Família fora da lei

Novo código perdeu a chance de aceitar união gay

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6 de setembro de 2009, 9h30

Spacca
Alessandra Bastos - Spacca

O Código Civil de 2002 trouxe importantes mudanças na área de família. Permitiu, por exemplo, a alteração do regime de casamento e também tirou a importância de atribuir culpa pelo término da relação. Mas a lei falhou em dois pontos, pelo menos. Perdeu a oportunidade de reconhecer a união entre pessoas do mesmo sexo e também criou uma diferenciação entre o casamento e a união estável.

A avaliação é da advogada de família Alessandra Rugai Bastos, especialista em sucessões. Ela aposta que os dois erros apontados no Código Civil de 2002 serão corrigidos pelo Supremo Tribunal Federal. Um deles, inclusive, já bateu às portas da corte. Já tramita no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra dispositivo do código que diz que a união estável só se dá entre pessoas do mesmo sexo. "Não podemos deixar essas novas famílias à margem da lei", reclama Alessandra. A outra falha apontada pela advogada no código ainda não chegou ao Supremo, mas a inconstitucionalidade da diferenciação entre a união estável e o casamento já está sendo reconhecida pelas instâncias inferiores. A Constituição Federal de 1988 coloca no mesmo patamar o casamento civil e a união estável.

Em entrevista para a Consultor Jurídico, Alessandra discorreu sobre as alterações trazidas pelo Código Civil de 2002. Comentou que hoje é comum as pessoas buscarem contratos de união estável e explicou por que não ajuda muito fazer contrato de namoro. 

Alessandra Rugai Bastos tem 37 anos e se formou em Direito pela Universidade de São Paulo em 1995. Em 2003, fez especialização em Processual Civil pela PUC-SP. Trabalhou durante três anos no escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados. Em 2006, se uniu a outras duas advogadas também do Machado Meyer para montar o Guimarães Bastos Chieco Advogados. Ela também é relatora do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP 

Leia a entrevista

ConJur — O Código Civil de 2002 atende à sociedade de hoje?
Alessandra Bastos  
De maneira geral, sim, principalmente no âmbito de família e sucessões. Mas não posso dizer que ele é perfeito. A nova lei perdeu a oportunidade de reconhecer as uniões homoafetivas, que são uma realidade da nossa sociedade atual e o Direito não pode virar as costas para isso. Nas uniões gays, a segurança jurídica ainda é nefasta. O comum hoje é não reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo, mas aceitar o relacionamento como sociedade de fato. Mais recentemente, começo a ver algumas decisões reconhecendo a união gay e trazendo o caso para o campo do Direito de Família. No Rio Grande do Sul, que é mais vanguardista, há um volume considerável de decisões nesse sentido.

ConJur — Qual a principal inovação trazida pelo Código Civil de 2002 com relação ao Direito de Família?
Alessandra Rugai Bastos A mais significativa é a possibilidade de alteração do regime de casamento. Em 2002, quando o novo Código Civil foi promulgado, uma das principais discussões era saber se aqueles que casaram sob a égide do Código de 1926 poderiam também alterar o regime de separação total para separação parcial de bens, por exemplo, já que o Código anterior não previa isso. Hoje, a jurisprudência diz que todos os casais podem alterar o regime de casamento, independente da data da união. A alteração é feita por meio de ato judicial. Precisa ser um pedido conjunto do casal, e não litigioso. Para autorizar, o juiz antes analisa se não há direitos de terceiros envolvidos.

ConJur — Há muitos pedidos de alteração?
Alessandra Bastos —
 Sim. É uma das principais mudanças do novo código porque a legislação precisa acompanhar a realidade da vida moderna. A vida muda e, às vezes, casamentos celebrados há 15 ou 20 anos não estão mais na mesma situação patrimonial do início do matrimônio. Normalmente a mudança se dá pela visão divergente do marido e da mulher sobre a condução dos bens. Existe marido que gosta de fazer investimentos arriscados na bolsa. A sua mulher, por outro lado, é mais conservadora e isso eventualmente gera atritos. Para resolver, hoje já dá para mudar do regime da comunhão parcial de bens para o da separação total. A partir daí, criam-se dois ciclos independentes patrimoniais que pode ser uma solução para os conflitos.

ConJur — Assim como divórcios consensuais, essa alteração não pode ser feita direto no cartório?
Alessandra Bastos — Infelizmente, a Lei 11.441/07, que permitiu o divórcio em cartório, não interferiu nessa questão, mas já deve haver alguma proposta para permitir a alteração por escritura pública. Se esse procedimento for feito na via administrativa, será possível desafogar cada vez mais o Judiciário. Outra questão que não ficou clara com a lei do divórcio no cartório é a partilha de bens. Tem juiz que entende que o divórcio pode acontecer pela via administrativa, mas a partilha tem de ser feita na Justiça. Eu não concordo. Se a partilha também é consensual, pode ser feita junto com o divórico no cartório.

ConJur — Outros países já permitem o divórcio direto no cartório?
Alessandra Bastos —
 Sim, vários, mas sempre quando não têm interesses de incapazes envolvidos. Na Espanha, por exemplo, partilha de herança é sempre feita extrajudicialmente. No Japão, a separação consensual também é processada assim.

ConJur — Há reclamações de casais que se divorciaram no cartório e tiveram problemas porque a escritura pública não foi reconhecida por outros países, que exigiam o processo judicial. 
Alessandra Bastos — Quando se tem um ato perfeito no país, não há motivos para que a jurisdição estrangeira faça outras exigências. É desnecessário criar novas condicionantes que não se tem no Brasil. Se a separação foi feita aqui e não precisou de chancela da Justiça, não acho legítimo que um tribunal estrangeiro faça nova exigência. O mesmo acontece com casamentos. Se um casal casou nos Estados Unidos, por exemplo, precisa averbar a certidão de casamento para ela ter efeitos no Brasil. Não precisa e nem pode casar de novo aqui.

ConJur — Qual o perfil das pessoas que procuram um advogado para fazer planejamento sucessório?
Alessandra Bastos — Geralmente, são empresários, homens, com idades entre 45 e 50 anos e filhos crescidos. 

ConJur — Há muita procura pelos contratos de união estável?
Alessandra Bastos — Esse tipo de união é muito comum atualmente. O regime mais usual é o da comunhão apenas dos bens adquiridos durante a união estável, o chamado regime de comunhão parcial de bens. É uma forma de cada um reservar seu patrimônio pessoal. Nesse regime, nem mesmo a herança, mesmo adquirida depois da união, entra na partilha, já que é considerada bem particular.

ConJur — Como fixar o marco inicial da união estável?
Alessandra Bastos —
Não há um prazo ou uma fórmula. O novo Código Civil define a união estável como a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e de uma mulher, sem vínculo matrimonial, convivendo como se fossem casados, sob o mesmo teto ou não, constituindo, assim, sua família de fato. Ou seja, a união estável é todo relacionamento público com o objetivo de constituir família. O que não significa, necessariamente, ter filhos ou morar juntos. Fixar o marco inicial da união é uma das questões discutidas nas ações de reconhecimento e dissolução de união estável. Às vezes, é mais fácil, por exemplo, quando o casal faz um festa para marcar o início da união. Em outros casos, vale a data em que foram morar juntos ou que um entrou como dependente no plano de saúde do outro. Um fator determinante para o marco é a demonstração de dependência financeira. Não é um elemento sozinho que caracteriza, mas é um conjunto de fatos. O que é importante saber também é que a união estável não começa no momento em que um conhece o outro.

ConJur — Como diferenciar namoro de união estável? Contrato de namoro serve para isso?
Alessandra Bastos — No namoro, teoricamente, não tem dependência financeira. O contrato de namoro não adianta porque não é reconhecido pela Justiça. O que eu sugiro é a confecção de uma escritura onde se declara que o relacionamento não é união estável mas, se um dia virar, as regras dessa união já estão acordadas.

ConJur — Há diferenças entre união estável e casamento?
Alessandra  Bastos — No âmbito sucessório, sim. O novo Código alçou o cônjuge à condição de herdeiro necessário, independente do regime do casamento. Isso não aconteceu com o companheiro, que pode ser excluído do testamento e ficar sem a herança. Em alguns casos, quem se sai melhor é a companheira que, por conta da lei, pode ter um quinhão a mais da herança do companheiro, o que não aconteceria se os dois fossem casados. Essa diferença gera polêmica porque a Constituição equiparou a união estável ao casamento. O Código Civil não poderia diferenciar. A discussão já chegou na Justiça. Alega-se a inconstitucionalidade do dispositivo do Código Civil que faz a diferenciação. É uma das grandes polêmicas do Código Civil de 2002.

ConJur — Quais direitos tem a concubina?
Alessandra Bastos —
 Essa é uma questão polêmica no âmbito sucessório. Relacionamento contemporâneo ao casamento não constitui união estável. O Direito não pode chancelar uma situação irregular. Se eu fosse juíza, não saberia como resolver um imbróglio desses. É preciso sopesar tudo para não prejudicar nem a mulher e nem a amante, quando esta tem um histórico de relacionamento e até filhos. 

ConJur — A Justiça tem optado por destinar uma parte da herança para a amante na forma de indenização por serviços prestados.
Alessandra Bastos 
— Pode ser uma possibilidade para a companheira não ficar a mercê, mas aí o processo sai do campo do Direito de Família e entra para o Direito das Obrigações. Eu, particularmente, não gosto dessa expressão de serviços prestados. A pessoa teve convivência de anos, dividiu momentos e vai receber uma indenização por serviços prestados? Outra opção é fazer uma partilha territorial. Mas isso depende muito de cada juiz. Um mais conservador pode dizer que a relação paralela não tem efeitos jurídicos e outro, mais vanguardista, dizer que tem sim. O que é relevante na decisão é se a amante sabia que o homem era casado e, a partir daí, teve a opção de escolher manter o relacionamento. O que eu nunca vi é o Judiciário reconhecer a união estável paralela ao casamento

ConJur — A senhora comentou que uma das grandes falhas do Código Civil é não reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Esse assunto foi parar no Supremo. O que se pode esperar da corte?
Alessandra Bastos
— A minha expectativa é que os ministros votem pelo reconhecimento das uniões homoafetivas. Não podemos deixar essas novas famílias à margem da lei. A união gay encontra barreiras principalmente por causa de crenças religiosas, mas eu penso que o Supremo vai dar um jeito nisso. O clamor social é muito grande e temos ministros sensíveis na corte. É preciso dar segurança jurídica para os casais homossexuais.

ConJur — A guarda compartilhada dos filhos é bastante procurada por casais que se divorciam?
Alessandra Rugai Bastos — Sim. Os pais que optam por essa guarda desejam ter uma convivência maior com os filhos. Querem dividir a responsabilidade legal sobre os filhos e, ao mesmo tempo, compartilhar as obrigações pelas decisões importantes relativas à criança. Essa guarda depende sempre de comum acordo. Foi vetado o dispositivo que dizia que a guarda compartilhada podia ser fixada por determinação judicial, já que não é esse o objetivo, e sim compartilhar a convivência. É importante lembrar que a guarda compartilhada não exclui a pensão alimentícia. Mesmo que seja adotada, um dos cônjuges pode submeter ao juiz um pedido de pensão.

ConJur — A partir de qual idade a opinião da criança vale para definição da guarda?
Alessandra Bastos — Não existe uma idade estabelecida, mas não é comum crianças abaixo de sete anos serem consultadas por juízes. Com adolescentes, é mais complicado porque eles simplesmente decidem, independente do juiz, pegam a mala e vão para casa do pai ou da mãe. Quando o juiz acha necessário, ele pode pedir para psicólogos para ouvir crianças independentemente da idade. O que tem de prevalecer é o melhor interesse da criança, que precisa de estabilidade. Se essa criança já tem uma convivência consolidada com uma das partes, seja pai ou mãe, o entendimento dos tribunais é que ela deve permanecer onde está. É preciso consultar laudos para ver se as alterações não atrapalharão na rotina da criança. Os vínculos socioafetivos são sempre privilegiados e devem ser mantidos.

ConJur — O pai pode abrir mão da paternidade?
Alessandra Bastos — É muito difícil, pois o pai nunca perde o poder pátrio. É, na verdade, uma questão de ordem pública. Posso dizer que, em relação a investigação de paternidade, ele pode se recusar, mas pode ser compelido a fazer. O direito à paternidade na verdade é do filho, e não do pai. São os adultos que pedem o exame, mas o direito de conhecer os pais é um direito pessoal, indisponível e imprescritível da criança.

ConJur — É possível obrigar o pai a visitar seu filho?
Alessandra Bastos — Essa é uma situação delicada. É complicado determinar uma visita compulsória. A visitação não pode ser uma tortura. Tem de ser uma coisa saudável entre pai e filho. O que o juiz pode fazer é restringir o direito de visita quando o pai não o exercita.

ConJur — O pedido de indenização por dano afetivo é legitimo?
Alessandra Bastos — É uma opção. A ação, nestes casos, é de responsabilidade civil e não é comum. A condenação não vai obrigar o pai a amar o filho. Não existe sentença que resolva o problema da falta de amor. A sentença, na verdade, servirá apenas para punir o pai.

ConJur — Como está hoje a questão da fé conjugal?
Alessandra Bastos — No antigo Código, era comum, na separação litigiosa, se procurar um culpado. No novo Código Civil, foi criado um dispositivo que incorporou o entendimento já aplicado por muitos juízes de que pode ser decretada a separação do casal sem culpa. É possível reconhecer que a união acabou simplesmente por falta de afeto. A consequência disso é que o cônjuge que precisar receber pensão alimentícia porque não consegue prover o seu próprio sustento pode pedir, independente de ter culpa pelo fim do casamento. Pelo Código Civil de 1916, o cônjuge que fosse considerado culpado pelo fim do matrimonio não tinha direito à pensão.

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