Teoria da Desconsideração

Desconsideração da personalidade Jurídica

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13 de setembro de 2009, 7h06

O tema referente à desconsideração da personalidade jurídica surgiu pela primeira vez, no direito norte-americano, com base na teoria do disregard of legal entity estabelecida na tese do Professor Wormser, segundo a qual “lifting the veil of the corporate entity, we discover the truth”. Em outras palavras, a mencionada teoria demonstrou que muitas sociedades com personalidade jurídica faziam uso de uma máscara para esconderem a sua verdadeira razão de existir.

A sociedade é um ente legal, com realidade no mundo jurídico¹, que foi criada para facilitar as relações jurídicas e econômicas entre as pessoas, sendo o maior meio de geração de riquezas no mundo. Assim, quando dotada de personalidade jurídica, a sociedade tem capacidade para se tornar sujeito de direito e para exercer direitos e obrigações, distinguindo-se, portanto, da figura de seus sócios e possuindo patrimônio próprio. Por isso é dito que a pessoa jurídica, obviamente, não tem uma realidade física, como das pessoas naturais, mas é dotada do mesmo subjetivismo outorgado às pessoas naturais para atuar no mundo jurídico.

Todavia, quando essa pessoa jurídica, em prejuízo de seus credores, desvirtua de sua função para a qual foi criada, ou seja, quando não tenha sido constituída para simplificar os negócios em comum de seus sócios e facilitar as relações jurídicas e econômicas, deve ser desconsiderada para que apareça a realidade. Assim, a desconsideração da personalidade jurídica significa abstrair, momentaneamente, a autonomia da pessoa jurídica diante de seus respectivos sócios, em razão do desvirtuamento de sua função.

Não se trata de uma teoria contra a separação dos sujeitos (i) sociedade e (ii) seus sócios. A aplicação dessa Teoria não visa a anulação da personificação jurídica, mas à declaração provisória da ineficácia dessa personificação em um caso concreto.

Em outras palavras, a Teoria em questão permite ao magistrado, naquele caso concreto de sua competência, subestimar a personalidade jurídica para reprimir fraude ou abuso, sem que isso enseje a extinção da personalidade jurídica. Não basta que a sociedade pratique um ato ilícito qualquer, mas sim que ela seja constituída e/ou utilizada com finalidade diversa daquela para a qual o direito permite a sua criação.

Por isso, percebe-se que a desconsideração ora em análise é distinta da despersonificação, esta sim tem como objetivo anular a personalidade jurídica por lhe faltar algum requisito essencial para sua existência, por exemplo, nos casos de invalidade do contrato social. De acordo com a Teoria da Desconsideração da personalidade jurídica, a abstração da personalidade jurídica só pode ser aplicada quando a sociedade — dotada de personalidade jurídica — for utilizada de forma abusiva, desvirtuando-se de sua função, em prejuízo aos interesses de credores. Nesse particular, vale ressaltar que se abusa de um direito quando se utiliza dele de forma contrária à sua função social, jurídica ou ética.

Em outras palavras, a noção que representa o ideal originário da disregard doctrine é essa idéia de que a desconsideração da personalidade jurídica apenas pode ser aplicada quando houver a caracterização do abuso da constituição e/ou utilização da personalidade jurídica, sendo que, esse abuso da personalidade jurídica só se concretizaria quando houvesse a prova efetiva do dolo, ou seja, a comprovação cabal da atitude desonesta dos sócios em detrimento dos credores da sociedade.

Apesar de a noção ideal da disregard doctrine considerar e demonstrar que essa doutrina só pode ser aplicada quando há a caracterização do abuso de personalidade jurídica, há doutrina, jurisprudência e dispositivos legais que admitem a aplicação dessa Teoria em situações em que há simplesmente a prática de atos ilícitos e/ou a infração dos estatutos ou do contrato social da sociedade, como nos casos em que há atos praticados com excesso de poder ou abuso de direito.


Como já mencionado, as pessoas jurídicas são uma realidade no mundo jurídico, porque possuem capacidade de sujeito de direito e patrimônio próprio, sendo que o seu objeto social será executado por seus administradores. Diante disso, há situações em que os administradores da pessoa jurídica podem agir ilicitamente, gerando a sua responsabilidade própria perante terceiros.

Os atos praticados pelos administradores, dentro do objeto social da pessoa jurídica, porém fora dos limites de atuação desses, são considerados atos ilícitos, porque realizados com excesso de poder. Por isso, esses atos não devem vincular a sociedade e, portanto, podem ser oponíveis aos terceiros prejudicados. Podemos pensar na suposição em que uma sociedade preveja em seu contrato social que seus administradores não podem prestar aval. Não obstante essa limitação de poder, um administrador dá essa garantia cambiária, em uma nota promissória, para estabelecer negócio com terceiro. Tal caso é hipótese da prática de excesso de poder e não pode vincular a sociedade.

Todavia, há casos em que o ato exercido por administrador, com excesso de poder, não poderá ser oponível a terceiros e vinculará a sociedade. Nesse particular, Luiz Gastão Paes de Barros Leães ensina que “a limitação dos poderes de administração é somente oponível a terceiros que tenham dela conhecimento, ou devessem ter em razão da profissionalidade de seus atos, dada a circunstância de que a verificação dos poderes dos diretores no Registro de Empresas não é fácil, nem entrou nos hábitos do homem comum”.² É exatamente isso que prevê o nosso Código Civil vigente, em seu Artigo 1015, ao tratar da Sociedade Simples:

Artigo 1.015. No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir.

Parágrafo único. O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses:

I – se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade;

II – provando-se que era conhecida do terceiro;

III – tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade.

Por sua vez, o Artigo 1016, do mesmo ordenamento jurídico dispõe que “Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções”. No mesmo sentido, determina o Artigo 158, da LSA, que:

Artigo 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder:

I – dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;

II – com violação da lei ou do estatuto.

Percebe-se, portanto, que os dispositivos legais registrados acima prevêem hipóteses de responsabilidade civil do próprio administrador, em razão de ato praticado por este contra o pacto social. Assim, ressalta-se que essas situações não são casos de desconsideração da personalidade jurídica, para atingir o patrimônio de seus sócios/administradores, mas sim de imputação direta da responsabilidade à pessoa física.

Ainda sobre a responsabilidade civil dos administradores que praticam atos com excesso de poder, deve-se salientar as hipóteses em que a prática desses atos ilícitos poderá gerar a imputação desses atos às respectivas sociedades, aplicando-se, para tanto, a Teoria da Aparência. Nos casos em que os atos praticados em violação ao pacto social forem ratificados, expressa ou tacitamente, pela sociedade, esta será responsável pelo excesso de poder realizado pelos seus administradores. Outrossim, Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa demonstra que, quando há a prática reiterada de um ato realizado com excesso de poder por um administrador, aquele ato ilícito poderá ser imputado à sociedade, em razão da Teoria da Aparência. Para exemplificar essa situação, o autor cita o seguinte caso julgado pelo STJ:


De qualquer maneira, no mundo jurídico real, a Teoria da Aparência tem sido aplicada, inclusive pelo STJ em um caso no qual um banco concedeu empréstimos a uma companhia aberta, havendo por ela assinado o presidente do conselho de administração. Para efeito de negócios de tal natureza e de tal volume era necessário, pelo estatuto social, prévia e expressa autorização do conselho de administração em reunião colegiada, o que jamais ocorrera. As operações foram regularmente pagas pela empresa até que ela descobriu que eram o resultado de esquema fraudulento capitaneado por aquele administrador, em proveito próprio – ocasião em que suspendeu o pagamento das operações então vencidas. Como a prática havia durado algum tempo e se repetido por algumas vezes, o Tribunal entendeu de aplicar a Teoria da Aparência, baseado na alegação de que teria nascido um costume entre as partes, que obrigava a sociedade mutuaria³.

Portanto, pode-se dizer que, apesar do Artigo 47, do CC/2002 determinar que “Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo”, não se pode fazer uma interpretação literal desse dispositivo, concluindo, pela lógica, que a pessoa jurídica nunca será responsabilizada pelos atos praticados, com excesso de poder, por seus administradores.

De qualquer forma, quando imputada a responsabilidade civil do administrador, em razão da prática de ato com excesso de poder, deve ficar claro que, nesse caso, trata-se de uma imputação direta da responsabilidade do administrador pela prática de ato ilícito, e não da aplicação da disregard doctrine.No mesmo sentido, poder-se-á se concluir no que tange aos atos praticados com abuso de direito, mediante a análise da Teoria dos Atos Ultra Vires.

Diferentemente dos atos praticados com excesso de poder, os realizados com abuso de direito são os atos praticados pelos administradores da pessoa jurídica alheios ao objeto social dela. A pessoa jurídica, por intermédio de seus administradores, atua fora daquilo que constitui o seu objeto e, portanto, conclui-se que ela não atuou.

Segundo a Teoria dos Atos Ultra Vires, a pessoa jurídica apenas tem capacidade para se responsabilizar pelos atos praticados que envolvam os fins para os quais foi constituída. Consequentemente, ela não tem responsabilidade pelos atos praticados fora de seu objeto social, ou seja, com abuso de direito.

Lado outro, da mesma forma como foi pontuada a questão dos atos praticados com excesso de poder, pode acontecer que os terceiros – de boa-fé – prejudicados com o ato praticado em abuso de direito não percebam que o respectivo negócio jurídico realizado entre ele e a sociedade, por intermédio de administradores, era alheio ao objeto social da pessoa jurídica. Por isso:

[…] expressiva corrente doutrinária bem como a jurisprudência têm se baseado na teoria da aparência jurídica para resolver essas questões que se encontram no campo dos atos ultra vires e dos atos cometidos com abuso de poder. De acordo com essa teoria, devido à impossibilidade prática de terceiros conhecerem com exatidão as dimensões dos poderes dos administradores, a sociedade responde perante terceiros quando (i) houver tirado proveito; (ii) houver ratificado o ato; ou, (iii) o ato atingiu terceiro de boa-fé.[4]

Portanto, com exceção da possibilidade de se aplicar a Teoria da Aparência, os atos praticados pelos administradores, em nome da sociedade, com abuso de direito, responsabilizarão civilmente aqueles perante terceiros. Assim, reprisa-se que, nos termos da Teoria dos Atos Ultra Vires, a imputação da responsabilidade civil dos administradores, em razão de terem praticado ato alheio ao objeto da sociedade, não se trata de aplicação da disregard doctrine.

Em suma, conclui-se que a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica não corresponde com a imputação direta da responsabilidade civil de administradores de sociedade.

Referências bibliográficas:
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REQUIÃO, Rubens. Aspectos modernos de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1977.

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ZAITZ, Daniela. Responsabilidade dos Administradores de Sociedades Anônimas e por Quotas de Responsabilidade Limitada, publicado na Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. 740.

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