Gestão pública

Lei de Responsabilidade Fiscal em licitações e contratos

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23 de setembro de 2009, 8h18

Em desencontro, de certa forma, com a ideia disseminada no Brasil de que sempre prevalece a impunidade na gestão da coisa pública, adveio a Lei Complementar 101/2000, denominada Lei de Responsabilidade Fiscal, com o objetivo de regulamentar a gestão fiscal e punir o mau administrador público.

Sua criação veio disciplinar os artigos 163 e 169 da Constituição Federal que exigem lei qualificada para disciplinar as “finanças públicas”, ou seja, a entrada e saída de recursos financeiros dos cofres públicos. O desequilíbrio orçamentário, o gasto excessivo com pessoal, as operações irresponsáveis de crédito, o descuido com o patrimônio público, tudo passou a ser fiscalizado e controlado através de critérios estipulados pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Não obstante, diferente não seria que o alcance de tão importante lei estendesse seus “braços” em outros textos legais e refletisse diretamente nas licitações e contratos administrativos. Isto porque, um dos princípios que ornamenta a Administração Pública e que a caracteriza, principalmente, é a obrigatoriedade da licitação. Quando a Administração Pública resolve contratar com particulares, resolve contratar com um e não com outro, de alguma forma interfere na vida de ambos, ampliando direitos em relação a um e restringindo direitos em relação a outro.

Assim, para que as decisões tomadas pelo poder público, de forma unilateral, tenham legitimidade, faz-se necessária a participação daqueles que serão atingidos, seguindo um procedimento formal que permita ao administrado pedir, alegar, provar. Tal procedimento deve ser pautado nos princípios que norteiam a Administração Pública e, principalmente, naqueles que expressamente regem as licitações.

Dentre estes, importante o destaque dos princípios da moralidade e probidade administrativa, que vêem de encontro aos princípios constitucionais exaltados na Lei de Responsabilidade Fiscal, que objetiva a transparência na gestão fiscal, mencionando níveis prudentes de atuação na área orçamentária e fiscal. Nesse diapasão, a Lei de Responsabilidade Fiscal influenciou diretamente as licitações e contratos administrativos, acrescendo uma série de comandos, condicionamentos e cautelas nas suas estruturas jurídicas.

Estes influxos da Lei de Responsabilidade Fiscal nas licitações e nos contratos administrativos provocaram mudanças significativas nos procedimentos e atuação do gestor público, merecendo uma abordagem objetiva e técnica acerca da questão.

Como em toda gestão, seja ela privada ou pública, a decisão de contratar é requisito essencial, para não dizer inerente, ao cargo do administrador. Entretanto, diferentemente do administrador da esfera privada que possui liberdade e discricionariedade plena para a tomada de decisão, o gestor público somente poderá agir de acordo com a legislação.

Isto porque a decisão de contratar na esfera pública deve ser estritamente pautada nos princípios constitucionais, com destaque ao princípio da legalidade que, diferentemente do particular que pode fazer tudo que a lei não proíbe, ao administrador público cabe fazer somente o que está autorizado em lei.

A Administração Pública, seja por suas entidades estatais, autárquicas ou empresariais, realiza obras e serviços, faz compras e aliena bens em prol do interesse público. E para o desempenho de tais atividades, necessário se faz contratar e seus contratos, em geral, dependem de um procedimento seletivo prévio, que é a licitação.

Nossa Carta Política de 1988 constitucionalizou formalmente os principais pontos do instituto da licitação, que anteriormente somente eram mencionados doutrinariamente. “O que era uma disputa teórica entre os autores, passa a ser princípio insculpido em norma constitucional” (1)

Com a finalidade de preservar os princípios da legalidade, igualdade, impessoalidade, moralidade, probidade e da própria ilesividade ao patrimônio público, determinou o legislador constituinte ao administrador público, conforme artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, que: ressalvados os casos especificados na legislação, o contrato para obras, serviços, compras e alienações seja precedido de licitação pública; que essa licitação assegure igualdade de condições a todos os concorrentes; e que estabeleça obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas das propostas.


Assim, diante da necessidade de regulamentar o comando constitucional, foi instituída a Lei Federal 8.666, de 21 de junho de 1993, que disciplinou o procedimento das licitações e contratações, bem como as situações de dispensa e inexigibilidade de competição.

A partir do comando constitucional e, principalmente, após a Lei 8.666/93, observa-se o surgimento de inúmeros diplomas legislativos que figuram como “instrumentos auxiliares” à aplicação da Lei Nacional de Licitações, sejam eles leis estaduais, leis municipais, decretos, instruções normativas, dentre outros.

O artigo 3º, caput, da referida lei, conceitua o procedimento licitatório, reafirma parâmetros éticos e estabelece seu objetivo, elencando os princípios norteadores do certame que precede a contratação.

Artigo 3º  A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.

São princípios básicos das licitações definidos no referido artigo o da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento procuratório, do julgamento objetivo, entre outros correlatos.

Importante o destaque dos princípios da legalidade, da moralidade e da publicidade, que vão de encontro ao propósito do presente estudo.

O principio da legalidade é condição indispensável do Estado Democrático de Direito, sendo que todos os artigos constitucionais, em última análise, velam por este principio que possibilita a aplicação dos demais princípios, sendo um principio fundamental de primeira grandeza.

Evidente que no procedimento licitatório não se deve seguir um formalismo exacerbado, devendo a anulação do procedimento ocorrer somente quando ocorrido qualquer lesão aos cofres públicos.

Isso porque, outro importante princípio a ser destacado é o da moralidade, que obriga à correta aplicação do dinheiro público, constituindo um dos mais importantes princípios constitucionais e que sua má aplicação traz grande impacto à sociedade.

Na lapidar frase do saudoso administrativista Professor Hely Lopes Meirelles, “o povo é titular do direito subjetivo ao governo honesto”. (2)

A obrigatoriedade da licitação como antecedente dos contratos com a Administração Pública, expressa no artigo 2º da Lei 8.666/93, é reflexo do principio da moralidade.

Artigo 2º  As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei.

Junto à moralidade, podemos citar o principio da publicidade, no qual preconiza a visibilidade dos atos da administração para viabilizar o exercício pleno do controle externo do cidadão. A publicidade obrigatória dos atos administrativos do procedimento licitatório, estão previstos em diversos artigos da mencionada lei de licitações, como por exemplo no artigo 21, inciso I, sobre a publicação do resumo do edital em datas prefixadas, entre outros.

Todos os princípios ora mencionados, bem como outros correlatos, possuem o condão de controlar os atos administrativos, possibilitando a fiscalização do cidadão na utilização dos recursos públicos, evidenciando uma maior transparência e planejamento, principalmente após a adoção da Lei de Responsabilidade Fiscal, conforme se verá a seguir.

O processo de deteriorização das contas públicas brasileiras iniciou-se através dos inúmeros problemas acumulados na sociedade que dependiam de grandes investimentos para serem sanados de forma definitiva. A repetida acumulação de capitais gerados no país nas mãos de poucos indivíduos fez com que se criasse uma maior concentração de renda com efeitos negativos sobre a qualidade de vida de uma larga faixa da população.


Ao longo de décadas o país assiste aos desmandos por parte de muitos gestores da administração pública em nosso país, além de verdadeiros indicadores de distorções das atribuições do Estado, em que se observa a clara tendência à apropriação privada do patrimônio público.

Nesse contexto, aliado aos propósitos de alcançar e tentar manter a relativa estabilidade econômica que passava o Brasil, as autoridades fazendárias remeteram em abril de 1999, inspirados nas experiências internacionais acerca da matéria e pressionados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o projeto da Lei de Responsabilidade Fiscal ao Congresso Nacional, com o objetivo principal da transparência e responsabilidade na gestão fiscal e, consequentemente, na gestão pública do país.

Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal em consonância com o explicitado nos artigos 163 a 169, todos do Capítulo II , Título VI , da Constituição Federal.

Porém, o surgimento de uma lei regulamentadora de responsabilidade aos gestores públicos não é uma novidade no Brasil. Mecanismos legais como a Lei 1.079, de 10 de abril de 1950, o Decreto-Lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967 e a Lei 8.429, de 02 de junho de 1992 (Lei da Improbidade Administrativa), são bastante conhecidos e dedicam-se a esse tema.

A novidade da Lei de Responsabilidade Fiscal está no fato de responsabilizar o administrador público especificamente na gestão financeira, partindo de um acompanhamento sistemático do desempenho de seu governo, seja mensal, trimestral, anual ou plurianual. A autoridade pública que administra e usufrui do ente estatal como se seu fosse, passou a ter problemas sérios com o advento desta lei complementar.

Assim, o objetivo principal da referida lei foi impor normas de conduta, de forma organizada, para os gestores públicos dos entes federativos, seja da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, não somente aos gestores das administrações diretas, como também de toda a administração pública indireta.

A matriz neozelandesa, secundada pela lei brasileira, apresenta seis princípios de gestão fiscal responsável: i – prudência; ii – transparência; iii – planejamento; iv – equilíbrio; v – controle; e vi – responsividade (accountability).

A forma pela qual se opera a gestão fiscal deve ter a mais absoluta transparência, com ampla divulgação, em estrito cumprimento ao comando constitucional do artigo 37. A publicidade é requisito de eficácia e de moralidade dos atos administrativos, por meio do qual se torna público o comportamento da Administração Pública, especialmente, em relação ao aspecto financeiro. (3)

O objetivo primeiro da LRF é fixar a responsabilidade fiscal como um dos princípios da gestão pública, redefinindo a cultura da atividade política no país. Responsável é a pessoa que deve suportar a consequência de sua ação antijurídica, típica e punível.(4)

As determinações inaugurais da lei definem e conceituam os atos de gestão, sobre os quais recairá responsabilidade, bem como os órgãos, poderes e entidades aos quais se vinculam estruturalmente estes atos. Pertinente a manifestação do Professor Jessé Torres Pereira Júnior, em palestra ministrada intitulada “Reflexões sobre a aplicação da lei de responsabilidade fiscal à administração judiciária”, sobre o conceito de responsabilidade fiscal:

“Não se extraia do rótulo ‘responsabilidade fiscal’ a ideia de que se estaria a criar nova espécie de responsabilidade, na clássica acepção jurídica de obrigação secundária, derivada da inexecução de obrigação principal. Os atos atinentes à execução do orçamento e à gestão dos dinheiros, bens e valores públicos são atos jurídicos da Administração, ou, na linguagem consagrada em sede doutrinária, atos administrativos. Sujeitam-se, como todos os atos jurídicos da Administração Pública, aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência, tais nominados no artigo 37, caput, da CF/88, com redação da Emenda Constitucional 19/98”


Significa dizer que a LRF veio estabelecer não uma nova espécie de responsabilidade, mas estatuir condições, termos e requisitos para o regular exercício da gestão financeira e patrimonial do Poder Público, cujo eventual descumprimento atrairá, em processo administrativo regular, juízos de reprovação a ilícito administrativo, com possíveis repercussões nos campos da responsabilização civil do Estado e da responsabilização penal pessoal do gestor. A violação dos procedimentos previstos na LRF ensejará, portanto, apuração nas três conhecidas esferas de responsabilidade, a iniciar-se pela administrativa, qualificando-se o objeto pelo fato de constituir ilícito contra a gestão pública.(5)

Ou seja, cabe ao gestor público, ou ordenador de despesa, a prática concreta dos atos administrativos em estrita observância à concepção de “ação planejada institucional”, contida não somente na LRF, mas também nas leis relativas ao Plano Plurianual (PPA), as Diretrizes Orçamentárias (LDO) e as Leis Orçamentárias Anuais (artigo 165, I a III, da Constituição Federal).

Nas palavras do Professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

O que a Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, pretende introduzir no País é (…) muito mais que anuncia em sua epígrafe: tornar efetiva a responsabilidade fiscal. É sobretudo uma mudança de hábitos políticos, marcando a desejada passagem do patrimonialismo demagógico para o gerenciamento democrático.(6)

Uma gestão fiscal responsável impede o gestor de recursos públicos de implementar novas despesas sem que haja a previsão do correspondente aporte de receita, para que não ocorra no final do exercício financeiro a geração de déficit nem seja comprometido o resultado fiscal planejado.

3. Os reflexos da Lei de Responsabilidade Fiscal nas Licitações e Contratos Administrativos

Diante do exposto nos capítulos anteriores acerca da obrigatoriedade da licitação para contratação na esfera pública e acerca da criação da Lei de Responsabilidade Fiscal e seus princípios, lastreada na transparência e planejamento da gestão dos recursos públicos, fica evidente que ambas as leis, Licitações e Responsabilidade Fiscal, se complementam, criando laços estreitos na gestão da coisa pública.

A licitação e o contrato administrativo são atos decisórios definidores do exercício da gestão pública. Por conseguinte, quando a LRF menciona em seu artigo 1º a “responsabilidade na gestão fiscal”, é, precisamente, a conformidade desses procedimentos — a licitação e a contratação administrativa — com o planejamento institucional fortalecidos pela mencionada lei.

Neste esteio, a Lei Complementar 101/00, veio acrescentar uma série de comandos, condicionamentos e cautelas à estrutura jurídica das licitações e contratos administrativos.

Segundo os ensinamentos do Professor Carlos Pinto Coelho Motta,

A LC 101/00 veio, concretamente, mudar alguma coisa nas licitações públicas. É verdade que a Lei 8666/93 contemplava já, de alguma forma, o necessário liame entre a geração de despesa em obras, serviços e fornecimentos, e o equilíbrio das contas públicas. (…) A LRF veio corporificar, entretanto, maior rigor na fidedignidade e integração dos planos orçamentários, e na fiscalização no atingimento de metas. (7)

É possível se verificar que as determinações específicas da LRF modificaram e sistematizaram ainda mais a geração de despesa nas licitações e contratos administrativos. Foram aduzidas novas cautelas, houve um crescimento da importância da fase interna dos certames, com especificações e controles adicionais.

A principal conexão entre a Lei Nacional de Licitações e a Lei de Responsabilidade Fiscal está no momento procedimental que passa no interior da Administração Pública, antes mesmo da publicação do aviso de edital ou do envio dos convites, na denominada fase interna da licitação.

Por tratar, principalmente, da caracterização do objeto e da existência de dotação orçamentária específica, é que a fase interna da licitação aumentou sua relevância no processo licitatório após o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal. (8)


Notoriamente, a Lei Complementar 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal) traz exigências para o equilíbrio de receitas e despesas públicas, permitindo que o saneamento financeiro resultante proporcione uma atuação mais eficaz do Estado em benefício dos interesses sociais. Assim, como a maior parte dos processos de licitação terá ao seu fim uma despesa, e a decisão de seguir ou não com o certame se dá ainda na fase interna, esta deverá adequar-se a algumas normas da LRF.

O artigo 16, parágrafo 4º, inciso I, menciona expressamente que todos os ditames contidos no caput constituem condições prévias para o empenho e licitação de serviços, fornecimentos de bens ou execução de obras.

O principal objetivo das restrições descritas no artigo 16 da LRF é evitar que o excesso de contratações comprometa o equilíbrio orçamentário. O conteúdo do artigo 16, caput, dispõe que o aumento de despesa gerado a partir da criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental será acompanhado de:

I – estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subsequentes;
II – declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

Observa-se a partir da leitura do inciso I, que não basta a medição do impacto sobre o exercício corrente e sim sobre três exercícios, o vigente e os dois subsequentes. Há também uma referência não somente do impacto orçamentário, mas também do financeiro, demonstrando uma preocupação com o lastro financeiro que extinguirá, através do pagamento, a obrigação criada.

O inciso II exige a declaração formal do ordenador da despesa, que é “toda e qualquer autoridade de cujos atos resultem emissão de empenho, autorização de pagamento, suprimento ou dispêndio de recursos da União ou pela qual esta responda” (9), cria um comprometimento direto do ordenador pelo rigoroso acompanhamento do aumento de despesa. Como decorrência de tal medida, o gerenciamento orçamentário e financeiro tem mais um elemento de checagem obrigatória antes de emitir qualquer empenho ou autorizar movimentações financeiras: verificar se implica ou não aumento de despesa.

O artigo 17, do já mencionado diploma legal, também impõe requisitos prévios para os atos de criação ou aumento de despesas obrigatórias de caráter continuado, devendo ser aplicado juntamente com artigo 16 acima mencionado. Neste esteio, o artigo 15 da referida lei é expresso no sentido de que:

Artigo 15. Serão consideradas não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio publico a geração de despesa ou assunção de obrigação que não atendam o disposto nos artigos 16 e 17.

Logo, o cuidado no cumprimento interno das normas mencionadas é mister, sendo prudente a adoção de uma linha doutrinária mais ortodoxa à respeito. Ou seja, qualquer aumento de despesa deve ser analisado antecipadamente, até mesmo antes do início do processo licitatório, evitando prejuízos no erário.

Os reflexos da LRF na fase interna das licitações possuem o condão de alterar toda a série de procedimentos antes somente regidos pela Lei Nacional de Licitação. A análise jurídica prévia dos editais adquire uma maior dimensão e complexidade quanto aos comandos impostos pela Lei Complementar 101/00.

A decisão da necessidade de instalação do certame passou a ser vinculada diretamente ao “poder de gasto” da Administração Pública, explícito no artigo 4º, I, alíneas “a”, “b” ,“e” e “f”, da LRF.

A previsão de recursos orçamentários não se confunde com a disponibilidade de recursos financeiros, sendo que a primeira é uma previsão de gastos estabelecida na lei orçamentária e, a segunda, refere-se a existência de numerário disponível para pagamento no momento oportuno. Assim, ambas são exigidas para a realização das licitações de obras, serviços e compras, apesar de diferidas no tempo: os recursos orçamentários como pré-requisito da licitação e os recursos financeiros como decorrência.


Evidente que qualquer contratação que não implique despesas para a Administração não está sujeita as regras ora descritas no presente capítulo. Da mesmo forma, por exemplo, podemos citar o registro de preços (artigo 22, parágrafo 2º, da Lei 8.666/93), que representa o cadastramento de fornecedores para fornecimento futuro e incerto, não sendo sujeito às restrições da Lei de Responsabilidade Fiscal ora mencionadas.

Seguindo o princípio do planejamento e de prevenção de riscos já nitidamente incorporados aos dispositivos da LRF destacados anteriormente (artigos 15, 16 e 17), temos, ainda, o artigo 42, que assim dispõe:

Artigo 42 – É vedado ao titular de Poder ou órgão referido no art. 20, nos últimos 2(dois) quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito.

Pode-se destacar aqui efeitos diretos sobre o processo licitatório, pois tal dispositivo pode dificultar o cumprimento do contrato, caso seja verificado que o pagamento não poderá ser realizado até o fim do ano corrente.

A ideia do dispositivo em comento é que não se comprometa o orçamento do exercício vindouro e, mais do que isso, não se comprometa o orçamento do novo titular do Poder ou órgão referido no artigo 20 da LRF, com despesas inscritas em “restos a pagar”.

Assim, o mencionado artigo 42 disciplina que a obrigação de despesa deve ser cumprida integralmente, ou seja, paga em sua integralidade no exercício vigente, ou ao menos que exista no último dia do exercício, disponibilidade de caixa para pagamento no próximo exercício financeiro vigente.

Portanto, a interpretação do caput do artigo 42, está em conformidade com os dispositivos dos artigos 7º, 14 e caput do artigo 57 da Lei Nacional de Licitação e com o comando constitucional esculpido no artigo 167, parágrafo 1º, da Constituição Federal, ou seja, o contrato deve estar atrelado à respectiva vigência do crédito orçamentário.

Ou seja, se a despesa deve ser paga no exercício, não há como assumir obrigação acima de tal período. Parece óbvio que as despesas referidas sejam aquelas para as quais não há previsão específica. Se tal despesa, por exemplo, estiver prevista na lei orçamentária e há recursos disponíveis, não há qualquer obstáculo por parte da lei.

Neste sentido, o Tribunal de Contas do Estado do Paraná, respondendo a consulta formulada pela Prefeitura Municipal de Curitiba, em julho de 2004, decidiu que os prefeitos podem assinar contratos para a realização de obras que ultrapassem o mandato, desde que tenham recursos para o pagamento das parcelas que vencerão no último exercício. (10)

Por fim, o parágrafo único do artigo 42 da LRF dispõe que:

Parágrafo único. Na determinação da disponibilidade de caixa serão considerados os encargos e despesas compromissadas a pagar até o final do exercício.

Ora, tal dispositivo cria mais um procedimento a ser observado pelos ordenadores de despesa, ou seja, deverá verificar e planejar o cálculo dos compromissos assumidos com o volume total da despesa, considerando todos os encargos que serão empregados na vigência do contrato.

Assim, por tudo o que foi discorrido sobre o artigo 42 da LRF, evidente é sua aplicação na fase interna da licitação, devendo a Administração Pública antes da publicação do aviso de edital, na hipótese de oito meses antes do término de mandato, projetar os custos atual e final, programar a obra ou serviço em sua totalidade, bem como prazos de execução (artigo 8º, caput, da Lei 8.666/93) e, principalmente, através da programação financeira mensal e o mecanismo de limitação de empenho, evitar o prejuízo de suspender todo o processo licitatório ou, até mesmo, incorrer no crime de assunção de obrigação no último ano de mandato ou legislatura.

Como já dito, a licitação é condição prévia para a formalização do contrato administrativo e, portanto, todas as influências por aquela sofrida refletem indiretamente o contrato administrativo, mesmo antes de seu formal surgimento. Entretanto, um dispositivo que alcança os contratos administrativos em curso é o parágrafo 2º do artigo 9º da LRF, que estabelece:


Parágrafo 2º Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias.

O dispositivo acima mencionado determina que sejam satisfeitas as obrigações constitucionais, como educação e saúde, as legais (pagamento dos servidores) e o pagamento da dívida, contraída em forma de financiamento, e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias.

Ou seja, o restante poderá ser objeto de contingenciamento ou limitação, podendo haver suspensão do pagamento das despesas assumidas contratualmente. Logo, os contratos firmados com a Administração, como os de fornecimento de obra, serviços e compras, podem ter o pagamento sustado. (11)

No efetivo contingenciamento, o maior prejudicado será o fornecedor contratado, que não poderá interromper a prestação dos serviços ou fornecimento, tendo em vista o principio da continuidade da prestação dos serviços públicos, sendo o contratado obrigado a suportar os encargos financeiros gerados, podendo ser objeto de futura ação indenizatória.

Diante de todo o estudo ora apresentado, evidentemente que muito do que foi explanado ainda é motivo de divergências entre doutrinadores, operadores do Direito, gestores públicos e as Cortes de Contas de nossos estados.

Entretanto, o presente estudo procurou não abordar assiduamente os conflitos doutrinários em evidência, adotando uma posição mais ortodoxa acerca das exigências expressa ou tacitamente impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal nos procedimentos licitatórios e nos contratos administrativos.

Alguns comandos da Lei Complementar 101/00, que influenciam diretamente a fase interna da licitação, ainda não ganharam a corporificação necessária que sua importância merecere. Decisões recentes dos Tribunais de Contas do país ainda recomendam aos gestores públicos o cumprimento das exigências ora descritas no estudo, quando na verdade deveriam impor tais medidas.

Fica evidente que, toda a complexidade imposta pela Lei de Responsabilidade Fiscal na fase interna da licitação, não é mera burocratização do procedimento, mas sim, atos necessários para a busca da transparência, responsabilidade e eficiência na gestão pública.

Apesar da Lei Nacional de Licitação já ter previsto restrições efetivas para o cumprimento dos princípios norteadores do procedimento licitatório, a Lei de Responsabilidade Fiscal procurou corporificar os princípios ora citados, exaltando ainda mais a importância dos princípios da moralidade, publicidade e eficiência da gestão pública, através do planejamento e transparência conforme expressamente disposto no artigo 1º da Lei Complementar 101/00.

Referências
1.
OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
2. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, p. 86
3. OLIVEIRA, Regis Fernandes. Curso de Direito Financeiro, p. 476 e 477.
4. Idem, p. 395
5. Apud MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Eficácia nas licitações e Contratos, 2005, p.753.
6. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A lei de responsabilidade fiscal e seus princípios, p. 93
7. MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Eficácia nas Licitações e Contratos. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
8. RAMOS NETO, Plínio Valente. Influxos da Lei de Responsabilidade Fiscal no regime das Licitações e Contratos Administrativos – Inteligência do Art. 42 da LRF, p.413
9. Artigo 80, §1º, do Decreto-Lei 200/67
10.CRUZ, Flávio da Cruz (coordenador). Lei de Responsabilidade Fiscal Comentada, p. 171
11. OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro, p. 502.

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