pagar (cobrir ou reembolsar) um determinado procedimento legal e contratualmente previsto, obrigasse o seu consumidor a buscar o SUS. Aqui, seria possível, em tese, se falar em um dano causado ao Estado, em um dano causado ao consumidor e em um enriquecimento sem causa da operadora cabendo, então, a discussão acerca do ressarcimento.

(5) Esse entendimento, ao mesmo tempo em que permite o ressarcimento, dá a ele limites; afinal, se o ressarcimento depende de um ilícito da operadora, ficariam fora do âmbito do ressarcimento ao SUS, entre outras, aquelas situações nas quais o cidadão buscasse voluntariamente o SUS ou aquelas situações nas quais o cidadão fosse atendido diretamente pelo Poder Público (como ocorre, por exemplo, no atendimento prestado pelos bombeiros e pelos hospitais públicos nos casos de urgência e emergência em via pública).

O entendimento acima, e sem prejuízo de outras discussões constitucionais ou infraconstitucionais, de um lado seria socialmente justo; de outro, não negaria o direito fundamental garantido a todo e qualquer cidadão pela Constituição de acesso gratuito, universal e integral ao SUS; e, por fim, evitaria fosse imposto à sociedade (cidadão, empregador e operadoras) um novo e inconstitucional ônus, o qual se constituiria em uma nova (e inconstitucional) fonte de renda para o SUS.

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    é advogado, diretor jurídico da Amil, LLM pela Golden Gate University e M.A. pela Universidade da Califórnia (Davis), especialista em Direito Privado (UFF), em Direito Econômico (UFRJ) e em Direito Civil Constitucional (UERJ), professor contratado da UERJ e membro da Inter-American Bar Association e da World Association for Medical Law

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