Nos tribunais superiores

Aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no Brasil

Autor

28 de setembro de 2009, 10h49

Aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no Brasil

A Teoria da Cegueira Deliberada, também conhecida como Teoria das Instruções da Avestruz, Willful Blindness ou ainda Ostrich Instructions, é proveniente dos Estados Unidos, onde a Suprema Corte Norte-Americana julgou o caso de um vendedor de carros, os quais eram todos de origem ilícita, roubados, furtados. No entanto, não ficou comprovado se o agente tinha ou não conhecimento da origem daqueles veículos.

Essa teoria existe quando o agente finge não enxergar a ilicitude da procedência de bens, direitos e valores com o intuito de auferir vantagens. Deve-se condenar com base no fato de que é necessário se precaver no que diz respeito à proveniência do que está colocando em circulação.

O nome dessa teoria provém exatamente do ato de um avestruz, qual seja, enterra sua cabeça na areia para que não veja ou escute más notícias, evitando assim, tomar conhecimento de fatos desagradáveis. É exatamente o que ocorre com a pessoa que finge não saber que está praticando um ato ilícito, “enterra” a cabeça para não tomar conhecimento da natureza ou extensão deste ilícito.

Para que seja aplicada a Teoria da Cegueira Deliberada, são necessários que o agente tenha conhecimento da elevada possibilidade de que os bens, direitos ou valores sejam provenientes de crimes e que o agente tenha agido de modo indiferente a esse conhecimento.

Nos Estados Unidos, no início do reconhecimento da Teoria da Cegueira Deliberada, várias pessoas que transportavam pacotes com drogas ilegais fingiam não saber o conteúdo desses pacotes, tentando burlar a lei. Essas tentativas de defesa não sucederam, pois as Cortes foram rápidas em determinar que o réu deve saber o conteúdo do pacote que transporta, aplicando-se a Teoria da Cegueira Deliberada.

Outro caso em que também foi reconhecida a Teoria da Cegueira Deliberada nos Estados Unidos ficou conhecido como “In re Aimster Copyright Litigation”, no qual os réus discutiam que sua tecnologia de troca de arquivos esteve projetada de tal forma que não tiveram nenhuma maneira de monitorar o conteúdo de arquivos trocados, alegando a incapacidade de controlar as atividades dos utilizadores. Sustentando assim, que não poderiam estar contribuindo para a violação de direitos autorais pelos usuários. O Tribunal considerou que esta cegueira era voluntária por parte do réu, não constituindo uma defesa para uma alegação de violação contributiva.

No Brasil, essa teoria tem maior aplicação no crime de lavagem de capitais, no entanto já vem sendo admitida em outras modalidades de crimes, como por exemplo, na corrupção eleitoral.

O crime de lavagem de capitais no Brasil é punido somente a título de dolo, diferentemente de outros países, como Alemanha, Luxemburgo e Espanha, os quais admitem a modalidade culposa. Dessa forma, aquele que tem conhecimento da alta possibilidade de que os bens, direitos ou valores eram provenientes de crime e finge não saber com o intuito de auferir lucro responde por dolo eventual, eis que assumiu o risco de produzir o resultado.

De acordo com a teoria da cegueira deliberada o agente responderá, no mínimo, por dolo eventual.

Um crime de lavagem de dinheiro que ficou conhecido em todo o Brasil e que foi aplicada a Teoria da Cegueira Deliberada, ao menos em primeira instância, foi o furto do Banco Central de Fortaleza, em 06 de agosto de 2005, quando uma quadrilha escavou um túnel e furtou aproximadamente R$ 165.000.000,00 (cento e sessenta e cinco milhões de reais). No dia seguinte, foram em uma concessionária de veículos, onde compraram 11 automóveis, gastando R$ 1milhão.

Nesse caso, na sentença, o juiz entendeu a aplicação da cegueira deliberada, sustentando que os donos da concessionária se fizeram cegos para não tomar conhecimento da origem ilegal do dinheiro recebido na venda. Contudo, em segunda instância, os responsáveis foram absolvidos.

Ora, há de se presumir que uma pessoa ao chegar a uma Loja com um milhão de reais em espécie para comprar carros, tenha alta probabilidade de ter conseguido tal quantia por meio da prática de um crime e os donos poderiam ter agido de forma diversa e não o fizeram. Poderiam ter averiguado a procedência dessa quantia, como por exemplo, comunicando ao COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) para que tomasse ciência da transação.


Conforme reza o artigo 9º da Lei 9.613/98: “Sujeitam-se às obrigações referidas nos artigos 10 e 11 as pessoas jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não”. Assim, a concessionária de automóveis pode ser perfeitamente enquadrada como pessoa jurídica que tem atividade permanente, estando descrita no inciso XII do mesmo dispositivo: “as pessoas físicas ou jurídicas que comercializem bens de luxo ou de alto valor ou exerçam atividades que envolvam grande volume de recursos em espécie”.

Como dito anteriormente, a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada vem sendo admitida no crime de corrupção eleitoral. Nesse sentido, existem os seguintes julgados:

CORRUPÇÃO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2006. FORNECIMENTO CONTÍNUO DE SOPA, CESTAS BÁSICA E PATROCÍNIO DE CURSO. PROPÓSITO DE VOTO EM CANDIDATO À REELEIÇÃO A DEPUTADO ESTADUAL. PERÍODO ELEITORAL. FILANTROPIA. DESVIRTUAMENTO. OPORTUNISTO ELEITOREIRO. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. FATOS CONHECIDOS E PROVADO REVELADORES DO ILÍCITO. ARTICULAÇÃO À PROVA ORAL. INTELIGÊNCIA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, ARTIGO 239. PRESCINDÊNCIA DE PROVA DIRETA QUANTO À PRÁTICA ILÍCITA.. MANOBRAS SUB-RECEPTÍCIAS E “MISE-EN-SCÈNE”. DELIMITAÇÃO DE AUTORIA: CRITÉRIO DO DOMÍNIO DO FATO. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. DOLO CONFIGURADO. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBRADA. CRIME FORMAL. ACOLHIMENTO DA PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL. CONDENAÇÃO. CONTINUIDADE DELITIVA. REGIME ABERTO. PENAS SUBSTITUTIVAS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE E PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. MULTA. I— Corrupção eleitoral comprovada: distribuição contínua de sopa, cestas básicas e patrocínio de cursos, durante o período eleitoral a troca de votos. II- Materialidade e autoria extraídas do acervo probatório, documentos e testemunhas. Corroboração por fatos conhecidos e provados. Inteligência do artigo 239 do Estatuto Processual Penal, subsidiariamente aplicável. III- Delira do razoável exigir, sempre e sempre, prova direta – testemunhos, registro audiovisual, e.g. – acerca do cometimento de corrupção eleitoral pelo próprio candidato (CE, art. 299). Os agentes, por si ou interpostas pessoas, atuam de modo sub-reptício, dissimuladamente, sem deixar vestígios cabais. Baralhamento da prática vedada a outras atividades de campanha isoladamente permitidas. Do “misere-in-scène”, da encenação, o julgador há de extrair as nuanças permissivas ao descortino do verdadeiro escopo da manobra e de quem esteja envolvido.

IV- A atribuição de autoria prescinde de comprovação quanto ao engajamento pessoal, direto, do réu/candidato, principal beneficiário, na prática de corrupção eleitoral. Domínio finalístico sobre as manobras espúrias. Critério do domínio do fato. É autor quem executa, pessoalmente, o verbo típico e quem, sem realizá-lo diretamente, vale-se de outrem para tanto. V- “Dolos directus” presente. Imputação viável, no mínimo, a título de “dolos eventualis” (CP, artigo 18, I, 2ª parte): mesmo seriamente considerando a possibilidade de realização do tipo legal, os agentes não se detiveram, conformando-se ao resultado. Teoria da “cegueira deliberada” (“willful blindness” ou “conscious avoidance doctrine”). VI- A corrupção eleitoral, em qualquer de suas modalidades, inclui-se no rol dos crimes formais. Para configurá-la, “basta o dano potencial ou o perigo de dano ao interesse jurídico protegido, cuja segurança fica, dessarte, pelo menos, ameaçada”, segundo Nelson Hungria. VII- A censura penal não decorre da prática de filantropia , de atos de benemerência, de beneficência. É consectário, sim, de desvirtuamento, consistente em oportunismo eleitoreiro: o propósito de obter voto à custa da miséria alheia, sob o fornecimento de “sopão”, cestas básicas, cursos e congêneres. VIII- Pretensão punitiva acolhida. Condenação de ambos os réus. Continuidade delitiva. Regime aberto. Penas substitutivas de prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária. Multa. IX- Recurso ministerial provido, à unanimidade. (Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia, Apelação Criminal nº 89, Relator Élcio Arruda, 09/05/08).


EMBARGOS INFRINGENTES. CORRUPÇÃO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2004. OFERECIMENTO DE ALIMENTAÇÃO, DOAÇÃO DE BONÉS, CAMISETAS E CANETAS, A TROCO DE VOTO EM CANDIDATOS A PREFEITO E VEREADOR. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. CONFISSÃO. DELAÇÃO. PROVA DIRETA CONJUGADA À INDIRETA. MANOBRAS SUB-REPTÍCIAS E “MISE-EN-SCÈNE: “REUNIÃO”. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. DOLO CONFIGURADO. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA. CRIME FORMAL. EMBARGOS DESPROVIDOS. I- Corrupção eleitoral comprovada: fornecimento de alimentação, camisetas, bonés e canetas, para obtenção de voto. II- Materialidade extraída de “convite”, de certidão lavrada por meirinho e da prova oral (confissão e testemunhas). III- Autoria: confissão e delação emanada duma das acusadas. Circunstâncias e prova testemunhal corroborantes. IV- Delira do razoável exigir, sempre e sempre, prova direta – testemunhos, registro audiovisual, e.g. – acerca do cometimento de corrupção eleitoral (CE, artigo 299).

Neste terreno, os agentes, por si ou interpostas pessoas, atuam de modo sub-reptício, dissimuladamente, sem deixar vestígios cabais. E, permitidas. Do “mise-en-scène”, da encenação, o julgador há de extrair as nuanças permissivas ao descortino do verdadeiro escopo do agente. IV- “Dolus directus” presente. Imputação viável, no mínimo, a título “dolus eventualis” (CP, artigo 18, I, 2ª parte): mesmo seriamente considerando a possibilidade de realização do tipo legal, os agentes não se detiveram, conformando-se ao resultado. Teoria da “cegueira deliberada” (“willful blindness” ou “conscious avoidance doctrine”). VI- A corrupção eleitoral, em qualquer de sua modalidades, inclui-se no rol dos crimes formais. Para configurá-la, “basta o dano potencial ou o perigo de dano ao interesse jurídico protegido, cuja segurança fica, dessarte, pelo menos, ameaçada”, segundo Nélson Hungria. (Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia, Acórdão nº 500, Processo nº 65, Classe 7, Relator Élcio Arruda, 07/01/2008)

Nesses dois casos, reconheceu-se a possibilidade de aplicação, ao menos, do dolo eventual ao se considerar a possibilidade de realização do tipo legal e a conformação com ela. A cegueira deliberada está no fato de que os candidatos à eleição cerram os olhos à ilicitude da distribuição de bens como meio ao aliciamento dos votos.

As pessoas tentam “enterrar” suas cabeças com o intuito de se eximirem da responsabilidade. No entanto, a teoria da cegueira deliberada reconhece que se o agente tinha conhecimento da elevada possibilidade de que os bens direitos ou valores eram provenientes do crime e agiu de modo indiferente, responderá pelo crime de lavagem de capitais.

Por outro lado, no crime de corrupção eleitoral é um pouco diferente a aplicação dessa teoria. Os candidatos têm conhecimento de que a distribuição de qualquer bem aos eleitores constitui o crime de corrupção eleitoral, mas mesmo assim o praticam com o fim de obter uma vantagem, qual seja, angariar votos.

Por fim, insta salientar que conforme o Tribunal Superior Eleitoral, bem como o Superior Tribunal de Justiça (Informativo de Jurisprudência 58) entendem que é necessário o dolo específico para caracterização do crime de corrupção eleitoral, não sendo aplicada assim, para essas cortes a Teoria da Cegueira deliberada, a qual exige apenas o dolo eventual.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!