Norma violada

Agravo atende ao direito quando é julgado prejudicado?

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31 de outubro de 2009, 20h09

Em todo empreendimento, para ter segurança, são imprescindíveis a hierarquia e a disciplina. O mesmo acontece quando se tratar de sistema visando a sua racionalidade. Visto assim, a hierarquia e a disciplina norteiam, objetivamente, a racionalidade do sistema jurídico.

Essa racionalidade, ou otimização, no Brasil, começou com o advento da Lei 8.952, de 13 de dezembro de 1994, no contexto da denominada “reforma do Código de Processo Civil”, criando um novel instituto processual chamado antecipação de tutela, previsto no artigo 273 do citado diploma legal.

À época, causou surpresa aos defensores de processos judiciais, que julgavam que a tutela jurisdicional somente era possível com a prolação de sentença judicial de mérito, mesmo que no limiar do processo já se mostrasse que tanto o autor ou réu poderiam usufruir do bem jurídico pedido.

Seguindo essa linha de racionalidade, o legislador brasileiro, atento, ainda, às discussões judiciais, dentre elas, a cautelar satisfativa, que esgotava em si o próprio objeto da tutela, que, para os positivistas, feria de morte o princípio da legalidade; à morosidade da justiça; aos direitos e garantias fundamentais, de aplicação imediata, previstos na Constituição Federal, promulgada recentemente em outubro de 1988, começou, paulatinamente desenhar o novo quadro processual que agilizasse a prestação jurisdicional eficiente. Em outras palavras, o legislador começou a impulsionar vetores de constitucionalização do direito infraconstitucional.

Daí se sucederam várias reformas no Código de Processo Civil e na própria Constituição, a exemplo da Reforma do Judiciário, visando, sobretudo, a atender os princípios da celeridade, efetividade (que dizer, tornar o Judiciário eficiente como órgão de Administração Pública que o é também) e economia.

Enfim, fazer o Judiciário brasileiro funcionar com agilidade.

Racionalidade do Sistema Judicial
A racionalidade de um sistema judicial obedece ao princípio da hierarquia dos órgãos que integram o Judiciário brasileiro. O exemplo mais contundente em atendimento a esse princípio é o da súmula vinculante, exarado no artigo 103-A, conforme a Emenda Constitucional n. 45, de 08 de dezembro de 2006: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício, ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei… .” Grifei.

Da mesma forma, a previsão estabelecida no artigo 557 do Código de Processo Civil, com a redação dada pela Lei nº 9.756, de 17 de dezembro de 1998, que assim diz: “O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. § 1º -A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso… .” Grifei.

No entanto, aqui e ali se observa, na legislação infraconstitucional, viés que escamoteia a Constituição, como essa citada acima, em que o relator negar seguimento a recurso que se tornou prejudicado, por motivo de atraso de julgamento do próprio tribunal (ausência de serviço público), violando, assim, o direito à tutela jurisdicional efetiva na perspectiva dos direitos fundamentais, à celeridade, ao contraditório, em síntese, ao devido processo justo.

Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha colocam a questão nos seguintes termos:[1]

“Questão interessante é a de saber qual o destino a ser dado ao agravo de instrumento pendente de julgamento no tribunal nos casos em que já sobreveio sentença no processo em que fora proferida a decisão interlocutória por ele impugnada. Isto porque não são raros os casos em que o tribunal, tendo notícia da prolação de sentença pelo juízo de primeira instância, entende, só por isso, que está prejudicado o agravo de instrumento. A questão se torna ainda mais interessante quando se acrescenta a ela um outro dado: e se contra a sentença superveniente não for interposto qualquer recurso? Qual o destino a ser dado ao agravo de instrumento?” Grifei.

Os referidos autores expõem várias soluções que vem sendo dado pelos tribunais, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça, mas sem pacificação.

Dentre elas, o de adotar os critérios da hierarquia e o da cognição exauriente. A sentença, para esse, “englobaria a decisão interlocutória impugnada – que fora proferida com base em juízo de cognição sumária -, de modo que o agravo de instrumento perderia o seu objeto”. É posição adotada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ao positivar no seu Regimento Interno esse entendimento, consoante o artigo 30, inciso XXIII, vazado nos seguintes termos:Ao relator incumbe: … XXIII – julgar prejudicado pedido ou recurso que haja perdido o objeto;”

O segundo critério, o da hierarquia, “a decisão do tribunal, seja a que acolhe ou a que o rejeita, substitui a decisão interlocutória, de modo que a sentença, por ter sido proferida por juízo singular, não poderia ser incompatível com a decisão tomada pelo órgão colegiado nos autos do agravo de instrumento”.

Adotando o entendimento da cognição exauriente, vislumbra-se a possibilidade de fraudar o contraditório, a ampla defesa e o acesso à efetiva prestação jurisdicional, pois basta que os servidores do tribunal acompanhem, pela internet, o desenvolvimento do processo, que teve decisão interlocutória impugnada, para levar ao conhecimento do relator que sentença do processo já teve sentença prolatada. Fácil. O jurisdicionado paga pelo serviço (preparo) e o Estado-Judiciário não presta o serviço público solicitado, dando a justificativa para tal ato de prejudicado.

A questão se torna mais preocupante quando o deslinde do caso necessita interpretação de matéria de direito.

Já o critério da hierarquia responde bem a questão da racionalidade, da eficiência e da disciplina do Judiciário.

Mas, antes de qualquer coisa, é preciso esclarecer que a hierarquia não viola o princípio da convicção do juiz de primeiro grau. Apenas racionaliza e disciplina o sistema jurídico, a exemplo da súmula vinculante, de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, do sobrestamento de recursos quando houver multiplicidade de deles com fundamento em idêntica controvérsia, entre outros.

Conforme dito acima, o critério hierárquico faz com o tribunal atenda o pedido do jurisdicionado por força da segurança que esse proporciona em razão de ser constituído de colegiado de juízes mais experientes. Ademais, o recurso visa obter uma segunda opinião técnica, de colegiado, que convença o jurisdicionado do acerto ou do erro da decisão de juiz monocrático.

Ao despachar o recurso com o dizer prejudicado, o Tribunal está negando vigência aos princípios constitucionais de acesso à efetiva tutela jurisdicional, da eficiência, do contraditório, da ampla defesa, que inclui a própria hierarquização do sistema jurídico, enfim, do devido processo legal justo. Uma ação em que pede tutela antecipada ou mesmo uma liminar em mandado de segurança o tribunal jamais poderá se furtar de julgar, com máxima urgência, o recurso de agravo de instrumento interposto da negativa de juiz monocrático. A resposta do tribunal, com o carimbo de prejudicial, ofende os ditos princípios acima expostos.

A razão dos direitos constitucionais
É sabido que o constitucionalismo surgiu para limitar o governo pelo Direito. Essa é a marca constante do constitucionalismo, desde sua origem, até os dias atuais, tendo como referências, para inibir a ação arbitrária do governo (Executivo, Legislativo e Judiciário), os direitos fundamentais.

Nesse ponto, interessa-nos focalizar apenas a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais.

Com efeito, a limitação imposta pelo povo[2] aos Poderes da União nada mais é que a objetivação dos direitos fundamentais, no sentido de que esses não pertencem apenas ao sujeito integrante do povo, mas a esse como um todo.

Nessa visão, Luiz Guilherme Marinoni, citando Vieira de Andrade, revela que “os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que estes são titulares, contudo valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins”.[3]

Assim, a Constituição, ao estabelecer uma prestação jurisdicional efetiva, como direito fundamental objetivo, impõe ao Judiciário a observação normativa máxima a esse direito, por força de que “a Constituição figura hoje no centro do sistema jurídico, de onde irradia, sua força normativa, dotada de supremacia formal e material. Funciona, assim, não apenas como parâmetro de validade para a ordem infraconstitucional, mas também como vetor de interpretação de todas as normas do sistema”.[4]

Portanto, Tribunal, ao negar julgamento por entender que o agravo de instrumento se tornou prejudicado em face de sentença terminativa ou definitiva de juiz de primeiro grau prolatada antes do julgamento de recurso de agravo de instrumento, viola a força normativa da prestação jurisdicional efetiva da Constituição Federal.


[1] Curso de Direito Processual Civil. 5ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2008, v. 3, p. 171.

[2] Artigo 1º, parágrafo único, da CF: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

[3] Técnica Processual e Tutela dos Direitos. 2ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.132

[4] Barroso,Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 363

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