Consciência social

As leis brasileiras deveriam seduzir e educar

Autor

  • Cláudia Honório

    é procuradora do Município de Curitiba advogada no escritório Clèmerson Merlin Clève Advogados Associados em Curitiba especialista em Direito Constitucional pela UniBrasil e mestre em Direito do Estado pela UFPR

21 de setembro de 2009, 7h09

O projeto de lei recentemente aprovado na Câmara Municipal de Curitiba, que proíbe o consumo de cigarros, ou qualquer produto fumígeno, em recintos de uso coletivo público ou privado do Município tem sido alvo de críticas, divididas entre aqueles que defendem a autonomia individual e aqueles que, em nome da saúde, festejam a proibição. Preferências pessoais à parte, o projeto de lei enseja reflexões sobre a própria atividade legislativa.

Em um Estado de Direito, a lei é absolutamente relevante para a existência de segurança jurídica e ordenação da vida em coletividade — fixa o que pode/deve ou não pode/não deve ser feito, de que modo pode/deve ser feito e qual a conseqüência da não observância do prescrito. Além de ser instrumento de ordenação social, pode possibilitar as transformações políticas, econômicas e sociais sonhadas no momento constituinte.

As leis conformam desejos e são o resultado textual de uma batalha envolvendo interesses individuais e coletivos. Toda lei, por mais simples que seja, é uma intervenção no cotidiano, uma pauta de conduta — e, por essa razão, os cidadãos e o Judiciário devem estar sempre alertas para evitar abusos. Permite-se a limitação da esfera individual por meio de leis para que seja possível a própria vida em sociedade. Ademais, em um sistema democrático, as leis são elaboradas pelo povo (por meio de seus representantes nas casas legislativas), que deseja e sofrerá as conseqüências da norma elaborada — ou seja, os atos de limitação têm origem e destino na própria sociedade, sendo, por isso, dotados de legitimidade.

A atividade legislativa torna-se problemática, entretanto, quando a limitação do cotidiano é abusiva, desrespeita as regras de competência e/ou processo legislativo fixadas pela Constituição, não reflete a vontade popular ou mesmo quando o conteúdo do ato, apesar de ser juridicamente conforme a Constituição, não é razoável ou recomendável no sentido político.

Não é de hoje a multiplicação de leis sobre os mais diversos temas. Isso poderia significar que uma sociedade é bem ordenada, mas, no cenário brasileiro, revela que a sociedade é, em geral, mal ordenada. Há muitas razões para tal afirmação: na maioria dos casos, falta reflexão sobre o conteúdo da lei, os espaços hermenêuticos do texto e consideração do conjunto normativo já existente sobre a matéria; raramente se investiga a possibilidade de eficácia da norma ou sua relação com seus destinatários; nota-se despreparo quanto à técnica legislativa, que diz respeito à redação e à clareza das leis; prevalece o descaso em relação à responsabilidade e às tarefas atribuídas ao legislador. Todos esses elementos são frequentemente deixados em livros, pois o importante parece ser solucionar de imediato um problema por meio da criação de uma lei.

Assim, sobressaem leis — na maioria das vezes, no calor de episódios de comoção social — sem observância da razoabilidade, que impõem ideais perfeccionistas ou mesmo destoam do querer social. Tem-se notado no Brasil uma profusão de leis autoritárias, do tipo “tudo ou nada”, mas acompanhadas de justificativas simpáticas, como a proteção da saúde pública e do meio ambiente, por exemplo. As leis a que faltam seriedade, razoabilidade ou legitimidade acabam não sendo reconhecidas pelos destinatários – “não pegam”. Impõem-se apenas pela força das penalidades, quando o caminho deveria ser o da sedução e o da educação dos cidadãos.

Exemplos de descrédito são a “lei seca” e a lei paranaense que obriga a tradução, para o português, de palavras em idiomas estrangeiros. Será que a esses diplomas juntar-se-á a lei antifumo? Ainda, a recém-publicada lei do mandado de segurança, ao invés de aprimorar o instituto, parece ter trazido ainda mais problemas. Constata-se não ser suficiente que a lei siga todos os trâmites formais e seja válida; é preciso que seja também razoável e reta, tanto do ponto de vista constitucional quanto político.

Na maioria das vezes por conta da falta de seriedade e de preparo do legislador, a lei — e, em última análise, o direito — acaba sendo desvalorizada pelos cidadãos, que perdem o interesse na atividade legislativa e na democracia. Escândalos no Legislativo contribuem muito para esse cenário, ao enfraquecerem a representatividade do povo e o desempenho, a contento, da função legislativa. O resultado são leis capengas, que prejudicam não apenas os cidadãos, mas o próprio Estado. Instala-se um ciclo vicioso: a lei é criada sem o cuidado necessário e, por isso, precisa de outra lei para corrigir omissões, sendo também inadequada.

Entretanto, as falhas são sempre oportunidades para reflexão e propostas. É por isso que cabe ressaltar a importância de — tanto por parte do legislador e seus assessores, quanto dos advogados públicos e integrantes do Poder Judiciário — ser estudada a atividade legislativa e seu devido processo. Cita-se, por exemplo, o trabalho de comissão de juristas para reforma do Código de Processo Penal, espaço de diálogo para que a norma responda adequadamente à realidade e ao futuro que se quer.

Com o estudo para o aprimoramento das leis, busca-se resgatar a credibilidade e a própria razão de ser da função legislativa; realizar, na medida do possível, o processo democrático, envolvendo o cidadão na ordenação social; coibir o abuso e o autoritarismo na elaboração e na aplicação da lei. O cuidado (ou a falta de cuidado) na elaboração das leis revela compromisso (ou falta de compromisso) com os valores de um Estado Democrático de Direito.

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    é procuradora do Município de Curitiba, advogada no escritório Clèmerson Merlin Clève Advogados Associados, em Curitiba, especialista em Direito Constitucional pela UniBrasil e mestre em Direito do Estado pela UFPR

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