Na Bahia

Jetom: Burla ao limite de remuneração do servidor

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26 de outubro de 2009, 8h54

Nosso sistema jurídico constitucional não admite castas ou classes de cidadãos e a mencionada garantia de igual limite remuneratório para todos os ingressos no serviço público tem raízes consolidadas na Constituição Federal de 1988, a começar pelo próprio artigo 1º ao consagrar o princípio republicano, pois, da mesma forma que o princípio da isonomia, deve servir de norte a orientar todo e qualquer princípio isolado, em especial o disposto no parágrafo 4º do artigo 39, onde consta literalmente a exigibilidade da exclusão da “verba de representação ou de qualquer outra espécie remuneratória” (inclusive “jetons”) quando for ultrapassado o limite constitucional do artigo 37, inciso XI, da Carta Republicana:

Artigo 39, parágrafo 4º da CF/88 – O membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).

Para uma melhor compreensão da questão posta, necessário saber o que significa a palavra “jetom”. “Jetom” é um francesismo que significa uma espécie remuneratória acessória a qualquer outra principal, usual para pagar agentes políticos e servidores públicos pelo seu trabalho em funções particularizadas, como o trabalho em comissões, colegiados ou outros órgãos de deliberação coletiva. Utilizava-se o jetom para remunerar parlamentares por presença nas sessões do Legislativo.”

Plácido e Silva o define como o "Galicismo que expressa a retribuição por participação em órgão colegiado" (in Vocabulário jurídico. 18ª ed. RJ: Forense, 2001, verbete próprio), e desse modo pode ser empregado para remunerar o trabalho dos diretores do conselho, cuja diretoria é um órgão colegiado.

Impõe também trazer a lume o disposto no artigo 37, inciso XI e nos parágrafos 11 e 12, todos da CF/88:

Artigo 37, XI – a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados… e dos demais agentes políticos… ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limitenos Estados … o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo… (Redação dada pela Emenda Constitucional 41, 19.12.2003) (g.n.).

Artigo 37, parágrafo 11. Não serão computadas, para efeito dos limites remuneratórios de que trata o inciso XI do caput deste artigo, as parcelas de caráter indenizatório previstas em lei. (Incluído pela Emenda Constitucional 47, de 2005) (g.n.)

Artigo 37, parágrafo 12. Para os fins do disposto no inciso XI do caput deste artigo, fica facultado aos Estados e ao Distrito Federal fixar, em seu âmbito, mediante emenda às respectivas Constituições e Lei Orgânica, como limite único, o subsídio mensal dos Desembargadores do respectivo Tribunal de Justiça…(Incluído pela Emenda Constitucional 47, de 2005)

No entanto, o Estado da Bahia (1) defende a tese de que não houve a recepção do texto do artigo 34, parágrafo 5º, da Constituição do Estado da Bahia pelo advento da Emenda Constitucional 41, de 19 de dezembro de 2003, que estabeleceu tetos diferenciados para os vários poderes no âmbito dos Estados-membros, não admitindo, para o Poder Executivo, teto que fosse distinto dos subsídios do Governador do Estado.

Ainda, o Procurador do Estado registra nos Embargos que uma “lei morta” não pode ser ressuscitada se uma lei posterior revoga a lei que liquidou a primeira (“lei morta”), ao pontuar que o artigo 34, parágrafo 5º, da Constituição Estadual não pode ser repristinado (2) pelo advento da Emenda Constitucional 47/2005, mesmo que tenha a sua eficácia retroagida até a data da promulgação da Emenda 41/2003, pois não é admissível a repristinação de dispositivo legal ou de emenda a Constituição Estadual não recepcionada, como também a convalidação de ato normativo inconstitucional.


Por fim, o Supremo Tribunal Federal e os Tribunais de Justiça dos Estados (3), principalmente o da Bahia, têm decidido, “mutatis mutandis”, que o Teto de Remuneração do Servidor tem com limite o valor percebido por um Desembargador. Apesar dessas decisões, o Governo do Estado da Bahia tem o entendimento que o teto de remuneração do servidor público é o subsídio de Governador.

Para entender melhor essa questão, nada mais prático e funcional do que tratar sobre uma situação concreta vivenciada em nosso Estado e que foi objeto de matéria do jornal A Tarde, edição do dia 19 de julho de 2009 (4), que estampou como manchete de primeira página “Secretários aumentam renda em conselhos: Participação em conselhos de empresas estatais rende remuneração extra a secretários de Estado da Bahia”

Ainda, na página B2 (coluna política) dessa mesma edição, continua a reportagem, de autoria da Jornalista Lília de Souza, que merece ser reproduzida , mesmo que parcialmente:

“A participação em reuniões de conselhos das empresas públicas do Estado rendeu à totalidade dos secretários baianos, de janeiro de 2008 a junho deste ano, mais de R$ 1,042 milhão de ganhos extras, os chamados jetons – valor pago por participação em reuniões –, segundo levantamento feito por A TARDE no site Transparência Bahia. Cada secretário de Estado recebe salário de R$ 10.364,06 mensais, mas, com a complementação fruto dos conselhos, o subsídio de parte do secretariado ultrapassa o teto salarial máximo permitido pela Constituição Federal, correspondente ao salário do governador, que no Estado da Bahia é de R$ 12.011,90.

(…)

A prática, que não é exclusiva do atual governo e nem do Estado da Bahia, apesar de legal e amparada na Lei 6.404/76, tem funcionado ao longo dos anos como uma “forma de burlar a norma constitucional” sobre o teto, como observa a promotora Rita Tourinho, do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa (Gepam)”.

A remuneração extra de gestores fruto dos conselhos é comum na administração pública. (…)

Discussão moral — Para a promotora Rita Tourinho, o pagamento de jeton se transforma em uma forma de “subterfúgio para extrapolar o teto”… Mas existe um teto que tem de ser obedecido… Cabe levantar a discussão se isso atenta à moralidade ou não”, reflete a promotora. Em seguida, Rita Tourinho completa: “De qualquer sorte, é uma situação que cabe ser discutida, pois envolve dinheiro vindo da administração pública”.

Para decifrar o que foi objeto da reportagem acima transcrita, é imperioso trazer a lume as disposições da mencionada Lei 6.404/76 e também o que consta do Estatuto do Servidor Público do Estado da Bahia sobre o limite de remuneração:

Nova Lei das S.A (Lei 6.404/76) e alterações: Artigo 152. A assembléia-geral fixará o montante global ou individual da remuneração dos administradores, inclusive benefícios de qualquer natureza e verbas de representação, tendo em conta suas responsabilidades, o tempo dedicado às suas funções, sua competência e reputação profissional e o valor dos seus serviços no mercado. (Redação dada pela Lei nº 9.457, de 1997)

Estatuto do Servidor Público da Bahia (Lei 6.677/94): Artigo 54 – Nenhum servidor poderá perceber, mensalmente, a título de remuneração, importância superior à soma dos valores fixados como remuneração, em espécie, a qualquer título, para Secretário de Estado.

Parágrafo único – Excluem-se do teto de remuneração as indenizações e vantagens previstas nos artigos 63 e 77, incisos II a IV, o acréscimo previsto no artigo 94, o abono pecuniário previsto no artigo 95 e o salário família.

Artigo 63 – Constituem indenizações ao servidor:

I – ajuda de custo; II – diárias; III – transporte.

Parágrafo único – Os valores das indenizações e as condições para sua concessão serão estabelecidos em regulamento.


Artigo 77 – Além do vencimento e das vantagens previstas nesta lei, serão deferidas ao servidor as seguintes gratificações:

(…) II – natalina; III – adicional por tempo de serviço; IV – adicional pelo exercício de atividades insalubres, perigosas ou penosas; (…) VII – outras gratificações ou adicionais previstos em lei.

Pelo que foi explanado, o pagamento de “jetom” não tem previsão na Lei 6.404/76 (e alterações), pois o citado artigo 132 desta lei refere-se apenas a “verbas de representação”, nem tampouco na Lei 6.677/94 (e alterações). Ainda, a verba de representação está prevista na Constituição Federal (artigo 39, parágrafo 4º, transcrito anteriormente) como sendo parte integrante (por dentro, portanto) da remuneração.

Na visão de Carneiro e Morgado (2009) (5), os secretários de Estado que percebem “jetons” extrateto ou além do limite fixado na Lei Maior estão incorrendo em erro grave, pois, no Estado da Bahia, não foi instituída lei, após a Emenda Constitucional 47, de 2005, definindo que os “jetons” são considerados verbas de caráter indenizatório, de forma a se pleitear que esses valores possam ficar à margem do contorno definido na Constituição Federal.

Pela pesquisa realizada (Tabela 1) ficou demonstrado que secretários de Estado da Bahia (assim como os servidores em funções equivalentes à exercida por aqueles) vêm ganhando jetons por participar de reuniões em diversos conselhos (tanto na administração direta, secretarias, quanto na indireta, empresas públicas e autarquias), sem respeitar o limite de remuneração do servidor público estadual, consoante antes exposto.

Tabela 1 – Recebimento de Jetons por servidores públicos
NUMERO: 3552 (01/06/2009)
UNIDADE GESTORA: 326800 – CIA DE DESENVOLV URBANO DO ESTADO DA BAHIA
NATUREZA DA DESPESA: 319016 – OUTRAS DESPESAS VARIAVEIS – PESSOAL CIVIL
SUBELEMENTO DE DESPESA: 16063 – JETONS
MODALIDADE: ORDINARIO
TIPO PROCESSO LICITATÓRIO: NAO SE APLICA
HISTÓRICO: JETON – CONSELHO ADMINISTRACAO. REUNIAO 177
VALOR: 3.000,00
NUMERO: 3552 / 2
PAGAMENTO: 2.808,84 (Data: 04/06/2009)
ESTORNO: 0,00
VALOR PAGO: 2.808,84
BANCO / AGÊNCIA PAGADORA: 1/3832
Nº NOTA FISCAL: 3622
Fonte: Transparência Bahia

Para concluir, resta a seguinte indagação para o Ministério Público deste Estado e para o Tribunal de Contas da Bahia (TCE): isto que foi exaustivamente demonstrado nas páginas anteriores não fica caracterizado como sendo uma atitude de desrespeito ao nosso ordenamento jurídico pátrio, em especial pela Carta Magna de 1988, após o advento das Emendas Constitucionais 19/98, 41/2003 e 47/2005, pois trata-se de percepção de uma remuneração além do limite permitido pela “Lex Suprema”?

Por fim, cabe registrar que tanto o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) quanto o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), editaram Resoluções disciplinando e definindo os respectivos Tetos de Remuneração dos Magistrados e dos Procuradores do MP, onde está expressamente consignado nas mesmas que a parcela atinente à verba de representação, ou a qualquer outra espécie remuneratória, deve estar dentro do Teto de Remuneração.

Referências
1.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA – www.tjba.jus.br. Embargos de Declaração nº 13155-3/2009 no Mandado de Segurança nº 76150-6/2008.
2. “Segundo dispõe o art. 2°, § 3, da LICC (Lei de Introdução ao Código Civil), a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido vigência. Assim, se a lei A é revogada pela B e a seguir, a lei B é revogada pela lei C, este último fato não restaura – a menos que haja disposição em contrário – a eficácia da lei A. O fenômeno do ressurgimento da eficácia da lei revogada pela ulterior revogação da lei revogadora, recebe o nome de repristinação. Repristinar, do ponto de vista semântico, significa restituir valor, caráter ou estado primitivo. Em termos jurídicos, significa restaurar a eficácia de lei anteriormente revogada” (NETO, João Batista de Mello e Souza.Direito civil: parte geral, 5ª Edição, Editora Atlas, 2004).
3.  TJ/RO – 7/3/2007 – MS nº 200.000.2006.010592-5. Rel. Dês. Sansão Saldanha. Apelação Civil 100.001.2004.004069-0 – Rel. Desembargador Waltenberg Júnior. TJ/BA – 05/05/2009 – MS Nº 29339-9/2008 – Rel. Des. Rosita Falcão de Almeida. STF – 06/06/2008 – RE 576.336-6 – Rel. Ricardo Lewandowski (“É ilegal o estorno procedido nas remunerações… com base no subsídio de Governador ante o teor da Emenda n. 47/2005”).
4. JORNAL ‘A TARDE’ de 19 de Julho de 2009. Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12496. Acesso em: 24 Mar 2009; e c) Teto remuneratório x repristinação. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9500>. Acesso em: 22 de Mar 2009. Vide também a decisão do STF (RE 576336 RG / RO – RONDÔNIA ). Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=TETO%20REMUNERATÓRIO&base=baseRepercussao>. Acesso em: 9 Ago. 2009.

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