As regras da ADO

A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão

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29 de outubro de 2009, 17h09

A Lei 12.063, de 27 de outubro de 2009 (Diário Oficial da União de 28 de outubro de 2009), representa um extraordinário avanço no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade da omissão legislativa. A nova lei altera a Lei 9.868/99, que trata da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), incluindo o Capítulo II-A, que passa a disciplinar a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO).

A lei chega em boa hora. Completados 21 anos da Constituição de 1988, persistem no ordenamento jurídico injustificáveis lacunas decorrentes da omissão legislativa absoluta. E os casos de omissão legislativa parcial – que tendem, naturalmente, a ser maioria, ante a paulatina superação da omissão absoluta – continuam sendo o resultado de um processo legislativo muitas vezes ineficiente e permeado por complexas relações que a teoria da legislação ainda custará a compreender. Lembre-se, neste ponto, que não só o excesso, mas também a insuficiência e a deficiência legislativas podem representar comportamentos inconstitucionais do poder legislativo. Como não poderia deixar de ser, o Supremo Tribunal Federal, em recente jurisprudência (por exemplo: ADI 3.682, MI 708, MI 721), tem demonstrado sua incomplacência com a inércia legislativa no cumprimento do dever constitucional de legislar. Com a Lei 12.063, o STF agora possui instrumentos processuais mais eficazes para a solução dos difíceis problemas relacionados à omissão legislativa inconstitucional.

A Lei 12.063 divide o novo Capítulo II-A da Lei 9.868/99 em três Seções, que estabelecem, respectivamente: os requisitos de admissibilidade e o procedimento (Seção I); os tipos e formas de medidas cautelares (Seção II); e a decisão na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (Seção III).

Quanto aos requisitos de admissibilidade e ao procedimento, a lei busca inspiração na disciplina da ADI presente na Seção I do Capítulo II da Lei 9.868/99. Em suma, as disposições dos artigos 2º a 9º da referida lei aplicam-se também à ADO, de forma subsidiária (artigo 12-E).

Assim, podem propor a ADO os mesmos legitimados à propositura da ADI e da ADC (artigo 12-A); a petição deverá indicar, de forma precisa e bem delimitada, a causa de pedir e o pedido da ação, com o detalhe de que, na ADO, a causa de pedir será a omissão inconstitucional total ou parcial quanto ao cumprimento do dever constitucional de legislar ou quanto à adoção de providência de índole administrativa (artigo 12-B); o Relator terá o poder de indeferir liminarmente a petição inepta, não fundamentada e a manifestamente improcedente, decisão da qual caberá agravo regimental (artigo 12-C, caput e parágrafo único); por se tratar de processo objetivo, tal como ocorre na ADI e na ADC, não será admitida a desistência da ADO (artigo 12-D). Também na ADO, por aplicação dos artigos 7º a 9º da Lei 9.868/99, poderão ser admitidos amici curiae e realizadas audiências públicas, além das informações adicionais e perícias, que ficam à disposição do Relator para a adequada instrução do processo.

Interessante notar que a nova lei faz ressurgir disposição anteriormente vetada na Lei 9.868/99 (artigo 7º, parágrafo 1º), que concede aos demais legitimados para a propositura da ação (artigo 2º) o direito de manifestação, por escrito, sobre o objeto da ação, podendo pedir a juntada de documentos reputados úteis para o exame da matéria, no prazo das informações, bem como apresentar memoriais (artigo 12-E, parágrafo 1º). O novo dispositivo, portanto, completa a lacuna antes presente no artigo 7º (parágrafo 1º), quanto a dois aspectos. Em primeiro lugar, os legitimados para a propositura da ADI e da ADC podem se manifestar e juntar documentos no processo, ficando os “outros órgãos ou entidades” (artigo 7º, parágrafo 2º) com a possibilidade de manifestação mediante prévia admissão por decisão do Relator. Segundo, fica esclarecido o prazo para a manifestação desses legitimados (parágrafo 1º) e dos amici curiae (parágrafo 2º), que deve ocorrer no prazo das informações, apesar de o STF vir aceitando o ingresso do amicus curiae até a inclusão do processo na pauta de julgamentos (ADI 4.071), tendo em vista a possibilidade de sustentação oral (ADI-QO 2.777; artigo 131, parágrafo 3º, RI-STF). Parece certo que, participando efetivamente do processo, legitimados e amici curiae terão igualmente direito de sustentação oral no Plenário do STF.


Ainda quanto ao procedimento, a nova lei, apesar da adoção quase integral do rito da ADI, traz pequenas distinções em relação ao que já estabelecido no Capítulo II, Seção I, da Lei 9.868/99. O artigo 12-E, parágrafo 2º, atribui ao Relator o poder, de certa forma discricionário, de solicitar (ou não) a manifestação do Advogado-Geral da União. A razão da não obrigatoriedade de participação do AGU está no artigo 103, parágrafo 3º, da Constituição, que impõe tal manifestação apenas para defesa de lei ou ato normativo (já existentes), ou seja, no âmbito da inconstitucionalidade por ação. Não obstante, nos casos de omissão parcial, é possível prever que o Relator fará uso desse poder e requisitará a participação do AGU na defesa do ato normativo. A nova lei, nesse ponto, é profícua ao conferir ao Relator o poder de avaliar a necessidade da participação do AGU. Ademais, também a participação do Procurador-Geral da República não será obrigatória, na hipótese em que o PGR for o próprio autor da ação (artigo 12-E, parágrafo 3º). A teleologia da norma é clara. Na prática, quando a ação é proposta pelo PGR, dificilmente seu parecer é contrário ao que defendido na petição inicial. Nesse caso, o parecer – que seria, em tese, imparcial – representa quase uma oportunidade processual de réplica em relação às defesas oferecidas pelos órgãos legislativos e pelo AGU. Assim, ainda que, na teoria, consiga-se vislumbrar a possibilidade de parecer contrário, a prática vivenciada após a edição da Lei 9.868, de 1999 (vide pareceres do PGR no período 1999-2009), demonstra a desnecessidade, até mesmo em razão de economia procedimental, da nova manifestação do PGR. Baseadas na mesma razão legislativa, normas de teor semelhante já constam da Lei 9.882/99 (artigo 7º, parágrafo único), que trata da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), e da Lei 11.417/2006 (artigo 2º, parágrafo 2º), a qual dispõe sobre a Súmula Vinculante.

Ressalvadas as referidas distinções, a previsão de rito procedimental semelhante entre as ações abre espaço para o reconhecimento de sua fungibilidade processual, em superação à antiga jurisprudência do STF sobre o tema (ADI 986, ADI 1.442). Destarte, se reconhecermos que comportamentos legislativos positivos podem ser insuficientes ou deficientes no cumprimento de determinado mandamento constitucional, a hipótese da omissão parcial já torna possível eventual conversão da ADI em ADO – ou, em outros termos, o conhecimento da ADI como ADO – como forma de superação de uma suposta inépcia da petição inicial.

A Seção II, ao possibilitar a medida cautelar na ADO, traz importantíssima inovação no controle da omissão, até mesmo em relação à jurisprudência do STF, que não vinha admitindo provimentos liminares nessas ações (ADI 267), uma vez que, nesses casos, a única consequência jurídica seria a mera comunicação formal, ao órgão legislativo ou administrativo, de sua mora inconstitucional, conforme dispõe o parágrafo 2º do artigo 103 da Constituição. Se é bem verdade que a jurisprudência do STF já vem dando sinais de superação daquele vetusto entendimento (ADI 3.682), mesmo nos casos de mandado de injunção (MI 708, MI 670 e MI 712) – podendo-se, inclusive, afirmar que, muito em breve, a efetiva mudança jurisprudencial efetivamente ocorreria –, a inovação, desta vez, veio por meio da legislação.

A lei (artigo 12-F, parágrafo 1º) estabelece três tipos de decisão em medida cautelar. Primeiro, poderá o Tribunal suspender a aplicação da lei ou do ato normativo questionado, no caso de omissão parcial. Com efeito, nas hipóteses de cumprimento incompleto ou imperfeito do comando constitucional, haverá conduta positiva do poder legislativo apta a ser suspensa cautelarmente, em razão de excepcional urgência e relevância da matéria, verificadas pelo Tribunal no caso.


Segundo, o Tribunal poderá suspender processos judiciais ou procedimentos administrativos nos quais esteja sendo discutida a aplicação de lei ou ato normativo (omissão parcial), providência de extrema relevância para evitar estados de insegurança jurídica decorrentes de divergências na interpretação/aplicação da lei ou do ato. Neste ponto, a lei, inegavelmente, busca inspiração na experiência da ADC (artigo 21 da Lei 9.868/99) e da ADPF (artigo 4º, parágrafo 3º, da Lei 9.882/99) e sua profícua aplicação pelo STF (por exemplo, ADC 11, ADPF 101, ADPF 130).

Em terceiro lugar, a lei trata, ainda, de “outra providência a ser fixada pelo Tribunal” em sede de medida cautelar. Se, à primeira vista, a norma parece conferir um exacerbado poder ao Supremo Tribunal Federal, é preciso ponderar, por outro lado, que, na prática, a norma será de extrema importância para a solução dos sempre complexos problemas decorrentes da omissão legislativa (parcial ou total). O dispositivo normativo permitirá, por exemplo, que o Tribunal, ante a lacuna normativa, determine a aplicação analógica e temporária de outra norma, como o fez em decisão final no conhecido caso da omissão inconstitucional quanto à regulamentação do direito fundamental de greve dos servidores públicos (MI 708, MI 670, MI 712).

A Lei 12.063 estabelece apenas um tipo de rito cautelar (artigo 12-F), diferentemente da disciplina da ADI na Lei 9.868/99 (artigos 10 a 12), que prevê os procedimentos do (1) artigo 10, caput, (2) do artigo 10, parágrafo 3º, e (3) do artigo 12. Dessa forma, dispõe a nova lei que, em caso de excepcional urgência e relevância da matéria, o STF, por decisão da maioria absoluta de seus membros, observado o quorum de oito Ministros (artigo 22), poderá conceder medida cautelar na ADO, após a audiência dos órgãos ou autoridades responsáveis pela omissão inconstitucional, que deverão pronunciar-se no prazo de cinco dias. O Relator, se julgar indispensável, poderá solicitar o parecer do PGR. Não está prevista a manifestação prévia do AGU.

Após a concessão da medida cautelar, decisão cuja parte dispositiva deverá ser publicada no prazo de dez dias, a lei prevê a possibilidade de aplicação à ADO, no que couber, do rito ordinário (artigos 6º a 9º) da ADI, que se iniciará com o pedido de informações à autoridade ou órgão responsável pela omissão inconstitucional.

A Seção III trata da decisão na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão. O artigo 12-H, praticamente repetindo a fórmula do artigo 103, parágrafo 2º, da Constituição, prescreve que, declarada a inconstitucionalidade por omissão, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias. A aparente ortodoxia do dispositivo, porém, não impedirá que o STF adote técnicas inovadoras de decisão, como, por exemplo, a indicação de prazos razoáveis para a atuação do órgão legislativo (ADI 3.682). A própria lei (artigo 12-H, parágrafo 2º) prevê a aplicação subsidiária do Capítulo IV da Lei 9.868/99, possibilitando, também na ADO, a adoção de outras técnicas de decisão – como, por exemplo, a interpretação conforme e a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto – e a modulação de seus efeitos, nas diversas possibilidades deixadas em aberto pelo artigo 27. Ressalte-se que, muitas vezes, a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, preservada a vigência da norma por determinado período, será a única via possível ao Tribunal para solucionar questões complexas decorrentes da omissão parcial, como o clássico problema de exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade. Não se podem fechar os olhos, ademais, para a hodierna tendência do STF na prolação de decisões manipulativas de efeitos aditivos.

Aplicam-se à decisão na ADO as disposições quanto ao quorum de julgamento, comunicações e publicação da ADI e da ADC, e também ela será irrecorrível, ressalvada a interposição de embargos de declaração, e não poderá ser objeto de ação rescisória. A decisão na ADO é naturalmente dotada de eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública federal, estadual e municipal.

A lei prevê, ainda, que, no caso de omissão imputável a órgão administrativo, as providências deverão ser adotadas no prazo de trinta dias (artigo 12-H, parágrafo 1º), o que também constitui uma reafirmação da norma da parte final do parágrafo 2º do artigo 103 da Constituição. Não obstante, a lei também possibilita ao STF, em casos excepcionais e tendo em vista as circunstâncias específicas do caso e o interesse público envolvido, a fixação de prazo razoável para as providências administrativas. A norma tem fundamento em uma simples razão: muitas vezes é praticamente impossível à Administração – com todas as conhecidas limitações humanas, procedimentais e, principalmente, financeiras – adotar, no exíguo prazo de 30 dias, providências eficazes para sanar determinados casos de omissão inconstitucional. A norma, assim, abre ao Tribunal a possibilidade de, diante das especificidades do caso, fixar prazo mais alargado para o cumprimento do dever constitucional pelas autoridades administrativas.

Enfim, inúmeras outras questões certamente surgirão da interpretação/aplicação, pelo Supremo Tribunal Federal, do novo Capítulo II-A, da Lei 9.868/99. O presente (e breve) comentário apenas traz uma pequena notícia sobre alguns aspectos desse importante avanço no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade da omissão legislativa, proporcionado pela nova Lei 12.063, de 27 de outubro de 2009.

Autores

  • Brave

    é assessor-chefe da Presidência do Supremo Tribunal Federal; mestre em Direito pela Universidade de Brasília; professor do Instituto Brasiliense de Direito Público; membro do Conselho de Direção da Rede Iberoamericana de Assessores Constitucionais; membro da Comissão do Programa REDIR – Rede de Promoção e Defesa de Direitos Fundamentais, do Conselho Nacional de Justiça e editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional

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