Presunção de inocência

Condenação de Abdelmassih veio antes do julgamento

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24 de setembro de 2009, 18h29

Em 1984, nos EUA, o carpinteiro John Stoll foi acusado de molestar sexualmente seis crianças.

As acusações: Stoll e mais dois homens faziam as crianças posar nuas e depois as estupravam, enquanto sua mulher fazia sexo com o próprio filho.

As crianças testemunharam no julgamento e confirmaram todas as acusações. Stoll e seus comparsas foram condenados a penas de até 40 anos.

Caso encerrado. Só havia um problema: era tudo mentira.

As crianças inventaram a história, estimuladas por policiais e promotores sedentos por uma condenação.

Quase 20 anos depois, as "vítimas" voltaram ao tribunal, dessa vez para admitir que não houve abuso.

Stoll foi solto, depois de quase duas décadas encarcerado. Sua mãe morreu enquanto o filho estava preso, seu casamento acabou, a carreira, idem.

O caso teve notoriedade pois o embuste foi revelado. Mas basta um conhecimento superficial de psicologia forense para saber que deve haver milhares de pessoas injustamente condenadas devido à junção de quatro vieses correlatos da mente humana.

Primeiro, sabe-se que nossa memória é bem menos confiável do que imaginamos e pode ser profundamente influenciada por eventos ocorridos quando a memória é formada e pela maneira como ela é recuperada.

Segundo: nosso respeito, beirando a submissão, por autoridades.

O terceiro problema é o desejo de agradar e de pertencer. A maioria das pessoas não gosta de ser do contra, de decepcionar os outros. É frequente que testemunhas digam o que acreditam que o interlocutor quer ouvir — ainda mais quando esse interlocutor é um representante do Judiciário.

Finalmente, damos grande valor a um testemunho ocular. Se alguém lhe disser, com convicção, que viu fulano fazendo isso ou aquilo, provavelmente você acreditará. Acreditamos na bondade e na acuidade alheias.

Junte esses quatro fatores e veja como é difícil a absolvição de um réu quando a Promotoria está convencida da sua culpa e tem testemunhas para confirmar sua história.

O enredo se repete amiúde. Um crime hediondo é revelado. Suspeitos são rapidamente apontados. Testemunhas aparecem. Surge um furor coletivo pela punição dos suspeitos. O clima de linchamento propicia o surgimento de novos testemunhos, cada vez mais detalhados e terríveis. O direito de defesa é suprimido, as vozes dissonantes, sufocadas.

O Brasil já viveu caso assim, em 1994, no episódio da Escola Base. Donos e funcionários foram acusados de estuprar alunos. Os envolvidos tiveram suas vidas destruídas. A escola foi depredada e fechada. Um programa de TV pediu pena de morte aos "pedófilos". Anos depois, a investigação foi concluída e o casal foi inocentado.

Não havia evidência do crime. Mas era tarde. O dano já havia sido feito.

Hoje a história se repete com o dr. Roger Abdelmassih. Dezenas de testemunhas atestando os abusos sexuais do médico. O mesmo furor. Capas de jornais e revistas, matérias na TV: um escroque de última categoria.

O Judiciário vai mais longe e o coloca em prisão preventiva. O conselho de medicina suspende sua licença.

Não sei qual será o desfecho dessa história. Tampouco sei se o dr. Abdelmassih cometeu os crimes que lhe são imputados. Não ficarei surpreso se todas as acusações forem verdadeiras.

Acredito que os picaretas, pulhas e psicopatas são distribuídos aleatoriamente dentre todas as profissões. Não conheço as supostas vítimas, mas seria improvável que tantas mulheres acusassem um homem de um mesmo crime sem ter razão para isso.

Por outro lado, tampouco me surpreenderia se o dr. Abdelmassih fosse inocente. As 56 acusadoras não são nem 0,2% das pacientes que ele atendeu. Se fosse o predador sexual que pintam, imagino que o número de vítimas seria maior. Também é estranho que tenham demorado tantos anos para acusá-lo e tenham prosseguido o tratamento depois do abuso.

Mas por que essas mulheres viriam agora a público se fosse tudo mentira?

É possível que algumas tenham falsas memórias, que outras sejam aproveitadoras e que outras tenham sido estimuladas por promotores sôfregos. É improvável. Mas é possível.

E o sistema Judiciário brasileiro respeita uma premissa básica dos sistemas republicanos: todo cidadão é inocente até prova em contrário. Essa é uma garantia fundamental do Estado de Direito, sem a qual todo e qualquer cidadão está sujeito à arbitrariedade. A supressão desses direitos individuais é ao mesmo tempo sintoma e prenúncio de uma sociedade que resvala rumo ao autoritarismo.

Não quero defender o dr. Abdelmassih. Se for culpado de um terço do que lhe acusam, é um torpe. Mas quero, sim, reivindicar o direito de defesa e de liberdade desse e de qualquer cidadão, acusado de qualquer crime, até sua condenação, a não ser em casos de possibilidade de fuga ou quando a liberdade do réu representa perigo.

A mídia deveria tratá-lo como réu, não como condenado. O lugar de seu julgamento é um tribunal, não a praça pública. O Estado foi criado para garantir o usufruto das liberdades individuais. Como disse o jurista inglês William Blackstone (1723-1780): é melhor que 10 culpados escapem do que 1 inocente sofra.

Fico consternado de pensar na possibilidade de que estejamos sujeitos a ataques sexuais daqueles a quem confiamos nossa saúde. Mas fico mais preocupado ainda de saber que nossa liberdade e dignidade podem ser arbitrariamente confiscadas por quem deveria salvaguardá-las. Se hoje nossa Constituição não valer para um estuprador ou um assassino, amanhã não valerá para ninguém.

[Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo, na edição de 24 de setembro de 2009.]

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