Funil fiscal

Represamento leva caos a varas tributárias no Rio

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8 de setembro de 2009, 11h25

A luta desigual do Judiciário contra o acúmulo de processos não poupa ninguém, nem mesmo os tribunais mais abastados. É o caso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, exemplo de organização, de velocidade nos julgamentos e de controle de produtividade dos magistrados. Lá, muitas ações não costumam demorar mais do que seis meses para serem julgadas em definitivo na primeira instância, enquanto na Justiça paulista, por exemplo, o mesmo caminho pode levar dez anos para ser percorrido. Mas a única corte no país que conquistou autonomia financeira e tamanho nível de eficiência também tem seu calcanhar de Aquiles. Processos parados há mais de 30 anos abarrotam as estantes das duas únicas varas da capital que julgam questões tributárias. A situação levou a seccional da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro a se unir às Procuradorias do estado e da capital para pedir oficialmente ao tribunal que distribua os quase 1 milhão de processos estocados entre as 15 Varas de Fazenda Pública, ou que instale novas varas específicas para casos fiscais. Em resposta, a presidência mobiliza, desde junho, um mutirão de juízes e servidores, que apesar do esforço, não têm vencido a demanda.

O pedido da OAB foi entregue em dezembro ao então presidente do TJ, desembargador Murta Ribeiro, assinado pelo presidente da seccional, Wadih Damous, pela procuradora-geral do estado, Lúcia Léa Guimarães e pelo procurador-geral do município do Rio de Janeiro na época, Julio Rebello Horta. “Chegamos ao nível máximo de não-funcionamento das varas. Nem contribuintes, nem a Fazenda estão satisfeitos”, afirmou a presidente da Comissão de Assuntos Tributários da OAB, Daniela Gusmão. Segundo levantamento feito pela comissão com base em números do próprio tribunal, a 12ª Vara de Fazenda Pública, que recebe processos fiscais envolvendo apenas o município, acumulava 813,7 mil ações esperando julgamento até outubro do ano passado. Já a 11ª Vara de Fazenda Pública, encarregada das ações tributárias ligadas ao estado, tinha 155,6 mil processos estocados. A média do estoque de cada uma das 13 demais varas de fazenda pública era de apenas 7,9 mil processos no mesmo período.

Para advogados e procuradores, o abismo entre os acervos das varas tributárias e os das outras varas de fazenda só seria diminuído com o fim da especifidade das serventias. A 11ª e a 12ª Varas foram criadas em 2000 justamente para evitar o acúmulo de processos. Na época, 328,8 mil executivos fiscais municipais e 37,6 mil estaduais estavam espalhados pelas dez varas públicas de então. Responsáveis por um terço dos ajuizamentos no país — segundo levantamento feito pelo programa Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça —, as execuções fiscais preocuparam a presidência do TJ-RJ, que instalou varas exclusivas para essas ações. A estratégia, porém, não deu certo. “A atual demanda jurisdicional impõe a imediata instalação de pelo menos duas novas Varas de Fazenda Pública de competência tributária”, diz o pedido entregue ao TJ. Desde 2006, nenhuma das três novas varas criadas pelo TJ na capital puderam receber processos fiscais.

Mas a criação de novas varas tributárias está longe dos planos do tribunal. Diante dos protestos, a presidência optou por instalar mutirões que reduzam o acervo de execuções fiscais, com o auxílio de juízes, servidores e funcionários emprestados pela Prefeitura do Rio. Juízes e servidores lotados em outras varas fazem duas horas-extras por dia nas serventias fiscais, na tentativa de diminuir o estoque. O primeiro alvo foram as execuções fiscais estaduais. O TJ convocou sete juízes, 16 serventuários e 57 estagiários para auxiliar a 11ª Vara, além do pessoal já alocado na serventia. Já o mutirão que cuidará das execuções municipais começou há apenas 15 dias, de acordo com o procurador-geral carioca, Fernando dos Santos Dionísio.

A Corregedoria-Geral de Justiça reservou um dia a cada quinzena na 11ª Vara para cuidar do acervo. Pelo menos duas vezes por mês, a serventia deixa de receber processos para se dedicar exclusivamente ao processamento das ações, como explica o corregedor-geral, desembargador Roberto Wider. “Não adianta só criar mais varas. Em vez disso, colocamos dois, quatro juízes, 20, 60, 80 funcionários. A intenção é reduzir o acervo a um patamar processável por um cartório normal, de forma que um juiz dê conta”, explica.


O esforço empreendido, no entanto, não tem conseguido tirar a água do barco no ritmo da inundação. Entre janeiro e agosto deste ano, o cartório da 12ª Vara, responsável pelas ações envolvendo o fisco municipal, enviou 33,8 mil processos concluídos para decisão final do juiz titular Adolpho Mello Junior, de acordo com relatório mensal de produtividade divulgado pela Corregedoria-Geral de Justiça. A média é de 4,2 mil ações enviadas por mês para serem finalizadas. A Prefeitura do Rio, porém, manda todos os anos de 80 mil a 120 mil execuções fiscais à já sobrecaregada vara, o que perpetua o inchaço do acervo. 

Se o estoque menor, a produção na 11ª Vara também é inferior à da 12ª, o que mantém a demora no escoamento. Nos primeiros oito meses do ano, 23,7 mil processos envolvendo o fisco estadual foram preparados para decisão final. A média mensal foi de 3 mil feitos colocados à disposição do juiz João Luiz Amorim Franco, titular da vara, para a última manifestação.

A quantidade é insuficiente para reduzir o arquivo, segundo o procurador-chefe da Procuradoria da Dívida Ativa estadual, Nilson Furtado. “Os processos precisam rodar, senão os mandados não são cumpridos. Houve casos em que o devedor levou dois anos para ser citado, o que impediu que localizássemos seus bens, porque ele já tinha mudado de endereço”, conta. Para que isso não aconteça, a cada mês, mais de cinco mil feitos devem chegar à Procuradoria para providências, avalia Furtado. Mas, segundo suas contas, mesmo depois dos mutirões que começaram em junho, o número está aquém do ideal. Em janeiro, 638 execuções chegaram da Justiça à PGE pedindo a próxima providência para o andamento. Em fevereiro, foram 520. Em março, 944, abril, 619, maio, 646, junho, 1.785, julho, 3.933 e agosto, 3.983 — números que não chegaram perto do ideal considerado pela Procuradoria.

A demora é tão grande que a Procuradoria estadual chegou a ser dispensada de continuar recorrendo em alguns casos. A Lei 5.117/07 autorizou os procuradores a desistirem de ações ajuizadas até 1997 ou quando os executados não tivessem sido ainda encontrados. “Há processos parados desde o fim da década de 70, muitos dos quais não têm mais possibilidade de cobrança. Mas também há muitos processos em que o estado já pediu extinção ou concedeu anistia, e que precisam ser baixados”, diz Furtado.

Se para o fisco a situação é ruim, para os contribuintes é pior. É o que afirma o advogado Luiz Gustavo Bichara, membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB-RJ. “Todos os pedidos de penhora online são deferidos em favor da Fazenda, mas os levantamentos de depósitos em caso de vitória do contribuinte levam anos para serem autorizados”, diz. As penhoras afetam principalmente as empresas devedoras de ICMS, que acabam tendo depósitos em conta bancária bloqueados pela Justiça “mesmo antes de serem apresentados bens à penhora. O contribuinte é tratado como um devedor contumaz”, protesta o tributarista.

Saída polêmica
Parte da solução, como propõe o tribunal, é que o Poder Público pare de ajuizar execuções. “Propomos ao estado e ao município que simplesmente protestem. Não precisam entrar com ação”, diz o corregedor-geral, Roberto Wider. “Protestou, o devedor paga, porque tem interesse”.

A medida já vem sendo usada pelo governo do estado desde junho, mas de forma ainda tímida. A Lei estadual 5.351/08, publicada em dezembro, permite que a Procuradoria envie o nome de devedores inscritos em dívida ativa aos cartórios de protestos. A PGE vem usando a medida apenas nos casos de parcelamentos rompidos pelos contribuintes. Por mês, cerca de 500 nomes são protestados pelo fisco, como conta o procurador Nilson Furtado. “Ainda estamos criando checagens para fazer a remessa de forma eletrônica, por meio de um convênio com os cartórios”, diz. Segundo ele, 10% dos devedores protestados quitam ou parcelam as dívidas.

Com os resultados positivos, a PGE quer mais. Um acordo a ser firmado até o fim de outubro permitirá que o fisco increva os nomes dos devedores em cadastros de proteção ao crédito, como o da Serasa. A medida já foi adotada em estados como Goiás e Rio Grande do Norte, assim como no município paulista de São Vicente.


Por serem ferramentas de cobrança de dívidas cíveis e não fiscais, porém, o protesto e a negativação de contribuintes pode trazer dor de cabeça à Fazenda fluminense. A Justiça do estado já concedeu duas liminares a devedores que contestaram a negativação. No ano passado, o Tribunal de Justiça de São Paulo também condenou o município de São Vicente a indenizar uma imobiliária por danos morais depois que o fisco protestou uma dívida já paga de IPTU. A corte ainda considerou que o poder público possui mecanismo próprio de cobrança de dívidas, a Lei de Execuções Fiscais — Lei 6.830/80 —, o que levou à declaração de inconstitucionalidade da norma municipal que permitiu os protestos — a Lei Complementar 263/99, segundo o jornal Valor Econômico

O fisco do município de São Paulo também tentou implantar a novidade em 2005, mas suspendeu a medida no ano seguinte, com medo de possíveis pedidos de indenização na Justiça. O governo estadual de São Paulo, que também adotou a ideia temporariamente, parou de protestar devedores depois de uma liminar concedida à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, em 2006, pelo TJ-SP.

Segundo Furtado, porém, a Procuradoria fluminense está preparada para a briga. “Quando a Fazenda protesta, dá publicidade maior ao mercado em relação à dívida tributária, que tem preferência de pagamento em relação a outros créditos”, justifica.

A Prefeitura do Rio também admite estudar a possibilidade, mas lembra que a ferramenta não diminui a quantidade de processos na Justiça. “O protesto não nos desobriga de ajuizar as execuções, o que é previsto em lei”, diz o procurador-geral do município, Fernando Dionísio. Segundo ele, o que irá acelerar o julgamento das execuções na Justiça será a digitalização dos processos. Para que isso aconteça, a Prefeitura trabalha em conjunto com o TJ para implantar um sistema eletrônico de execução fiscal. “A ideia é abrir um novo cartório, não necessariamente uma vara, totalmente digital”, explica. O projeto deve começar a funcionar no ano que vem. “Processos em papel precisam ser despachados um a um pelo juiz. Já os processos eletrônicos idênticos podem ser resolvidos por um único despacho”.

Medidas alternativas
Diante do represamento na Justiça, a procuradoria estadual escolheu tentar evitar os ajuizamentos. O estado só executa dívidas acima de R$ 4 mil. Devedores de valores inferiores são mantidos no cadastro de inadimplentes, mas não sofrem ação judicial. A única restrição é a não obtenção de certidões negativas de débitos. Por isso, o índice de recuperação de créditos fiscais na dívida ativa acaba sendo de 0,7% ao ano.

Na Prefeitura, porém, devido ao baixo valor cobrado de cada proprietário, o piso mínimo para o ajuizamento de execuções cobrando IPTU — responsável pela maior parte do volume de inscrições em dívida ativa — pela Procuradoria-Geral do Município do Rio é de apenas R$ 120. Assim, poucas dívidas não são ajuizadas, já que o valor médio do imposto na cidade é de R$ 400 para os cerca de 3 milhões de imóveis cadastrados. A dívida ativa municipal soma R$ 12 bilhões, dos quais 1,8% é recuperado a cada ano, de acordo com o procurador-geral Fernando Dionísio.

Os programas de parcelamento também têm evitado execuções. O município do Rio já formalizou, nos primeiros seis meses do ano, 1,12 milhão de negociações com devedores inscritos na dívida ativa. Com parcelas de valor mínimo de R$ 10 para negociações de IPTU e de R$ 30 para ISS, o programa permite dividir os montantes em até sete anos, de acordo com o Decreto 30.646/09, prorrogado nesta sexta (4/9) pelo Decreto 31.040/09. A Prefeitura conta ainda com um programa de dívida ativa itinerante que passa de duas a três semanas em cada ponto da cidade, facilitando os acordos.

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